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A legitimação dos sindicatos para atuar como substituto processual.

A adequada representação. Contribuições da "class action"

28/05/2007 às 00:00
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            No direito norte-americano podemos definir a class action "como procedimento em que uma pessoa, considerada individualmente, ou pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a representar um grupo maior ou classe de pessoas, desde que compartilhem, entre si, um interesse comum" [01]. Ressalvadas algumas peculiaridades, o conceito da ação de classe americana é bastante próximo ao da substituição processual.

            A class action consagrou-se no sistema jurídico da América do Norte como conseqüência da exigência de uma tutela mais adequada às necessidades da contemporânea sociedade de massa. A regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure [02] fundamenta legalmente o instituto da class action no direito dos Estados Unidos. A legitimação para estar em juízo na defesa de interesses da categoria é outorgada a qualquer integrante, desde que titular de uma posição juridicamente idêntica à dos demais [03].

            São pressupostos da class action (inscritos na alínea "a" da Rule 23): i) impossibilidade da reunião dos membros integrantes da classe em face do seu grande número; ii) as questões de direito e de fato devem ser comuns à classe; iii) o pedido ou a defesa dos litigantes deve ser idêntica ao pedido ou à defesa da classe; iv) os litigantes devem atuar e proteger adequadamente os interesses da classe.

            A experiência dos Estados Unidos demonstra-nos requisito extremamente relevante para que se assegura o devido processo legal, assim entendido em sentido amplo, qual seja, adequada representação. Tratando-se da defesa de direito alheio, o efetivo acesso à justiça somente estará assegurado se a representação judicial for adequada.

            Preliminarmente esclarecemos que o termo "representação", utilizado no presente estudo, não se refere à "representação" no sentido técnico-jurídico- processual, mas aos legitimados para propor ações coletivas.

            Com efeito, diante da escassa representatividade de nossos sindicatos, nos parece que admitir a ampla e irrestrita substituição processual importa violar o due process of law. Ainda que a Constituição da República conceda aos sindicatos a prerrogativa da defesa dos interesses coletivos e individuais da categoria, entendemos que a norma do devido processo lhe é hierarquicamente superior.

            Quanto à defesa dos interesses individuais, além da violação ao due process of law, resta violado o direito ao acesso à justiça. O membro da classe poderia requerer a restauração do seu interesse específico através da tradicional tutela individual. Neste sentido, oportuna a referência feita por Gidi [04], de que "o representante inadequado, portanto, é um não-representante."

            Os defensores do modelo brasileiro de tutela coletiva, que despreza a auferição pelo juízo da adequada representação, fundamentam sua posição na ausência da extensão dos efeitos da coisa julgada quando da improcedência da ação. Ocorre que a extensão secundum eventul litis e in utilibus contraria o próprio princípio da tutela coletiva, qual seja, o da economia processual.

            Também não logra êxito a idéia de que o controle da adequação foi exercido previamente pelo legislador quando da atribuição da legitimação coletiva. [05]

            Este argumento é simplista é de uma ingenuidade flagrante. [06] A própria legitimidade atribuída aos sindicatos, que em muitos casos existem apenas pró-forma (sindicatos de gaveta), por si só o derruba. Já quanto às associações, o critério de constituição há mais de dois anos não pode ser analisado seriamente como presunção da adequada representação. Outrossim, não há negar que a análise do legislador está muito mais suscetível a falhas. O julgamento pelo legislador forma uma regra geral, todavia, apenas no caso concreto a adequada representatividade é plenamente auferível. "Não podemos imaginar uma regra legal que aponte o adequado legitimado, nem mesmo critérios legais que digam em que condições alguém se tornaria um adequado representante do conflito" [07].

            O processo coletivo não pode restar submisso à intenção do legislador em conceder, através da lei, poderes a determinada entidade para pleiter direitos individuais de outrem em nome próprio. A efetiva legitimidade decorre de procedimentos [08], os quais somente podem ser analisados pelo juízo no caso concreto. Não ocorrendo o pleno exercício da democracia, o que de verifica em muitos dos procedimentos sindicais, não há que se falar em legitimidade. [09]

            A legitimação é exatamente o ponto nevrálgico destas ações coletivas. A tutela coletiva de interesses individuais, por si só não apresenta maior complexidade, o problema está na eleição daquele que representará a classe em juízo.

            O fato do interesse ser coletivo não impede que sejam judicialmente tutelados, quando em nome dos interessados se apresenta em juízo um portador adequado. Através do requisito da adequada representação, as principais questões podem ser resolvidas [10]. Ao mesmo tempo minimiza-se o risco de colusão, bem como estimula-se o vigor da atuação do representante e de seu advogado para que os reais interesses dos membros da classe sejam efetivamente defendidos e assegurados. A adequada representação, conforme esclarece o próprio nome, não exige a representação perfeita, basta que seja adequada. [11]

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            Neste aspecto, a ausência de hipocrisia do sistema americano é exemplar. A análise da capacitação do advogado da parte representante é uma das principais garantias dos membros do grupo. Ainda que o advogado não seja a parte, dependendo de sua atuação o processo pode tomar um rumo ou outro. Ademais, nestas ações coletivas, em função dos honorários, calculados sobre o total da causa, os advogados passam a ser, por vezes, os maiores interessados. Aí não vai uma crítica, ao revés, talvez esta seja a receita do sucesso das ações coletivas norte-americanas. Pouco importa a legitimação concedida pela lei, o que realmente interessa é verificar se os interesses foram adequadamente defendidos. O sistema americano, como sói ocorrer naquele país, foi pragmática e, por isso, eficiente.

            Em que pese a doutrina majoritária não admita o requisito da adequada representação nas ações coletivas, concordamos com Gidi, quando afirma ser desnecessária uma reforma legislativa. Isto porque a inadequada representação afeta o devido processo legal e o acesso a justiça. A legislação que institui o atual sistema de ações coletivas subordina-se a tais princípios, os quais são universais e estão expressamente previstos em nossa Constituição.

            Reconhecemos a mitigação do devido processo legal nos processos coletivos, pois, caso contrário, o ajuizamento de qualquer ação coletiva estaria inviabilizado [12]. O membro da classe não tem o direito de ser citado, ouvido e defendido individualmente, tem sim o direito de ser citado, ouvido e defendido por um representante. Ocorre que esta representação em juízo não pode ser feita por um qualquer, exige-se que seja feita somente pelo representante adequado. [13] É preciso reconhecer que a inadequada representação viola frontalmente o direito ao contraditório.

            A complexidade da representação na legitimação ativa apresenta-se da forma mais flagrante na legitimação passiva. Veja-se que o art. 8º, III da Constituição Federal refere-se à defesa, que pode ser exercida ativamente ou passivamente. Todavia, talvez até em função de nossa tradição individualista, na legitimação passiva os atentados ao devido processo legal, caso o representante não seja adequado, são mais facilmente vislumbrados. O caráter menos idôneo de determinado representante poderá acarretar sérios prejuízos aos representados. [14]

            Em nosso sentir, tal qual ocorre na class action [15], a adequada representação também deve ser a pedra fundamental da substituição processual sindical.

            Prova disto é a situação citada por Antônio Gidi [16] em artigo escrito sobre o tema. Ao comentar com a Prof. Linda Mullenix, da Universidade do Texas, que no Brasil o juízo não possui a prerrogativa de avaliar a representação nas ações coletivas, o que permite a existência de representantes relapsos, medíocres e fraudulentos, espantada a professora lhe fez a seguinte indagação: "vocês não têm aqui no Brasil um conceito semelhante ao nosso due process of law?"


Notas

            01

BUENO, Cássio Scarpinela. As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: pontos para um reflexão conjunta. Revista de Processo, São Paulo, nº 82, p. 92-149, abr-jun, 1996.

            02

O presente estudo utilizou como fonte a tradução da Rule 23 por José Rogério Cruz e Tucci em sua obra. Class action e mandado de segurança coletivo: diversificações conecptuais. São Paulo: Saraiva, 1990.

            03

TUCCI, José Rogério Cruz e. Class action e mandado de segurança coletivo: diversificações conecptuais. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 21.

            04

GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, nº 108, p. 61-70, out-dez, 2002, p. 70.

            05

CLAUS, Bem-Hur Silveira. Substituição processual trabalhista: uma elaboração teórica para o instituto. São Paulo: LTr, 2003, p. 37.

            06

GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, nº 108, p. 61-70, out-dez, 2002, p. 64.

            07

VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Interesses individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 56.

            08

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução: Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

            09

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: edições Tempo Brasileiro, 1985, p. 63. "(...) democracia e legitimidade são fenônemos referenciados."

            10

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: Conceito e legitimação para agir. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 173.

            11

GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, nº 108, p. 61-70, out-dez, 2002, p. 66-67

            12

GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do processo nas ações coletivas. Revista de Processo, Sâo Paulo, nº 43, p. 19-30, jul-set, 1986.

            13

GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, nº 108, p. 61-70, out-dez, 2002, p. 66-69.

            14

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: Conceito e legitimação para agir. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 187 "Na jurisdição coletiva há sempre o risco de que a ação seja, de indústria, dirigida contra o ‘representante’ menos idôneo, ou seja, menos capaz de bem denfender os interesses da classe, com isso se objetivando, astutamente, uma declaração judicial de natureza prejudicial, possivelmente favorável ao autor e que, e certa forma, será oponível a todos os integrantes daquela classe"

            15

CAPPELLETI, Mauro. Tutela dos Interesses Difusos. Revista da Ajuris, Porto Alegre, n. 33, p. 169/182, março, 1985, p. 179. "Abordamos um aspecto muito importante: um novo papel do juiz nas ações de classe. O juiz é responsável pelo controle da admissibilidade de representação, isto é, incumbe ao juiz controlar para que o autodeterminado ‘campeão de toda a categoria’ seja, efetivamente, representante legítimo adequated representaty." GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, nº 108, p. 61-70, out-dez, 2002, p. 66. " De acordo com o direito amerciano, para que uma ação coletiva seja aceita, o juiz precisa estar convencido, entre outras coisas, de que o representante possa representar adequadamente os interesses do grupo em juízo. Esse é, sem dúvida, o aspecto mais importante das class action americanas, tanto do ponto de vista teórico como prático."

            16

GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, São Paulo, nº 108, p. 61-70, out-dez, 2002.
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Sobre o autor
Eduardo Caringi Raupp

advogado trabalhista e sindical no Rio Grande do Sul, pós-graduado em Direito Processual e Constituição pela UFRGS, integrante da Flávio Obino Filho Advogados Associados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAUPP, Eduardo Caringi. A legitimação dos sindicatos para atuar como substituto processual.: A adequada representação. Contribuições da "class action". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1426, 28 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9933. Acesso em: 25 abr. 2024.

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