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Denúncia genérica nos crimes societários: um retrocesso ao Estado Novo.

Análise sob o ponto de vista da atual ordem constitucional, do direito supralegal e da legislação ordinária

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30/05/2007 às 00:00
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3. CONCLUSÃO:

            Diante do exposto, outra conclusão não é possível senão a de que toda Denúncia Genérica, mesmo em casos de crimes societários, é flagrantemente ofensiva aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, bem como ofensa aos artigos 8º, item 2, letra "b", da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e 41 do Código de Processo Penal.

            Ora, o simples fato de alguém ser sócio-gerente de uma empresa não autoriza que seja denunciado. Afinal, ser sócio-gerente, pelo menos até o presente momento, não constitui infração penal.

            "Meras conjecturas sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação estatal. É que, sem base probatória consistente, dados conjecturais não se revestem, em sede penal, de idoneidade jurídica, quer para efeito de formulação de imputação penal, quer para fins de prolação de juízo condenatório" (Voto do Ministro Celso de Mello no HC n. 86879/SP).

            Uma denúncia penal válida, deve narrar a participação individual do agente (8), bem como estabelecer o liame das suas condutas aos eventos delituosos, evitando, com isso, que a acusação se transforme, como advertia o Ministro Orozimbo Nonato, em pura criação mental do acusador (RF 150/393).

            A imputação (9), como dizia o saudoso José Frederico Marques (in Elementos do Direito Processual Penal. Vol II. 1ª edição. Editora Forense. 1965. Pág. 153), deve ser determinada, e "imprescindível é que nela se fixe, com exatidão, a conduta do acusado descrevendo o acusador, de maneira precisa, certa e bem individualizada".

            O ideal seria que toda a denúncia seguisse a formula traçada por João Mendes de Almeida Júnior (in O Processo Criminal Brasileiro. V. II. Freitas Bastos. 1959. Pág. 183), para o qual a denúncia "é uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincomaco, 1.III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear, as testemunhas e informantes".

            O prosseguimento de uma ação fulcrada em uma acusação genérica transformará o processo penal num instrumento de pura estigmatização e rotulação, em que se punirá não pela pena, mas sim pelo fato de estar o acusado sendo processado.


4. NOTAS

            1. Crime societário é uma espécie de infração penal praticada "por pessoas físicas em nome de uma sociedade, de uma pessoa jurídica constituída originariamente para fins lícitos". (Leib Soibelman. Enciclopédia do Advogado. 5ª edição. Thex Editora Ltda. Pág. 103).

            2. Nesse sentido: Cezar Peluso; Cezar Roberto Bitencourt; René Ariel Dotti; Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior; Fabio M. de Almeida Delmanto; Carlos Ernani Constantino; Basileu Garcia; Nélson Hungria; Magalhães Noronha; José Frederico Marques; Aníbal Bruno; Heleno Cláudio Fragoso; José Henrique Pierangeli; Julio Fabbrini Mirabete; Fernando da Costa Tourinho Filho; Alberto da Silva Franco; Juarez Tavares; Luiz Regis Prado; Miguel Reale Júnior; Luiz Vicente Cernicchiaro e etc.

            3. Nesse sentido, oportunos são os ensinamentos do professor Hugo de Brito Machado (Ob. cit.): "Admitir-se a denúncia na qual alguém é acusado pelo simples fato de ser gerente, ou diretor, ou até simplesmente sócio ou acionista de uma sociedade, como se tem visto, é admitir não apenas a responsabilidade objetiva, mas a responsabilidade por fato de outrem, o que indiscutivelmente contraria os princípios do Direito Penal de todo o mundo civilizado".

            Nesse diapasão: "Ser acionista ou membro do conselho consultivo da empresa não é crime. Logo, a invocação dessa condição, sem a descrição de condutas específicas que vinculem cada diretor ao evento criminoso, não basta para viabilizar a denúncia" (STF. RT 715/526. Relator Ministro Assis Toledo).

            4. Essa garantia já era prevista no artigo 9º da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 26 de agosto de 1789: "Todo acusado se presume inocente até ser declarado culpado".

            5. Há outras três posições a respeito do status dos Tratados e Convenções que veiculem direitos humanos no ordenamento jurídico: os Tratados e Convenções contariam com status constitucional (Flávia Piovesan e Antônio Augusto Cançado Trindade); contariam com status supraconstitucional (defendida por Celso de Albuquerque Mello); estariam na mesma hierarquia da legislação ordinária (antiga posição do STF).

            6. "Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana" (STF. Recurso Extraordinário nº 466.343-1. Voto Ministro Gilmar Mendes).

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            7. É importante consignar que não se admite no Direito Penal brasileiro a responsabilidade objetiva do agente. A regra do artigo 5º, XLV, da CF 88 – a de que a pena não pode passar da pessoa do condenado -, ao consagrar a pessoalidade da pena, também consagrou, indiretamente, a proibição da responsabilidade objetiva.

            8. "a responsabilidade penal pessoal e subjetiva postula denúncia que atribua a autor determinado a prática de atos concretos obras suas, por aderência psicológica (dolosa ou culposa)" (Voto do Ministro Cezar Peluso no julgamento do RHC n. 85.658).

            9. É importante esclarecer que imputação é a atribuição da prática de uma infração penal a uma determinada pessoa. Nos precisos ensinamentos da professora Maria Helena Diniz (in Dicionário Jurídico. 2ª edição. Editora Saraiva. 2005. Pág. 920) imputação é a "acusação de alguém, por meio de denúncia ou queixa-crime, pela prática de um ato delituoso punido pela lei penal".


5. BIBLIOGRAFIA:

            - Bettiol, Giuseppe. Direito Penal. Vol. I. 1966.

            - Constantino, Carlos Ernani. Delitos Ecológicos. A lei Ambiental Comentada Artigo por Artigo. Aspectos Penais e Processuais Penais. 3ª edição. Livraria e Editora Lemos e Cruz. 2006.

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            - Diniz, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2ª edição. Editora Saraiva. 2005.

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            - Pacheco, Denílson Feitoza. Direito Processual Penal. Teoria, Crítica e Práxis. 3ª edição. Editora Impetus. 2005.

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            - Tavares, Juares. Teoria do Injusto Penal. 2ª Edição. Editora Dey Rey. 2002.

            - Tucci, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993.

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Sobre o autor
Eduardo Gomes de Queiroz

advogado criminalista, pós-graduado pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus, pós-graduando em Direito Criminal pelo Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (IELF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Eduardo Gomes. Denúncia genérica nos crimes societários: um retrocesso ao Estado Novo.: Análise sob o ponto de vista da atual ordem constitucional, do direito supralegal e da legislação ordinária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1428, 30 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9949. Acesso em: 19 abr. 2024.

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