5. A superação do conceito moderno de soberania
Ultrapassada a idéia de Soberania estatal ou nacional, vencida a retórica do Estado meramente burguês de Direito, afastado tanto o liberalismo como o socialismo autocrático, a falsa democracia liberal e o sonho revolucionário, fundado em Hegel ou em Marx, a representação oligárquica e a reação das massas, decretado o fim do Estado-Patrimonial e do Estado-Assistencialista, as reformas se impõem por conta própria, indiferentes às nossas vontades. Elas decorrem da inexorável marcha do término de um ciclo, simbolizado no Estado Constitucional Moderno que se exauriu. É a constatação que serve de base para a quarta hipótese trabalhada nesse artigo.
O fato não serve para a realização do sonho anarquista com o desaparecimento de toda a autoridade, mas para uma nova ordem pública transnacional, na qual, no lugar da situação anárquica – essa sim - da convivência entre Estados-nacionais ou da pretensão de um Estado-mundial, haja solidariedade democrática entre os povos, somente possível com o desaparecimento das fronteiras econômicas, sociais, raciais, políticas e culturais da modernidade (POLETTI, 1996, p.109-165).
O aparato político destinado às decisões do Poder Público, no Estado Constitucional Moderno, está cada vez mais tenso, exausto, sobrecarregado, afogado em dados fúteis e enfrentado por perigos estranhos (TOFFLER, 199, p.388).
O que estamos vendo, por conseguinte, são fazedores de política do governo incapazes de tomar decisões de alta prioridade (decidindo muito mal) enquanto se agitam freneticamente para tomar milhares de decisões de importância menor e, freqüentemente, triviais. Mesmo quando grandes decisões são tomadas, geralmente vêm tarde demais e raramente atendem aquele objetivo para o qual foram destinadas.
Não é demais anotar que a noção de Estado Constitucional Moderno Soberano se transforma cada vez mais em uma peça de ficção. É um mero critério formal na caracterização do Estado. Vive-se, atualmente, o início do desaparecimento do Estado Constitucional Moderno e, em conseqüência, do próprio conceito de Soberania Moderna.
Não é demais dizer que não há nada sob o sol que seja absolutamente novo e que simplesmente nos encontramos diante de uma nova fase do internacionalismo próprio do sistema capitalista. Mas parece ser um equívoco não avaliar que agora, pela primeira vez, estão criados uns espaços situados além das fronteiras nacionais e do Estado Constitucional Moderno, que estão articulados com âmbitos próprios de atuação, mesmo que, de vez em quando, tenham algumas fixações territoriais ou "nacionais", mas que também são relativas. Existem alguns poderes móveis, resistentes aos limites das fronteiras, que vivem nesses espaços sem lei, sem ordem, sem Rei nem caudilho. Alheios à Soberania Moderna.
O Estado Constitucional Moderno, diz Isidre Molas (2004, p. 44) ao mesmo tempo em que viu a Sociedade diversificar suas reivindicações, fragmentou os espaços, que se superpõem em ordens diferentes e simultâneos, não necessariamente coerentes. Isso acontece de uma maneira tal que resulta difícil manter a concentração em determinados objetivos quando há uma complexidade social elevada. O Estado Constitucional Moderno (ou os países) não são soberanos sobre seus territórios e as pessoas que vivem – ou passam por – neles, no sentido de potestade.
A configuração atual de muitos Estados Constitucionais Modernos europeus é resultado de movimentos de caráter nacionalista que buscavam a organização estatal de grupos étnicos e culturais antes divididos – como a Alemanha e a Itália – ou a independência de grupos desse tipo integrados em Estados multi-étnicos, como foi com o Império Austro-Húngaro e, mais recentemente, com a União Soviética. O movimento nacionalista também matizou o processo de descolonização na Ásia, na África e na América Central e do Sul.
Atualmente é muito difícil admitir que a referência à Nação como base humana do Estado Constitucional Moderno seja equivalente a uma noção linguístico-cultural [06]. O conceito de Nação como grupo homogêneo, definido por características socioculturais ou religiosas comuns não se conjuga facilmente com a realidade dos Estados Constitucionais Modernos, por conta dos seguintes pontos:
a)em alguns casos, a proclamação, ou reconhecimento, de uma entidade nacional foi produzida em países com uma clara pluralidade de comunidades culturais. Este é o caso, por exemplo, da Espanha e da Bélgica. Nesses casos, a Constituição reconhece o pluralismo cultural interno, ao admitir a existência, dentro da Nação, de comunidades – no caso da Bélgica – e nacionalidades – no caso da Espanha – com características culturais próprias;
b)os movimentos migratórios foram os grandes responsáveis pela eliminação da homogeneidade cultural. É cada vez maior o número de Estados que começaram sua trajetória histórica com uma população mais ou menos homogênea cultural, étnica e lingüisticamente que, com as seguidas ondas migratórias, tiveram alterado essa composição nacional. Em muitos casos, os novos grupos nacionais permanecem intactos, mesmo convivendo sob um mesmo Estado Constitucional Moderno, ou fazendo parte da mesma "Nação Jurídica";
c)as tentativas de manter uma identificação jurídica entre "Nação" e "grupos étnico-culturais" acabaram por dividir a população do Estado Constitucional Moderno, em alguns lugares, em castas, segundo sua maior ou menor vinculação ao grupo "nacional". Os exemplos da Alemanha de Hitler e do apartheid na África do Sul são eloqüentes a este respeito. Ao contrário, as pretensões do Estado Constitucional Moderno se baseiam na igualdade e não-discriminação, condenando os tratamentos desiguais por motivos étnicos, religiosos etc., ou seja, precisamente mediante daqueles motivos que se associam ao feito "nacional".
O conceito jurídico-constitucional de Nação não pode, dessa forma, referir-se a diferenças de caráter étnico, cultural, religioso ou lingüístico. A identificação entre Nação Cultural e Nação Jurídica e Política é, de certa forma, questionável. Por isso, a referência à Nação como base humana da organização estatal não pode ser entendida além de uma referência à Nação Jurídica. Isso sim, mesmo com os problemas já apontados, é compatível com populações mono ou pluri-nacionais.
A globalização questiona um pressuposto fundamental da primeira modernidade, ou seja, essa construção lógica que Adam Smith denominou de "nacionalismo metodológico".
Com a globalização, em todas as suas dimensões, surge frente a isso não só uma nova multiplicidade de conexões e relações entre Estados e Sociedades, mas, além disto se arraiga com maior força a estrutura dos pressupostos teóricos que o idealizavam, organizavam e viviam até agora as Sociedades e os Estados como unidades territoriais reciprocamente delimitadas (BECK, 2004, p.43). A globalização rompeu a unidade do Estado Constitucional Moderno, estabelecendo novas relações de poder e competitividade, com conflitos internos e transnacionais.
A Soberania, um dos paradigmas do Estado Constitucional Moderno que convertia o poder estatal num poder supremo, exclusivo, irresistível e substantivo, único criador de normas e detentor do monopólio do poder de coação física legítima dentro de seu território, ao tempo que único interlocutor autorizado a falar com o exterior, está se desmanchando, o que faz afundar os alicerces sobre os quais se sustentava a teoria clássica do Estado Constitucional Moderno, como escreve Oller I Sala (OLLER I SALA, 2000. p.11). Por outro lado, a perda da eficiência do Estado Constitucional Moderno provocou a erosão de sua legitimidade perante o cidadão. O Estado Constitucional Moderno cada vez oferece menos respostas às demandas de segurança e desenvolvimento. É cada vez menos Soberano.
Esta crise do Estado Constitucional Moderno é uma crise histórica que terá repercussões diversas. Sem dúvidas, será de responsabilidade da cultura jurídica e política utilizar esta "razão artificial" que é o Direito, e que já no passado modelou o Estado Constitucional Moderno em suas relações internas, para orientar os itinerários que passam, evidentemente, como escreve Ferrajoli (1999, p. 45), pela superação democrática deste mesmo Estado Constitucional Moderno e a re-fundação do Direito Internacional, não já sobre a Soberania, mas sobre a autonomia dos povos.
6. Considerações Finais
Como costuma acontecer em tempos de transição profunda, estão aparecendo posições epistemológicas extremas e até insensatas em relação à condição de subjugado do Estado Constitucional Moderno (CHONSKY, 1999, p.91). A relação entre ele e a crescente autonomia do mercado mundial, as implicações da desproporção entre capital produtivo e especulativo, as conseqüências ainda imprevisíveis dos novos sistemas de multimídia – isto é, a convergência da televisão, telefone, cinema e computador numa só tecnologia – e o significado de um desemprego mundial de 30% da população economicamente ativa, são alguns dos parâmetros da nascente sociedade global, não integrados de maneira apropriada a uma cosmovisão à altura das mudanças que vivemos e capaz de orientar os indivíduos e coletivos sociais na direção de uma nova Democracia e de um novo capitalismo.
As investigações nesse sentido indicam, como o faz Bilbeny (1998, p. 167) que, sem Democracia Solidária e sem a democratização do capital, com distribuição da riqueza, não há como organizar um novo Poder Público, que seja fruto da superação da Soberania endógena do Estado Constitucional Moderno.
A debilidade e desorganização da Sociedade Civil são devidas ao poder desvirtuado de um Estado Constitucional Moderno que, ainda que formalmente democrático, é inerentemente opressor, ineficaz e predador, fazendo com que sua debilidade torne-se um requisito indispensável para o fortalecimento da sociedade civil. Esse consenso está assentado, principalmente, sobre o seguinte dilema: só o Estado pode produzir sua própria debilidade, já que é preciso ter um Estado forte e capaz de produzir com eficiência e assegurar, com coerência, essa sua debilidade.
Boaventura de Sousa Santos (1999, p. 17) diz que a debilidade e o enfraquecimento do Estado Constitucional Moderno produziram, portanto, efeitos perversos que questionam a viabilidade de suas funções como detentor de um Poder Público débil: o Estado Constitucional Moderno débil não pode controlar sua debilidade.
Não se deve buscar as raízes da crise no Estado Constitucional Moderno ou na Sociedade, sua criadora. E há que se tentar a recuperação dessa Sociedade. O Estado Constitucional Moderno está em crise porque suas versões reformadas são incapazes de responder, satisfatoriamente, às solicitações da Sociedade e, inclusive, quando intervém para atendê-la produz, normalmente, outros problemas novos. A crise é atávica, de origem, da base teórica, de anacronismo.
A Sociedade atual mostra um crescente e perpétuo dinamismo e complexidade que brotam de cada um dos subsistemas que a compreendem e que não sintonizam com o Estado Constitucional Moderno (ARDANZA, 1988, p. 157) A isso se acrescenta a negligência, quando não cumplicidade, dos aparelhos estatais na deterioração e depredação da Natureza e do Meio Ambiente, que são imprescindíveis para a qualidade de vida da Sociedade e das pessoas que a integram.
O Estado Constitucional Moderno começou a dar sinais mais efetivos de sua insuficiência, na sua essência, primeiro com a crise de 1929.
Depois foi a escalada intervencionista e de desenvolvimento do Estado de Bem-Estar, com sérios problemas de tensão, tanto no mercado (distorções regulamentares, inflação, questionamento éticos do trabalho, crescente poder dos sindicatos) como no próprio Estado (déficit crescente, rebelião fiscal, desenvolvimento das práticas burocráticas, tensões corporativas pela distribuição de serviços públicos).
Também a não-funcionalidade criada pela mundialização e uma estrutura estatal voltada para seu caráter interno, nacional (TOMAS CARPI, 1992, p.159).
A opinião pública dos países democráticos inquieta ante o nível de degradação da segurança interna é, a princípio, geralmente a favor do fortalecimento da ação pública. O corpo político entende que é melhor o Estado Constitucional Moderno voltar a centrar-se no conjunto de competências que lhe são próprias em lugar de dispersar-se em outras atividades que as empresas privadas sabem fazer melhor, enfim, que faça menos coisas, mas que as faça bem (HUNTIGTON, 2002, p.78). Para que essa linha de defesa do papel do Estado pudesse ser convincente, seria necessário que, nos terrenos que parecem ser próprios de sua atuação, sua legitimidade seja indiscutível e que não conte com nenhuma concorrência séria. Não é esse o caso. As mais tradicionais funções de "Soberania", que pareciam claramente ser de competência do Estado Constitucional Moderno, estão submetidas a uma erosão lenta, mas contínua (AYUSO TORRES, Miguel. 1998, p.36). Aparecem novos atores e a legitimidade dos Estado Constitucional Moderno muda de natureza, quando não é diretamente posta em dúvida. Tanto o relativo à defesa nacional como a polícia e a justiça deverão ser, no futuro, assuntos entendidos como meros serviços e não expressão de Soberania.
Alguém que possua um arquivo com aqueles cinqüenta mil franceses mais endinheirados, é mais rico que o joalheiro que possui muitos broches de ouro. Desde o momento em que há desaparecido a penúria típica da época dos reis, acredita-se que o valor está relacionado a uma boa oferta e com uma boa demanda (GUÉHENNO, 2000, p. 24). Com a revolução das telecomunicações se "desterritorializa" a rede. Ou seja, se passa da estruturação pelas vias navegáveis e pela auto-estrada a uma estrutura voltada ao transporte aéreo, às telecomunicações, que redefinem a noção de espaço. Em sua atividade econômica, o executivo da IBM que pode se conectar com a agenda exclusiva de sua empresa de qualquer parte do mundo, está tão "conectado" como o pescador do glorioso município de Navegantes, no bairro do Pontal, de onde nunca saiu, a não ser para ir a Itajaí conhecer a civilização. O essencial já não é dominar um território, mas sim ter acesso a uma rede.
A essência do Estado Constitucional Moderno está ligada a um determinado grau de homogeneidade, como era a sociedade burguesa dos séculos XVIII e XIX. Hoje há um número cada vez mais crescente daqueles que não entram no padrão cada vez mais rigoroso imposto pelas elites liberais capitalistas e que devem ser excluídos: negros, imigrantes, rechaçados, marginalizados (GUÉHENNO, 2000, p. 60). Esses seriam descartados como peças com defeito de fabricação, que não passariam por um "controle de qualidade" rigoroso. Essas peças "defeituosas" são o resultado da política liberal capitalista, que quis impor um padrão de homogeneidade artificial, insensível e desumana.
Necessita-se, portanto, de um projeto teórico de transformação radical, e não de reforma, tanto política como cultural da Sociedade em seu conjunto. E também do sistema econômico, gerador de valores que muitas vezes caminham em sentido contrário ao que se necessita para levar a termo o referido projeto. E isso, entendendo-se que a Democracia não deve ser imposta de maneira uniforme a todas as comunidades políticas do mundo, já que se sabe que o acesso ao universo democrático, por sua própria natureza, implica em graduar e dosar sua aplicação podendo produzir resultados distintos, mas contínuos.
Em linhas gerais, o mundo está sendo empurrado para um tipo de modelo de Terceiro Mundo por uma política deliberada do Estado Constitucional Moderno, cúmplice das corporações internacionais, com setores de grande riqueza e uma grande massa de miseráveis. Uma grande população supérflua desprovida de todos os direitos, porque não contribui em nada para a geração de lucros, o único valor entendido atualmente pelo capitalismo globalizado (CHONSKY, 1999, p.59).
Por outro lado, o Estado Constitucional Moderno perde centralidade e o Direito oficial se desorganiza ao coexistir com um Direito não-oficial ditado por múltiplos legisladores de fato que, graças a seu poder econômico, acabam transformando o fato em norma, disputando com o Estado o monopólio da violência e do direito (SANTOS, 1999, p.10). A caótica proliferação de poderes dificulta a identificação dos inimigos e, em algumas ocasiões, inclusive a das vítimas. A Soberania se desfaz com essa multiplicação de centros de poder.
É evidente que a Soberania da modernidade soçobrou. Os filósofos da pós-modernidade foram os primeiros a conferir, de maneira concreta e enfática, o certificado de obsolescência à sua pretensão de racionalidade.
O que se faz passar por universalismo ocidental da ilustração e dos direitos humanos não é outra coisa que a opinião de homens brancos ocidentais, que oprimem os direitos das minorias étnicas, religiosas e sexuais enquanto impõem de maneira absoluta seu "metadiscurso" com pretensão hegemônica (BECK, 2004, p. 25).
Esses fatos acarretaram conseqüências de uma enorme transcendência. Depois de séculos de certeza em ideologias frutos da modernidade, a humanidade enfrenta um heterogeneização do modelo monista, predicado pelos pensadores modernos, a ponto de pôr em questão, de modo direto e substancial, alguns de seus aspectos medulares (JÁUREGUI, 2000, p.16). Esse questionamento não afeta apenas aspectos políticos (a fadiga e saturação do Estado Constitucional Moderno), econômicos (a globalização), tecnológicos (a sociedade da informação de um lado, ou as armas de destruição em massa do outro), culturais (a reivindicação do multiculturalismo), ecológicos (a proteção e restauração do meio ambiente), mas incide no que é mais nuclear para a modernidade: o indivíduo. A pós-modernidade abala sua identidade específica: sexual, familiar, ideológica, profissional, etc.
Ao abalo desse espírito transformador, próprio da modernidade, deve-se acrescentar, ainda, a perda de referência dos grandes modelos doutrinários vigentes ao longo destes últimos séculos. A progressiva saturação e a fadiga das certezas ideológicas dominantes até agora constitui outro elemento, importante, no processo de "heterogeneização" do modelo criado pela modernidade. Está-se assistindo a uma progressiva regressão do pensamento. A ausência de um (ou de uns) modelo racional de pensamento só faz agravar as incertezas.
A única saída para o impasse pós-moderno é o urgente início de um decidido processo de teorização destinado a suprir as lacunas da modernidade. Porém, primeiro é preciso convencer aqueles que passaram a vida toda tratando das coisas do Estado Constitucional Moderno, que ele já não é mais tão importante. Esses talentos devem ser redirecionados ao processo de teorização da pós-modernidade. Saber como desgrudá-los do Estado Constitucional Moderno é que será o grande desafio.