Minha Colega Mônica,
Mais uma vez, honro-me em poder discutir Direito Penal com você, pessoa cujas indagações e opiniões em matéria penal me surpreendem toda vez que as leio.
Passo agora a opinar, iniciando com o primeiro dos dois questionamentos que você fez nessa página.
Preliminarmente, Mônica, não sei se você se associa à minha observação, mas acredito piamente que quase todas as elementares do tipo penal que você mencionou são normativas. Restam, salvo equívoco, duas elementares não-normativas: a conduta (elementar objetiva, como, aliás, toda e qualquer conduta típica a é), que é omissiva própria ("deixar de recolher"), e o dolo (elementar subjetiva), e que se encontra implícito.
Quanto á conduta, veja-se que ela está prevista explicitamente. No que pertine ao dolo, algumas aclarações de plano hão de ser efetuadas.
Em primeiro lugar, pela teoria finalista da ação que, em que pesem algumas críticas, é a teoria da conduta acatada pelo nosso ordenamento jurídico pátrio , a conduta humana penalmente relevante (seja ela comissiva ou omissiva) é uma atividade psíquica volitiva finalisticamente dirigida a um determinado resultado. Portanto, toda ação tende a um resultado, e essa "tendência" é a intencionalidade da conduta, que jamais se confunde, é claro, com a intencionalidade do resultado ilícito porventura ocorrido.
Disso, chegamos à segunda aclaração, a que se infere, como Hans Welzel nos deixa crê, que uma conduta, se é penalmente relevante (e, por conseguinte, excluídos ficam o que se denomina propriamente de meros "gestos humanos", como as condutas cometidas por quem está submetido à vis absoluta, hipnose ou sugestão, sonambulismo, etc.), é porque ela foi praticada intencionalmente, e como a conduta está descrita no tipo penal (a propósito, inexiste um único tipo penal sem conduta, e isso é um axioma jurídico-penal intransponível), e o resultado integra o dolo do agente, tem-se que todo ilícito penal tão-somente é cometido, em princípio, dolosamente, e só poderá ser criminalmente responsabilizado por culpa stricto sensu se o delito for previsto, também, na modalidade culposa.
No caso ora ventilado, a conduta típica só pode ser praticada dolosamente, inexistindo a modalidade culposa. Logo, é de se reconhecer que o agente só comete o crime contra a ordem tributária quando e porque, devendo recolher o tributo/contribuição social aos cofres públicos, não o faz porque não quer, direta ou eventualmente. Ou, sinteticamente: ele pode e deve, mas não deseja.
Então, Mônica, como você em seu questionamento diz não ter o agente recolhido o tributo/contribuição social "por hipossuficiência financeira", e não porque, podendo, simplesmente não o quis, acolho cabalmente sua opinião, filiando-me, pois, à segunda posição: sem o elemento subjetivo (dolo), desfigurada fica a própria tipicidade da conduta omissiva ao art. 2º, II, da lei n.º 8.137/90.
Refletindo ainda mais sobre o assunto, acredito haver um outro aspecto do problema, ao qual aguardo sua adesão, Mônica: como você, repita-se, falou em "hipossuficiência financeira" por parte do sujeito ativo, compreende-se que ele não pode recolher o tributo/a contribuição social. Ou seja: o mandamento imperativo-legal contido implicitamente no preceptum juris da norma penal (descrição típica) diz "recolha o tributo/a contribuição social", i. e., impõe um fazer, uma ação stricto sensu, enquanto o agente faz o contrário, deixando de recolhê-lo(a), pratica uma omissão própria, uma inação. E por que ele se omitiu? Porque, por "hipossuficiência financeira", não pôde.
Ora, não seria de se vislumbrar, na hipótese fática, um claro exemplo de inexigibilidade de conduta conforme o Direito, que é causa de exculpação?
Lembro-me bem de ter lido em "Direito Penal", do excelente e internacionalmente respeitado autor pernambucano Aníbal Bruno, um exemplo de "inexigibilidade de conduta conforme o Direito": uma mãe cria, sozinha e com muito esforço, seu filho de tenra idade. Certo dia, ela, em casa com seu filho, precisa tomar banho para ir ao trabalho e, sem ter com quem contar para ficar com a criança, deixa-a na sala, até que retornasse. Após seu asseio, a mãe volta ao local onde deixou a criança e vê que esta havia tentado pegar um objeto de uma instante e, caindo fortemente ao chão, tem um traumatismo craniano e falece.
A mãe teria cometido um fato típico (homicídio)? Doloso, nunca; culposo, talvez (culpa por imprudência ou negligência). Considerando que ela tenha agido por culpa (o que é meio discutível, mas não nos atenhamos a isso), houve antijuridicidade? Sim, porque não estava ela acobertada por causa de exclusão da ilicitude e não se fale aqui em estado de necessidade, em vista de que não havia um perigo atual nem iminente (no máximo, futuro e objetivamente previsível), além do que o "ausentar-se da sala onde estava a criança para tomar banho" não é um "ataque legítimo" ao bem jurídico "vida", da criança, e, ademais, falta o elemento subjetivo do estado de necessidade (a consciência de se encontrar o agente numa real situação de perigo).
A pergunta final é: o que o homo medius de sensibilidade psico-ética faria no lugar da mãe? Muito provavelmente a resposta será: "infelizmente, a mesma coisa que ela fez, porque não havia quem pudesse ficar com a criança". Logo, o Direito não pode exigir da mãe algo que ultrapassa os limites do razoável, noutras palavras, algo que ultrapassa aquilo que qualquer pessoa comum faria no lugar da agente (e não se olvide de que o Direito não existe para santos ou demônios, para heróis ou pusilânimes por natureza, mas para pessoas que se enquadram nos limites da natureza humana, com todos os vícios e vicissitudes que lhes são visceralmente inerentes).
A mãe do exemplo, destarte, se praticara um delito de homicídio culposo, fê-lo em situação de franca inculpabilidade: inexigibilidade de conduta conforme o Direito (exculpação supralegal).
Volvemos ao nosso crime contra a ordem tributária. A "hipossuficiência financeira" é uma realidade fenomênica empírica que interfere não só no "querer" (na intenção ou dolo do agente, portanto), mas sobretudo no próprio "poder". O Direito Penal não pode exigir do agente aquilo que a este é impossível fazer, ainda que querendo.
Disso, Mônica, concluo que, no primeiro questionamento, ou o agente agiu sem dolo, e então necessariamente o seu fato é atípico (nossas opiniões, aqui, convergem sensivelmente, cara colega), ou, se se quiser "forçar" que agiu por dolo, subsistirá a inexigibilidade de conduta conforme o Direito, que não exclui o delito já que a exigibilidade dessa conduta não é elemento do crime , mas a culpabilidade. O máximo que se pode reconhecer é a existência de um ilícito administrativo, mas não penal (o inadimplemento, como você mesma frisou muitíssimo bem, Mônica, por si só não induz à natureza criminal da conduta típica).
Quanto à questão dos "tributos indiretos", Mônica, opinarei após você discorrer mais sobre ela (inclusive, dando a sua opinião, que é o mais importante para mim).
Espero de alguma forma ter alcançado, em perspicácia, sua brilhante análise da matéria, Mônica.
Aguardo outros "desafios" seus!
Um grande abraço e até mais!
Guilherme.