Comecei a me interessar por Direito penal Econômico e o Direito Penal do Ambiente é mais fascinante ainda.
Olá O Pensador,
Interessante este artigo.
O MEIO AMBIENTE COMO BEM JURÍDICO E AS DIFICULDADES DE SUA TUTELA PELO DIREITO PENAL
José Danilo Tavares Lobato
"Convém analisar de forma detida o crime de maus-tratos a animais, uma vez que esta espécie típica é a prova de fogo do princípio de Direito Penal da exclusiva proteção de bens jurídicos. A indignidade da conduta de maltratar e sacrificar animais é uma questão ético-moral aceita pelo senso comum dos países de cultura ocidental. Somente pessoas que não compartilham deste senso ético-moral poderiam achar valiosa ou ser indiferentes à prática de agressões injustificáveis aos animais, como a mutilação de um animal em perfeito estado de saúde para fins de entretenimento. Todavia, apesar desta reprovação natural aos maus-tratos a animais, há um difícil problema a ser resolvido pelos penalistas. A problemática consiste em determinar qual o bem jurídico tutelado nesta ignóbil conduta, posto que se argumenta que os animais não representam um fator para a realização humana e nem para a manutenção do sistema social[54].
Roxin reconhecia, na segunda edição de seu tratado, que o tipo penal do crime de maus-tratos a animais é, correntemente, apontado como prova de que se deve admitir punição penal sem lesão a bens jurídicos[55]. No entanto, nesta edição, Roxin respondia a esta problemática, afirmando que, na vedação penal aos maus-tratos a animais, não existe uma proteção a uma mera concepção moral, mas sim a uma espécie de solidariedade entre as criaturas, uma vez que os animais inferiores poderiam ser vistos como “irmãos distintos” e o seu sofrimento equiparado ao do Homem[56]. Porém, na quarta e última edição de seu tratado, Roxin reformula sua abordagem sobre a temática e sustenta a superação da concepção que restringe a proteção penal à de bens jurídicos; pelo menos, em três hipóteses: proteção da flora e da fauna, dos embriões e dos interesses das futuras gerações[57]."
Uma ressalva há de ser feita. Roxin apenas menciona esta superação e abre as portas para a excepcionalidade de tutelas penais legítimas sem bens jurídcos, pois esta foi a solução encontrada para manter a coerência sistemática de um modelo conceitual muito restritivo da essência de bem jurídico. Roxin define os bens jurídicos como “circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o livre desenvolvimento do indivíduo, a realização de seus direitos fundamentais e para o funcionamento do próprio sistema”[58].
Entretanto, como o próprio Roxin reconhece, não há consenso doutrinário sobre seu conteúdo e, frequentemente, sua operabilidade é por demais vaga, de modo que a teoria do bem jurídico é, ainda hoje, um dos problemas de base-penal menos clarificados[59]. No entanto, neste ponto, pode-se fazer reparos ao pensamento de Roxin. É importante que se defenda a atualidade e a imprescindibilidade de haver bem jurídico para a tutela penal ser legítima. Criticamente ao posicionamento de Roxin, Stratenwerth pondera que a restrição conceitual do bem jurídico às eventuais condições de existência e de desenvolvimento humano, enquanto ser social, ignora o fato de que cada grupamento humano conhece e precisa de diversas normas de condutas culturalmente desenhadas, normas estas que não tratam de bens com uma solidez consistente[60]. O que se deve exigir e considerar imprescindível é a referibilidade do conceito de bem jurídico à pessoa humana, vista, sob o ponto de vista normativo, a partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Para Stratenwerth, é insustentável o dogma da ilegitimidade das normas penais que não protegem bens jurídicos determinados, visto que estes podem ter um caráter indeterminado, tal como o Meio Ambiente[61]. A distinção entre bens jurídicos determinados e indeterminados não é a melhor, uma vez que o mais correto está em distinguir os bens jurídicos em determinados de plano e bens jurídicos determináveis, isso conforme a demanda de esforço exigida do intérprete para constatar – ou refutar – a existência de um bem jurídico prévio à edição da norma penal. Stratenwerth afirma que não se pode negar proteção penal ao Meio Ambiente, primeiro, porque dogmaticamente é insustentável a restrição da tutela penal a apenas bens jurídicos determinados e, segundo, porque a Constituição[62] foi expressa ao assinalar o dever estatal de proteção ao Meio Ambiente[63]. Concorda-se que o critério, ora defendido, de bem jurídico é mais aberto do que o conceito de bem jurídico determinado, tal como classificado por Stratenwerth, e que por tal razão será objeto de contestação, posto que poderia haver uma dilatação de tal ordem no conceito de bem jurídico que seria impossível encontrar um tipo penal ilegítimo por falta de bem jurídico, já que toda incriminação justificar-se-ia, vide uma hipotética criminalização de todo e qualquer movimento em favor da retirada do Colégio Pedro II do âmbito do governo federal[64]. Ocorre, entretanto, que o conceito defendido encontra-se imune a esta distorção. A imunidade do conceito de bem jurídico defendido advém da necessária referência do injusto penal – esta entendida em sentido protetivo e não contradizente – com a dignidade da pessoa humana. Logo, incriminações, tais como a citada por Greco, são ilegítimas e inconstitucionais, uma vez que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos foi dilacerado no instante em que foi desconsiderado o princípio da dignidade da pessoa humana e, por consequência, o princípio da proporcionalidade. Ao ponderar as vantagens e desvantagens do tipo penal, o princípio da proporcionalidade se configura como “parâmetro crítico” e exigência de “uma legislação racional”[65].
A opção legislativa de incriminar lesões e ameaças ao Meio Ambiente necessita de uma avaliação em concreto; não sendo possível uma definição prévia e abstrata no sentido de que toda incriminação de condutas lesivas ao Meio Ambiente é legítima em razão de a Constituição ter determinado a sua proteção. Há incriminações legítimas, por exemplo, o crime de maus-tratos a animais e o de poluição – este último por afetar diretamente as condições de habitabilidade do planeta – tanto quanto há outras na seara ambiental cuja ilegitimidade é patente, como a do crime do artigo 49 da Lei 9.605/98, em sua forma culposa[66] e a do artigo 68 da citada lei[67]. Com base em Zaffaroni, é possível que se diga que se o Direito Penal não for “antropologicamente fundado”, ele não será efetivo e se traduzirá em inevitáveis frustrações[68].
Incorporando o problema à realidade urbana da cidade do Rio de Janeiro, pergunta-se: em uma mortandade pontual de peixes na Lagoa Rodrigo de Freitas provocada pelo derramamento doloso do resto de combustível do tanque de um posto de gasolina quando da limpeza do mesmo para futuro reparo, o proprietário do posto, que optou por poluir a lagoa, matando os peixes, como forma de esvaziar o tanque, deve sofrer as penas do artigo 33 da lei 9.605/98, que concretamente é uma espécie de maus-tratos, tanto quanto a conduta prevista no artigo 32 com base em que fundamento material? Ou seja, qual foi o bem jurídico violado em questão, se é que existe?
Em primeiro lugar, há de se afirmar a existência de bem jurídico tutelado preexistente à criminalização do crime de maus-tratos a animais, aqui entendido em sentido amplo, abarcando não apenas o tipo penal do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais. Corretamente, exclama Schünemann que o desprezo do princípio da proteção de bens jurídicos e o emprego politicamente deturpado do Direito Penal no Terceiro Reich evidenciaram a imprescindibilidade de se restringir o uso do Direito Penal[69]. Não obstante reconheça-se a dignidade penal do crime de maus-tratos a animais, sabe-se da dificuldade de se perceber, à primeira vista, o bem jurídico tutelado. A dignidade penal desta conduta reside no fato de haver uma projeção do espectro da vida humana na vida animal[70].
A existência animal espelha a humana, afinal todos são animais, apenas com a diferença de que eles são irracionais, enquanto que o homem é um ser racional.
Como defende Schünemann, para o reconhecimento dos bens jurídicos coletivos, devem eles compreender “as condições transindividuais de uma convivência próspera”[71]. Por óbvio não se está defendendo a convivência próspera entre seres humanos e animais irracionais, mas sim entre as próprias pessoas. A conduta de mutilar, com finalidade puramente recreativa, um animal, por exemplo, um cachorro, deve ser punida porque este ser vivo reflete a vida e a integridade físico-psíquica humanas e, por tal razão, a mutilação animal atinge a própria dignidade humana. É por esta razão que se sente raiva, asco, dentre outros sentimentos, quando se vislumbra o atuar de alguém que maltrata os animais. Sentimentos estes que surgem, da mesma forma, ainda que em maior intensidade – pelo menos em regra, mas não necessariamente –, quando o maltrato é cometido contra uma pessoa. Não se defende a tutela do sentimento humano frente a estas condutas ignóbeis e nem o sentimento de solidariedade entre Homens e animais. Defende-se, sim, a tutela da vida e da integridade física dos animais enquanto projeções da vida e da integridade humanas, pois suas violações atingem a própria dignidade humana. Este espelho valorativo importa ao Homem na medida em que ele contribui para a formação de sua personalidade e do modo de agir para com seus semelhantes, tendo em vista a referida convivência próspera. A vedação dos maus-tratos a animais tutela valores básicos da pessoa humana e da convivência humana e não dos animais em si próprios ou de eventual relação fraternal ou solidária que se tenha com estes. Assim, a partir da concretização do bem jurídico tutelado no crime de maus-tratos a animais, pode-se eliminar eventuais dúvidas quanto à imprescindibilidade do bem jurídico para haver legitimidade na tutela penal.
Juarez Tavares faz uma distinção entre bem jurídico e função, em que o bem jurídico representa um valor humano universal real material ou ideal[72] e independente de qualquer relação funcional para existir e conformar sua essência, pois é tomado como valor em si mesmo[73]. A função, em contrapartida, explica Juarez Tavares, já não existe por si mesma e forma-se a partir da dependência existente entre uma relação e suas variáveis[74]. A função somente possibilita “cálculos de predicados” que jamais se confundem com valores[75]. Para o Meio Ambiente ser um bem jurídico penalmente tutelável, e não uma função, deve ele ser configurado como um “bem essencial da pessoa humana e sua relação com outras pessoas e com a natureza”[76].
Neste sentido, já se encontra respondida a pergunta anteriormente formulada. A fauna aquática penalmente protegida, pelo citado artigo 33, contra a mortandade indiscriminada de peixes, o é enquanto reflexo do valor esculpido na vida e dignidade humanas. Assim, não se deve ter dúvidas de que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos permanece presente em todos os tipos penais legítimos e constitucionais, funcionando como um critério exclusivamente negativo, não podendo jamais trabalhar como motivador do expansinismo penal. Em termos práticos, o crime de maus-tratos a animais é legítimo, pois visa a proteger um bem jurídico constitucionalmente reconhecido.
No entanto, é de bom tom ressaltar que este valor concretizado na figura do bem jurídico não impõe necessariamente a tutela penal, inclusive na seara ambiental. A tutela do bem jurídico pode ser de cunho administrativo, pois não há imposição constitucional em favor da tutela penal em detrimento da tutela administrativa, nem mesmo em sede ambiental. A escolha de qual instrumental a ser utilizado, em cada caso, tem caráter político, mas este ato político encontra-se condicionado pelos princípios penais liberais, que têm fundamento constitucional e formam um dos pilares do Estado Democrático de Direito, princípios estes que se relacionam com os princípios constitucionais de cunho mais amplo, tais como o da proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana. Verifique-se, então, que não são corretas as defesas de que o parágrafo 3º do artigo 225 da Constituição impõe a aplicação incondicional e indiscriminada do Direito Penal para toda e qualquer hipótese de lesão ou ameaça ao bem jurídico ambiental. "