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    joao paulo Quarta, 26 de março de 2003, 12h50min

    INTRODUÇÃO

    Passados mais de trezentos anos desde o aparecimento da obra de John Locke[2] e um pouco menos desde a primeira difusão do célebre «traité» de Montesquieu[3], o Estado forjado a partir dessas obras de filosofia política, e pioneiramente positivado nos EUA (1787) e na França (1791), vem passando por freqüentes e profundas alterações, todas elas desencadeadas pela formidável evolução da técnica, pela radical transformação do modo de produção econômica e pela conseqüente modificação das estruturas sociais. Assim, de um Estado absenteísta e mero garantidor daordem e do cumprimento dos contratos, expressão máxima do direito de propriedade, o mundo assistiu à emergência de um Estado intervencionista, provedor de prestações tendentes a minimizar e a corrigir as imperfeições e iniquidades do sistema capitalista. No plano organizacional, como não poderia deixar de ser, as modificações não foram de menor relevância.
    Com efeito, se o Estado oitocentista pôde perfeitamente se encaixar no esquema organizatório e funcional preconizado pelos citados pensadores, dúvidas passaram a existir quanto à adaptabilidade do figurino institucional por eles concebido, sobretudo em face da colossal expansão das atividades produtivas proporcionada pelas revoluções industrial e tecnológica e do correspondente agigantamento das atividades de regulação e correção que o Estado, em conseqüência, teve que assumir.
    É, pois, nesse contexto de irreprimível necessidade de intensificação da presença corretiva do Estado no jogo capitalista que nasce a idéia de regulação como indeclinável função governamental, pelo menos naquele que é visto como o seu berço histórico, isto é, os Estados Unidos da América.
    De fato, nação-símbolo e terra de eleição do chamado laissez-faire econômico, os Estados Unidos se notabilizaram até o final do século 19 e início do século 20 pelo culto obstinado ao dogma da não-intervenção do Estado nas relações econômicas privadas. Tal período, conhecido no direito público do país como o da «Era Lochner», foi paulatinamente substituído a partir do início do século 20 por uma cada vez mais intensa presença regulatória do Estado, chancelada por sucessivas decisões da Corte Suprema. Foram tão profundas as mudanças no papel reservado ao Estado americano em matéria econômica que alguns autores chegam ao ponto de qualificar essa brusca alteração de rota como uma verdadeira mudança de regime ou até mesmo como uma “revolução sem derramamento de sangue” («a bloodless revolution»).[4]
    O que é certo é que esse fenômeno de mutação constitucional, desencadeado pelas mudanças estruturais por que passou a sociedade, teve como consequência, no plano das instituições políticas, o surgimento do imperativo de mudança nas formas de exercício das funções estatais clássicas. O fenômeno da Regulação, tal como concebido nos dias atuais, nada mais representa, pois, do que uma espécie de corretivo indispensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e às deformações do regime capitalista. De outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por esse mesmo capitalismo.
    Em célebre obra, na qual examina o crescimento da industrialização e da democracia, bem como o impacto e os problemas que esses fenômenos trouxeram à arte de governar, James M. Landis estabelece com certa perplexidade o confronto entre as idéias que se tinha acerca do papel do Estado no campo econômico no início do século XIX e no período pós-Lochner. Landis assinala que, se os avanços no campo dos transportes, das comunicações e da produção em massa constituíram elementos de transformação da ordem social, os problemas mais profundos relacionavam-se com as questões econômicas e sociais brotadas na era das invenções mecânicas. Para resolvê-los, algumas soluções foram extraídas do humanitarismo. Mas o essencial mesmo veio da constatação, pelas classes dirigentes, da absoluta necessidade de se promover o bem-estar dos governados. Para isso, era preciso fazer concessões, a tal ponto que se chegou finalmente à conclusão de que o Estado do «laissez-faire» chegara à exaustão.
    Assim, constatando as deficiências das funções judicial e legislativa no período do laissez-faire, o autor conclui dizendo que a nova função reguladora do Estado representa uma tentativa de se consertar tais deficiências institucionais, assinalando com toda clareza: «The administrative process is, in essence, our generation’s answer to the inadequacy of the judicial and the legislative processes. It represents our effort to find an answer to those inadequacies by some other method than merely increasing executive power. If the doctrine of the separation of power implies division, it also implies balance, and balance calls for equality. The creation of administrative power may be the means for the preservation of that balance, so that paradoxically enough, though it may seem in theoretic violation of the doctrine of the separation of power, it may in matter of fact be the means for the preservation of the content of that doctrine».[5]
    Portanto, para o direito norte-americano, matriz desse novo formato de Estado, foram esses os fatores determinantes da brusca guinada institucional que, certamente, estarreceria tanto Locke quanto Montesquieu. Mais estarrecidos ainda com o «novo» fenômeno devem ficar aqueles que, por acomodação intelectual e acadêmica, ou mesmo apego às idéias estabelecidas e desdém por tudo o que se passa fora das fronteiras nacionais, se vêem subitamente confrontados com os graves problemas de natureza constitucional engendrados pelas agências propriamente reguladoras e pela já variada progenitura por elas espalhadas pelos quatro cantos do Planeta.
    Com efeito, não tem sido sem percalços a trajetória percorrida pelas agências reguladoras nesses seus mais de cem anos de existência. Sobre elas têm sido suscitados questionamentos jurídico-constitucionais dos mais variados matizes, envolvendo desde a falta de legitimidade democrática e de compromisso para com o princípio de separação de poderes, que lhes seria inerente, passando pela crítica ao seu modo de atuação e ao suposto «despotismo» que elas encarnariam, na medida em que, comandadas por técnicos e experts supostamente apolíticos e eqüidistantes das lutas pelo poder que se travam entre as diversas facções em que se divide o corpo social, essas entidades em realidade estariam se subtraindo ao procedimento democrático de controle instrumentalizado através do processo político («political accountability»).
    O Brasil, em razão da artificialidade e ligeireza com são tratados muitos dos assuntos de capital importância para a regular evolução e condução dos seus negócios públicos, começa a debater questões dessa natureza, em razão da recente introdução, entre nós, por via legislativa, das primeiras agências vocacionadas ao exercício da regulação e fiscalização de atividades vitais da nossa economia, tais como energia elétrica, telecomunicações e petróleo.
    Recepcionado o novo instituto pelo nosso Direito, multiplicam-se as indagações a respeito dos problemas constitucionais que ele suscita: os fatores e condições empíricas que impulsionaram o surgimento das agências reguladoras nos EUA seriam os mesmos que estariam conduzindo à guinada que representa para o Brasil a adoção da «nova» forma de regulação e do novo tipo de estruturação estatal que ela engendra? Seriam idênticas as premissas impulsionadoras das mudanças ocorridas nos EUA ao longo do século 20 e que aqui mal acabam de se instalar? Aparentemente, não. Para os EUA, a regulação por intermédio de agências independentes constituiu, como já dito, uma brutal (embora não abrupta) ruptura com uma concepção de Estado mínimo, identificado como «policing model», isto é, um Estado alheio à questão do bem-estar econômico da população, e sobretudo proibido de empreender intromissão mais arrojada em áreas tais como fixação de preços, disseminação de informações úteis aos usuários, imposição, consolidação e monitoramento de práticas concorrenciais justas, em suma, regulação de mercados. Noutras palavras, trata-se do abandono da conhecida visão do Estado que, segundo Adam Smith, seria regulado pura e simplesmente pela «mão invisível» do mercado. No Brasil, diversamente, a nova regulação nasce em um contexto inteiramente diferente. Aqui tenta-se abandonar uma concepção de Estado altamente clientelista, o qual, por certo, sempre foi ativo no campo da economia, mas não para regulá-la eficazmente, mas sim para servir aos interesses dos diversos estamentos superiores de que sempre foi «presa». Doravante esse Estado pretende transferir a atores privados o essencial das atividades que antes detinha a título de monopólio ou quase-monopólio, assumindo o papel de normatizador e de fiscalizador.
    Trata-se, como se vê, de um implante, de uma «greffe» aplicada a tecidos de textura diferente. Em suma, mais uma tentativa de se ministrar o mesmo remédio a sintomas e pacientes com diagnósticos totalmente diferentes.
    Neste despretensioso ensaio, tentaremos abordar, num primeiro momento, a gênese e o regime jurídico das agências reguladoras. Num segundo momento, discutiremos algumas das questões constitucionais suscitadas por essas entidades, especialmente nos países que adotaram esse modelo de organização regulatória estatal há mais tempo do que nós. Por fim, concluiremos com algumas considerações acerca de uma possível «progenitura» das agências, isto é, falaremos a respeito de algumas instituições de direito comparado que nas últimas décadas, calcadas na idéia-matriz das agências reguladoras, brotaram mundo afora.

    1. GÊNESE, EVOLUÇÃO, CONCEITO E REGIME JURÍDICO DAS AGÊNCIASREGULADORAS

    Previamente ao exame da gênese e evolução das agências reguladoras, parece-nos conveniente tentar trazer algumas clarificações conceituais acerca do novo instituto e da sua natureza jurídica.

    1.1 Clarificações conceituais

    Não se deve confundir «agência executiva» («executive agency» ou «administrative agency» no direito norte-americano) com «agência reguladora independente»(«independent regulatory commisssion»). No Direito brasileiro, Agência Executiva nada mais é do que uma Autarquia ou Fundação Pública dotada de regime especial graças ao qual ela passa a ter maior autonomia de gestão do que a normalmente atribuída às autarquias e fundações públicas comuns. Trata-se em realidade de uma qualificação jurídica que pode ser dada a uma autarquia ou fundação, ampliando-lhe a autonomia gerencial, orçamentária e financeira, devendo a entidade firmar contrato de gestão com a administração central, no qual se compromete a realizar as metas de desempenho que lhe são atribuídas.[6] No dizer do professor Caio Tácito, representam «um processo interno de desconcentração administrativa. Assumem, em nível de autonomia, a gestão de serviços públicos específicos que conservam a natureza estatal».[7]
    A transposição literal da expressão «executive agency» ao nosso vernáculo pode conduzir a mal-entendidos. No direito dos EUA, agência executiva tem as mesmas características jurídicas das nossas autarquias. São entidades administrativas dotadas de personalidade jurídica própria, criadas por lei com a atribuição de gerenciar e conduzir, de forma especializada e destacada da Administração Central, um programa ou uma missão governamental específica. Apesar de gozarem formalmente de autonomia funcional no setor específico de atividades que lhe é atribuído, são entes vinculados à Administração Central, estão sujeitas à supervisão e à orientação do Presidente e do Ministro de Estado («Secretary») responsável pelo setor em que se enquadra a respectiva atividade estatal. Mais do que isso, sua direção, em cuja cúpula em geral (mas nem sempre) tem assento um único agente estatal, pode ser exonerada a qualquer momento pelo Presidente, embora para a nomeação seja invariavelmente imprescindível a aprovação do Senado.
    Já a Agência Reguladora («Independent Regulatory Commission», na terminologia mais usual do direito dos EUA) é uma entidade administrativa autônoma e altamente descentralizada, com estrutura colegiada, sendo os seus membros nomeados para cumprir um mandato fixo do qual eles só podem ser exonerados em caso de deslize administrativo ou falta grave («for cause shown»). A duração dos mandatos varia de agência para agência e não raro é fixada em função do número de membros do colegiado, de sorte que os membros de uma agência composta de cinco Diretores («Commissioners») terão mandatos de cinco anos escalonados de tal maneira que haja uma vacância a cada ano. A nomeação, inclusive a do presidente do colegiado («Chairman»), cabe ao Chefe do Executivo com prévia aprovação do Senado. [8]
    Portanto, o fator decisivo de distinção entre uma «administrative agency» e uma «independent regulatory commission» reside no seu relacionamento com o Chefe do Executivo. Se o Presidente dos EUA tem total controle sobre as agências executivas, tendo competência legal para ditar-lhes a política a ser seguida e até mesmo exonerar a qualquer momento os seus dirigentes, o mesmo já não ocorre em relação às agências tipicamente reguladoras, que são independentes no estabelecimento da regulamentação do setor de atividade governamental que lhes é atribuído por lei, gozando os seus diretores, para tanto, de estabilidade funcional garantida pelo fato de a nomeação ser efetivada para um mandato fixo. Em outros aspectos, tais como a organização interna, o modo e o procedimento de atuação, não há grandes diferenças entre esses dois tipos de organização. Frise-se, por oportuno, que a forma de organização colegiada não é de forma alguma um traço distintivo exclusivo das agências tipicamente reguladoras, pois na Administração federal americana contam-se inúmeras «administrative agencies» (isto é, «autarquias», nos termos do nosso direito administrativo) que se revestem dessa forma organizacional. Já para o Direito brasileiro, agência reguladora é uma autarquia especial, criada por lei, também com estrutura colegiada, com a incumbência de normatizar, disciplinar e fiscalizar a prestação, por agentes econômicos públicos e privados, de certos bens e serviços de acentuado interesse público, inseridos no campo da atividade econômica que o Poder Legilsativo entendeu por bem destacar e entregar à regulamentação autônoma e especializada de uma entidade administrativa relativamente independente da Administração Central.
    Nossas agências configuram, portanto, uma importação de um conceito, de um formato e de um modo específico de estruturação do Estado. Faltam-lhes, contudo, e isso poderá lhes ser fatal no curso do seu amadurecimento institucional, um maior rigor na delimitação de seus poderes e na compatibilização destes com os princípios constitucionais, um controle efetivo pelo Senado do processo de designação dos seus dirigentes, um controle mais eficaz de suas atuações pelo Judiciário e pelos órgãos especializados do Congresso e, por fim, uma maior preocupação com o estabelecimento, em seu benefício, de um mínimo lastro democrático, de sorte a evitar que elas se convertam em instrumento de dominação de uma determinada tendência político-ideológica. Sobre este último ponto, aliás, a vigilância há de ser redobrada, haja vista as fragilidades intrínsecas da nossa vida institucional.
    Natureza Jurídica — No plano jurídico formal, as agências brasileiras nada mais são, pois, do que as velhas e conhecidas autarquias, pessoas jurídicas de direito público, agora com nova roupagem e dotadas de um grau maior de independência em relação ao poder central, daí a qualificação de «especial» que lhes é conferida pela lei[9]. Segundo a Professora Maria Sylvia Di Pietro, as agências estão sendo criadas como autarquias de regime especial porque “sendo autarquias, sujeitam-se às normas constitucionais que disciplinam esse tipo de entidade; o regime especial vem definido nas respectivas leis instituidoras, dizendo respeito, em regra, à maior autonomia em relação à Administração Direta; à estabilidade de seus dirigentes, garantida pelo exercício de mandato fixo, que eles somente podem perder nas hipóteses expressamente previstas, afastada a possibilidade de exoneração ad nutum; ao caráter final de suas decisões, que não são passíveis de apreciação por outros órgãos ou entidades da Administração Pública.”[10] Quase na mesma linha da ilustre professora da USP, Marcos Augusto Perez[11] sustenta que as agências “foram concebidas como organismos independentes e autônomos em relação à estrutura tripartite de poderes estatais. Para elas se delegavam funções de cunho legislativo (função reguladora), judicial (função contenciosa) e administrativo (função de fiscalização). A idéia que presidiu a criação dessas entidades era dotar o Estado de órgãos que possuíssem agilidade, especialidade e conhecimento técnico suficientes para o direcionamento de determinados setores da atividade econômica, segmentos estes que potencialmente representariam uma fonte de constantes problemas sociais. (...) As agências reguladoras são, em essência, organismos típicos do ‘estado de bem-estar’, voltados a monitorar a intervenção da Administração no domínio econômico, atividade que realizam através do poder regulamentar que lhes é atribuído, mas também através de função contenciosa e de fiscalização.”
    Já para o Prof. Arnoldo Wald e Luiza Rangel Moraes, as agências reguladoras são “organismos constituídos pelo Poder Público, para normatizar, aplicar as normas legais, regulamentares e contratuais da atividade sob sua tutela, outorgar e rescindir os contratos de concessão, bem como fiscalizar os serviços concedidos, além de funcionar, em muitos casos, como instância decisória dos conflitos entre as empresas concessionárias e os usuários.” [12]
    Destoante e levemente cético em relação à suposta inovação que representariam as agências até hoje instituídas entre nós, o Professor Celso Antonio Bandeira de Melo critica os atributos dessas novas entidades, afirmando que “independência administrativa”, “ausência de subordinação hierárquica” e “autonomia administrativa” são elementos intrínsecos à natureza de toda e qualquer autarquia, nada acrescentando ao que lhes é inerente. Assim, nisto não há peculiaridade nenhuma; o que pode ocorrer é um grau mais ou menos intenso destes caracteres.” [13]
    Em suma, trata-se de pessoas jurídicas de direito público, espécie do gênero autarquia, às quais são conferidas as funções de regulamentação, fiscalização e decisão em caráter descentralizado no âmbito de determinado setor da atividade econômica e social de grande interesse público. Por serem autarquias, devem ser criadas por lei, como determina o art. 37, XIX da Constituição Federal. Em razão do princípio da simetria, sua extinção também só pode se dar através de lei específica e por motivos de interesse público.

    1.2 Gênese das agências reguladoras

    Introduzidas no direito norte-americano no final do século XIX, as agências reguladoras só vieram a se consolidar na paisagem administrativa do país a partir do «New Deal», a colossal mudança de postura governamental ocorrida nos EUA sob Franklin Roosevelt, levada a efeito para retirar o país da Depressão dos anos 30. Tal ruptura marca, como se sabe, o surgimento ali do que se convencionou denominar «the regulatory state» - isto é,o Estado altamente interventor nas atividades econômicas, intervenção essa que se instrumentaliza precisamente através das agências.
    Conrado Hübner Mendes, em primoroso artigo, sintetiza à perfeição a trajetória das novas entidades: “A história das agências reguladoras nos Estados Unidos passou por quatro fases principais. O nascimento desse modelo de regulação deu-se em 1887, quando se verificou a premente necessidade de se conferir uma resposta reguladora às disputas que estavam a ocorrer entre as empresas de transporte ferroviário e os empresários rurais. Caio Tácito mostra tal situação: ‘como as companhias de estradas de ferro procurassem obter o lucro máximo nas tarifas que livremente estipulavam — sob o critério do mais alto preço que a clientela pudesse suportar, as traffic would bear- , os fazendeiros do Oeste, organizados no movimento conhecido como National Grange, atuaram como grupo de pressão sobre as Assembléias estaduais, obtendo que fossem reguladas, legislativamente, as tarifas ferroviárias e o preço de armazenagem de cereais.’ Nesse ano, criou-se então a ICC e um pouco mais tarde, a FTC, destinadas a controlar condutas anticompetitivas de empresas e corporações monopolistas. Numa Segunda fase, localizada entre os anos 1930 e 1945, a economia norte-americana, abalada por uma forte crise, foi socorrida por uma irrupção de inúmeras agências administrativas que, como parte da política o New deal, liderada pelo Presidente Roosevelt, intervieram fortemente na economia. Tal intervenção, suprimindo os princípios básicos do Liberalismo e conferindo ampla autonomia a tais agências administrativas, foi motivo de um início de debate constitucional-jurisprudencial substancioso. O terceiro momento, entre 1945 e 1965, foi marcado pela edição de uma lei geral de procedimento administrativo (APA — Administrative Procedural Act), que trouxe uma uniformidade no processo de tomada de decisões pelas agências, conferindo-lhes maior legitimidade. Entre os anos de 1965 e 1985 defrontou-se o sistema regulatório americano com um problema que desvirtuou as finalidades da regulação desvinculada do poder político: a captura das agências reguladoras pelos agentes econômicos regulados. Explique-se: os agentes privados, com seu colossal poder econômico e grande poder de influência, diante de entes reguladores que dispunham de completa autonomia perante o poder político, não encontraram dificuldades para implantar um mecanismo de pressão que acabasse por quase que determinar o conteúdo da regulação que iriam sofrer. Os maiores prejudicados, por conseqüência, foram os consumidores. Finalmente, em 1985, num processo que continua até os dias de hoje, o modelo começou a se redefinir para que se consolide um modelo regulador independente, mas com os controles externos adequados para garantir essa independência.”[14]
    Como se vê, essas entidades nasceram da indeclinável necessidade de mudança de curso do sistema capitalista e da conseqüente alteração da postura do Estado em relação às relações econômico-sociais engendradas por este sistema. Consolidadas e legitimadas pela crise econômica dos anos 30 e pelos seus desdobramentos institucionais, paulatinamente elas se aperfeiçoaram e se multiplicaram, integrando-se definitivamente na estrutura administrativa do Estado norte-americano.
    Numa etapa ulterior, que fixaríamos arbitrariamente lá por volta dos anos 70, elas começam a ser recepcionadas no ordenamento jurídico de alguns países de tradição jurídica romano-germânica, como é o caso da França, onde a sua primeira aparição se dá em 1978.
    No Brasil, que também pertence a essa última família jurídica, embora com cada vez mais numerosos elementos do sistema da common law, elas aportam na segunda metade dos anos 90, no bojo do processo de desengajamento do Estado da prestação direta de vários serviços públicos.
    Com efeito, no seu Título VII, a Constituição de 1988 dispõe sobre a ordem Econômica e Financeira,[15]disciplinando especialmente o papel do Estado como agente normativo e regulador e como executor subsidiário de atividades econômicas. Dispõe ainda sobre a possibilidade de transferência à iniciativa privada da prestação de alguns serviços que durante muito tempo estiveram sob controle estatal. No plano infraconstitucional, a Lei 8987/95, regulamentando o mencionado artigo 175 da CF/88, trouxe novas regras sobre o regime de concessões e permissões de serviços públicos. Com fundamento na nova ordem constitucional e legal, foram editadas as leis 9427/96, 9472/97 e 9478/97 que criaram respectivamente a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e Agência Nacional do Petróleo (ANP), às quais foi transferida a atribuição regulatória dos setores de energia elétrica, das telecomunicações e do petróleo[16]. Posteriormente, a lei 9782/99 criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, prenunciando, assim, a exemplo do que ocorreu nos EUA e em outros países, um movimento de expansão dessas entidades, que a passam a ter poder de intervenção nos mais diversos setores em que se faz necessária a presença reguladora e disciplinadora do Estado, e não apenas nas áreas de atividade econômica outrora monopolizadas pelo poder público.
    As agências podem ser criadas tanto em âmbito federal quanto na esfera estadual, com o objetivo de regular a prestação por operadores privados de serviços públicos delegados à iniciativa privada. A reprodução dessa tendência regulatória tem seguido dois modelos: de um lado, o “modelo setorial especializado”, em que são criadas diversas agências, uma para cada setor (como no caso das agências federais supramencionadas); e o “modelo multissetorial”, em que se cria apenas uma agência incumbida da regulação de todos os serviços públicos prestados por particulares, como é o caso do Estado do Rio de Janeiro, onde foi criada a ASEP-RJ (Agência Reguladora de Serviços Públicos), responsável pela fiscalização e regulação de todos os serviços públicos objeto de concessão ou permissão pelo Estado[17].

    1.3 Estrutura organizacional, atribuições e modo de funcionamento das agências

    Em linhas gerais, pode-se dizer que, no aspecto organizacional, o legislador brasileiro foi bastante tímido ao estabelecer o figurino institucional e o modus operandi das nossas agências reguladoras. Com efeito, constata-se que pouco se ousou nesse campo quando se confrontam os novos entes com os seus similares do direito comparado.
    De fato, as leis que criaram as primeiras agências reguladoras grosso modo estabeleceram que elas serão dirigidas por um Diretor-Geral e por outros tantos diretores, os quais atuarão sob regime de colegiado. Previram também a existência de um Ouvidor, a cargo de quem fica a incumbência de zelar pela qualidade do serviço prestado pelas empresas privadas bem como de solucionar eventuais problemas e reclamações dos consumidores e usuários do serviço. O Diretor-Geral é nomeado pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pelo Senado Federal, com apoio no permissivo constitucional do art. 52, III, “f”, da Constituição de 1988 e das leis de criação das agências.[18]
    Examinemos ainda que superficialmente esse modelo de estruturação das nossas agências à luz do direito comparado, sublinhando os riscos institucionais que ele encerra.
    De saída, note-se que em razão do caráter de manifesta preponderância do Poder Executivo e de uma certa tendência do Legislativo nacional a «renunciar» a algumas das suas mais salientes e importantes atribuições (a de controle do Executivo), as nossas agências já nascem com a marca de um inequívo deficit democrático. Nomeados os seus dirigentes máximos pelo Chefe do Poder Executivo mas sem a contrapartida de um controle e triagem efetivos dessas nomeações por parte do Poder que representa a soberania popular, as agências consagrarão, provalvemente, um processo ainda mais intenso de fortalecimento do Executivo em detrimento do Legislativo. E o que é mais grave: em um país sem uma verdadeira tradição de alternância política, em que os homens vocacionados a aceder ao Poder têm invariavelmente o mesmo perfil sócio-econômico e ideológico, é razoável temer que elas venham chancelar a hegemonia de um grupo político, de um modo de pensar e conceber a sociedade. Noutras palavras, provavelmente as agências constituirão um instrumento suplementar de fragilização da nossa já frágil democracia.
    Tome-se como exemplo concreto de comparação a trajetória já longa das agências norte-americanas e das suas similares do direito francês. Objeto de críticas acerbas[19] e das mais variadas naturezas, a principal delas sendo a de que constituem uma usurpação do poder que o Povo delega aos órgãos representativos, as agências norte-americanas foram paulatinamente se adaptando às exigências democráticas, tentando assim se livrar da pecha de que seriam uma espécie de ditatura de uma elite técnica, apolítica e irresponsável do ponto de vista político. Para aplacar tais críticas as leis que instituíram algumas das mais recentes agências americanas impõem um «entendimento bipartidário» como condição para nomeação dos quadros dirigentes da entidade.
    Já o Direito francês foi ainda mais longe. Adotando, por analogia, a fórmula escolhida pela Constituição da Quinta República para a nomeação dos membros da Jurisdição Constitucional, a legislação francesa sobre a matéria invariavelmente atribui, em proporções absolutamente idênticas, a competência para nomear os dirigentes das «Autorités Administratives Indépendantes» (denominação que tomam na França as agências reguladoras) às três maisimportantes autoridades políticas do Estado: Presidente da República, Presidentes da Assembléia Nacional e do Senado.Note-se, em primeiro lugar, a presença inequívoca de um elemento de «checks-and-balances»: o Primeiro-Ministro, que é a autoridade responsável pela condução do dia-a-dia da Administração e que é o seu chefe de fato e de direito, não tem em princípio poder para nomear os diretores das agências reguladoras independentes, cabendo tal atribuição ao Chefe de Estado, árbitro de toda a vida institucional, e aos presidentes das Casas Legislativas, representantes da soberania nacional. Por outro lado, tendo em vista as peculiaridades do sistema político francês, no qual as duas Câmaras do Legislativo têm perfil ideológico e comportamento político absolutamente distintos (o Senado, mais conservador e tradicionalista, se identifica mais facilmente com a chamada «France profonde», ou seja, com aquele segmento da Nação mais identificado com os valores da vida rural, de província), bem como o fato de que o fenômeno de coexistência institucional denominado «Coabitação»[20] não raro faz com que a condução dos assuntos governamentais seja dividida por duas personalidades pertencentes a partidos políticos adversários, o sistema ali adotado parece ser mais consentâneo com as exigências democráticas. As agências francesas, assim, são mais representativas das múltiplas sensibilidades político-ideológicas em que se divide a Nação. Ganha com isso a democracia.
    Confrontando-se a forma de nomeação escolhida pelo legislador brasileiro com esses exemplos do direito comparado, chega-se à conclusão de que o Brasil manteve-se fiel à sua tradição de pouco caso para com os princípios democráticos. Com efeito, as leis de regência de nossas agências prevêem em alguns casos[21] a criação de um Conselho Consultivo, «órgão de participação institucionalizada da sociedade na Agência». Tal Conselho é composto por «representantes indicados pelo Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas entidades de classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da sociedade, nos termos do regulamento». No entanto, trata-se de órgão meramente «consultivo», eis que suas «recomendações» não têm caráter vinculante para a Direção da entidade, que, esta, sim, é detentora de poder efetivo e permanece na prática sob a influência solitária do Executivo.

    As Atribuições e os Métodos de atuação das agências — Como tem-se afirmado, as agências norte-americanas são detentoras de funções «quase legislativas», «quase executivas» e «quase judiciais». Noutras palavras, a uma única agência podem ser outorgadas as mais diversas e importantes atividades estatais, tais como a edição de normas com força de lei e amplo e decisivo impacto sobre toda a sociedade; a condução de investigações de certas condutas irregulares e a conseqüente fixação de penalidades aos particulares responsáveis por essas condutas; e o julgamento de certos litígios inerentes à atividade objeto de regulação, dependendo da regulamentação específica de cada agência. [22] Na prática, as agências «imitam» as atividades dos três Poderes tradicionais.
    Com relação à chamada função «quase executiva» pouco há que se dizer, eis que ela em quase nada se diferencia das atividades administrativas e executivas dos demais órgãos e entidades da administração tradicional. As agências são, primordialmente, estruturas administrativas inseridas no âmbito do Poder Executivo e com atribuições típicas desse Poder, que são a de executar as leis votadas pelo Legislativo e de conduzir e comandar as atividades governamentais.
    É na função propriamente reguladora («rulemaking») ou «quase legislativa» que reside o cerne das atribuições das agências independentes americanas. O interessante é que no exercício dessa função «normativa» elas agem ora como um típico Poder Regulamentar, ora adotam procedimentos mais comumente usados na prática do Poder Judiciário. Em princípio, o «rulemaking» das agências consiste em editar «prescritive formulations» ou «legislative rules», isto é, normas regulamentares das atividades incluídas no respectivo campo de especialidade, passando tais normas a ter força de lei («subordinate legislation», na terminologia britânica), tanto para os agentes econômicos envolvidos quanto para os usuários dos respectivos serviços. Tais normas revestem-se de características que as aproximam das leis. De um lado, o seu descumprimento sujeita o infrator às mesmas consequências jurídicas previstas para a não observância das leis votadas pelo Congresso, como, por exemplo, o pagamento de pesadas multas. Por outro lado, tais normas são bem menos vulneráveis a ataques na via jurisdicional, eis que a tradição do direito público jurisprudencial norte-americano é de outorgar ampla deferência[23] à «expertise» dos órgãos e entidades especializados[24].
    As «rules» editadas podem ser de natureza substantiva («substantive rules»), interpretativa («interpretive rules») e procedimental («procedural rules»). As «substantive rules» têm considerável força jurídica por simbolizarem a própria delegação da competência normativa do Legislativo e por serem as principais beneficiárias da mencionada «deferência» do Judiciário, que deliberadamente nelas raramente se imiscui.[25] Já o mesmo não se pode dizer das «interpretive rules», que são objeto de reexame judicial mais freqüente, ainda que a intervenção do Judiciário se faça com bastante parcimônia, pois, de acordo com a doutrina americana, «courts are not supposed to supplant administrative discretion by substituting their judgment for that of an agency on a matter of policy». Já as «procedural rules» dizem respeito à estrutura organizacional de cada agência, o seu modo de funcionamento, a sua prática cotidiana. Em suma, o seu regimento interno.
    Outra peculiaridade do processo decisório-regulamentar das agências, que as aproximam de uma certa maneira do modus operandi do Legislativo, é a chamada «notice-and-comment rulemaking», ou seja, o procedimento legal por elas observado desde a proposição até a final adoção de um determinada regulamentação. Aqui o elemento-chave são a transparência e a interação com a sociedade. O procedimento transcorre da seguinte maneira: antes de adotar uma norma regulamentar de algum aspecto da atividade incluída no seu âmbito de atuação, a agência promove estudos, consulta experts e prepara um dossier acerca da necessidade daquela regulamentação. Em seguida, publica toda a documentação e os planos concernentes à regulamentação almejada no órgão oficial de divulgação governamental(«Federal Register»), conclamando a população, os «experts» e as pessoas interessadas na matéria a emitirem suas considerações a respeito num determinado período de tempo. Ultrapassado o prazo estipulado e examinadas as observações vindas do público, a agência edita a regulamentação.
    As leis instituidoras de algumas das agências reguladoras brasileiras copiaram, ou pelo menos tentaram copiar, o «notice-and-comment rulemaking» das suas congêneres norte-americanas. Por exemplo, o art. 42 da Lei da Anatel (9.472/97) estipula que «as minutas de atos normativos serão submetidas à consulta pública, formalizada por publicação no Diário Oficial da União, devendo as críticas e sugestões merecer exame e permanecer à disposição do público na Biblioteca». Já o artigo 44 da mesma Lei, com o objetivo de fomentar a participação da sociedade no processo decisório da Anatel, estabelece que «qualquer pessoa terá o direito de peticionar ou de recorrer contra ato da Agência no prazo máximo de trinta dias, devendo a decisão da Agência ser conhecida em até noventa dias».
    Quanto à chamada função «quase judicial», ela repousa, primeiramente, no fato de que muitas agências reguladoras americanas adotam um procedimento decisório de tipo judicialiforme. Tal procedimento se ilustra por dois aspectos distintos. Em primeiro lugar, pelo fato de que, ao invés de certas questões serem decididas pelo método clássico de exame burocrático através de diversos e sucessivos órgãos e agentes hierarquizados de forma mais ou menos lógica, elas são submetidas a um procedimento muito parecido com o que antecede as decisões judiciais («trial-like procedure»), envolvendo audiências públicas(«hearings), colheitas de depoimentos, intervenção de advogados representantes das partes envolvidas e final decisão por parte de um órgão colegiado.
    Em segundo lugar, a «quase judicialidade» de algumas das atribuições das agências americanas é fruto, ao nosso ver, do intricado e especialíssimo regime jurídico que o direito dos EUA reserva às relações entre as agências e os órgãos do Poder Judiciário. Para não nos alongarmos demasiadamente em detalhes desse regime jurídico, vamos nos limitar à formulação de três afirmações simples e elucidativas: 1) o Poder Judiciário americano pode, sim, rever as decisões das agências reguladoras; 2) para que isso aconteça, porém, é preciso previsão legal expressa (em consonância com o jargão: «there is law to apply»); 3) em um número considerável de situações o exame judicial das decisões das agências não ocorre, porque: a) a lei instituidora da agência excluiu expressamente o reexame judicial da questão específica em disputa («statutory preclusion of judicial review»); b) a questão objeto de disputa é tida como da alçadadiscricionária da agência («committed to agency discretion»); c) seja por deferência à especialização técnica das agências[26], seja por entender que, ao julgar os litígios específicos da área posta sob sua regulamentação, elas agem na qualidade de «agents of the courts», os órgãos do Judiciário confirmam na maior parte das vezes as decisões e escolhas técnicas dessas entidades especializadas. Noutras palavras, o reexame judicial das decisões das agências americanas se dá nos quadros do que poderíamos qualificar como um «controle jurisdicional minimalista». Ou seja, a função «quase judicial» exercida pelas agências americanas decorre, de certa forma, da preponderância que elas detêm na solução jurisdicional dos litígios que afloram na sua área específica de atuação, indicando, no limite, que é tênue a fronteira que separa a tão falada «usurpação» da função jurisdicional por esses entes e a realidade de um superficial controle que o Judiciário, deliberadamente, exerce sobre elas.[27]
    Por último, a função «quase judicial» também se ilustra pela surpreendente emergência, em um país de common law como os EUA, de um personagem típico do direito administrativo de tipo francês: o «juiz administrativo», mais comumente denominado «ALJ» («Administrative Law Judge). O «Juiz Administrativo» norte-americano simboliza uma radical mudança de tendência do direito anglo-saxão.[28] Sua criação no seio das Agências constitui uma resposta às duras críticas que ao longo do tempo se fizeram à anomalia institucional consistente em um mesmo ente (ainda por cima vinculado ao «mais perigoso» dentre os Poderes, como provavelmente diriam Hamilton e Bickel[29]) acumular as três funções governamentais básicas. Preocupações com o caráter justo e razoável das decisões proferidas pelas agências também estiveram na origem da criação dessa inovação institucional. Os «Juízes Administrativos» ou «Juízes de Direito Administrativo» são agentes estatais qualificados aos quais a lei atribui função jurisdicional no âmbito das agências. Denominados «Trial Examiners» ou «Hearing Examiners» nos primeiros tempos de vigência da Lei de Procedimento Administrativo (Administrative Procedure Act — APA) de 1946, eles tiveram o seu estatuto funcional aperfeiçoado ao longo do tempo, gozando nos dias atuais de grande independência funcional em razão do fato de se beneficiarem de estabilidade no emprego, de uma sólida garantia estatutária que lhes é assegurada pelas leis do serviço público e do fato de gozarem de um status diferenciado e isolado em relação às agências e os seus servidores ordinários.[30]
    Ademais, além dessas garantias, na medida em que foi aumentando o número de agências na paisagem administrativa americana foram crescendo na mesma proporção as preocupações com a natureza dos procedimentos e dos métodos decisórios por elas adotados. Muitas perplexidades advinham do fato de que, em princípio, as agências não se submeteriam às regras da common law e sim ao direito legislado (statutory law). Logo, a elas não se aplicariam, em linha de princípio, inúmeras regras de due process que constituem a marca do direito público do país. Para remediar essa situação, a Lei de Procedimento Administrativo de 1946 e normas posteriores estenderam às agências algumas das mais importantes garantias procedimentais do sistema jurídico, tais como a exigência de «hearings» (audiência pública), separação das autoridades incumbidas da investigação e do julgamento, imposição de regras estritas sobre coleta de prova, presença de advogado, independência funcional da autoridade titular da função jurisdicional no âmbito administrativo (juiz administrativo), à qual foram estendidos os poderes clássicos de um «trial judge», isto é, de um juiz. O Judiciário, por seu turno, estendeu a elas inúmeros preceitos do direito da common law. Dessa evolução resultou uma verdadeira «judiciarização» do modo de atuar das agências, em consonância com o entendimento doutrinário segundo o qual elas seriam detentoras de funções «quase judiciais»[31]. Se esse fenômeno de «judiciarização» das agências passou por um processo de inequívoca consolidação, indagações múltiplas ainda subsistem quanto à «independência» dessas entidades.

    A «independência» das Agências — A idéia fundamental que norteou o surgimento das agências reguladoras foi a de se criar um ente administrativo técnico, altamente especializado e sobretudo imperméavel às injunções e oscilações típicas do processo político, as quais, como se sabe, influenciam sobremaneira as decisões dos órgãos situados na cadeia hierárquica da Administração. Para tanto, concebeu-se um tipo de entidade que, embora mantendo algum tipo de vínculo com a Administração Central, tem em relação a ela um acentuado grau de autonomia. Resta saber, precisamente, em que consiste essa autonomia. O Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto[32] aponta, com a acuidade de sempre, quatro aspectos fundamentais dessa autonomia, sem os quais “qualquer ente regulador que se institua não passará de uma repartição a mais na estrutura hierárquica do Poder Executivo, pois estará impossibilitado de executar a política legislativa do setor, como se pretende que deva fazê-lo”. São eles: (a) a independência política dos gestores, que “decorre da nomeação de agentes administrativos para o exercício de mandatos a termo, o que lhes garante estabilidade nos cargos necessários para que executem, sem ingerência política do Executivo, a política estabelecida pelo Legislativo para o setor; (b) a independência técnica decisional, que assegura a atuação apolítica da agência, “em que deve predominar o emprego da discricionariedade técnica e da negociação, sobre a discricionariedade político-administrativa; (c) a independência normativa, “um instituto renovador, que já se impõe como instrumento necessário para que a regulação dos serviços públicos se desloque dos debates político-partidários gerais para concentrarem-se na agência”; e (d) a independência gerencial, financeira e orçamentária, que “completa o quadro que se precisa para garantir as condições internas de atuação da entidade com autonomia na gestão de seus próprios meios”.
    De fato, todos esses fatores elencados por Diogo de Figueiredo são de grande importância para a fixação da autonomia das agências, especialmente o que diz respeito à estabilidade do colegiado dirigente da entidade, que é a instância incumbida de tomar as decisões capitais no âmbito de cada setor objeto de regulamentação. Irrelevante, a nosso sentir, para a caracterização da independência, é a criação de uma política de pessoal diferenciada, ou seja, um regime de privilégios em relação aos demais agentes do Estado. Se a idéia da criação de agências reguladoras era a de abrir um capítulo novo na história do Estado brasileiro, uma visão lúcida da nossa evolução administrativa recomenda simplesmente que não se adote esse fator como critério determinante de independência, sob pena de, em razão das práticas clientelistas que certamente se estabelecerão, as agências perderem inteiramente a credibilidade.
    Advirta-se, contudo, que não basta conferir estabilidade aos dirigentes de uma agência para que ela automaticamente passe a ser «independente». Mesmo nos EUA, onde o Congresso exerce com zelo implacável a atribuição hoje crucial de todo órgão legislativo (a fiscalização e o controle), e em que o sistema de «checks and balances» funciona com razoável eficiência, não são raras as críticas de que as agências, ao invés de atuarem em busca do cumprimento do interesse público, procuram preferencialmente atingir seus próprios interesses e os de lobbies eficazmente incrustados e com atuação concertada, tanto nos comitês do Congresso incumbido de supervisioná-las, quanto no âmbito das atividades privadas que lhes incumbe regulamentar e fiscalizar.[33] Noutras palavras, é sério o risco de, ao se retirar as agências do âmbito de influência da Política, submetê-las ao jugo de forças econômicas poderosas.

    2. A PROBLEMÁTICA CONSTITUCIONAL SUSCITADA PELAS AGÊNCIAS REGULADORAS

    São múltiplos os debates constitucionais suscitados pela disseminação de agências reguladoras independentes e pelas mudanças radicais na forma de organização do Estado que elas provocam. Esses debates abordam desde os riscos institucionais que elas representam em face da sua carência de legitimação democrática, passam pela questão da separação de poderes e desembocam na discussão acerca da intangibilidade do Poder incumbido da prestação jurisdicional.

    2.1 A Metamorfose do Estado e da Democracia

    Os escritos de John Locke e Montesquieu constituem, como se sabe, as bases teóricas mais sólidas da Arte de Governar que vem sendo posta em prática no Ocidente desde o Século XVIII. De suas obras foram extraídas as idéias que embasaram, no final do século XVIII, as primeiras constituições escritas, notadamente a americana de 1787 e a francesa de 1791. Ponto crucial nessas obras e conteúdo obrigatório de quase todas as constituições promulgadas desdeentão, o princípio da separação dos poderes, que tem como corolário a proibição de delegação indiscriminada e de concentração em apenas um dos três «departamentos» da essência do poder estatal, constitui elemento incontornável da teoria constitucional moderna.
    Locke, na famosa passagem em que discorre a respeito da proibição de subdelegação, pelos Representantes, dos poderes que lhe são atribuídos pelo Povo Soberano, já sustentava: “Fourthly, the legislative cannot transfer the power of making laws to any other hands; for it being but a delegated power from the people, they who have it cannot pass it over to others. The people alone can appoint the form of the commonwealth, which is by constituting the legislative and appointing in whose hands that shall be. And when the people have said, we will submit to rules and be governed by laws made by such men, and in such forms, nobody else can say other men shall make laws for them; nor can the people be bound by any laws but such as are enacted by those whom they have chosen and authorized to make laws for them. The power of the legislative, being derived from the people by a positive voluntary grant and institution, can be no other than what the positive grant conveyed, which being to make laws, and not to make legislators, the legislative can have no power to transfer their authority of making laws and place it in other hands».[34]
    Por seu turno, Charles de Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu, ao abordar a crucial questão da separação e do equilíbrio entre os poderes do Estado, assim se manifestou, em passagem memorável: «Il y a dans chaque État trois sortes de pouvoirs: la puissance législative, la puissance exécutrice des choses qui dépendent du droit des gens, et la puissance exécutrice de celles qui dépendent du droit civil...Lorsque dans la même personne ou dans le même corps de magistrature, la puissance législative est réunie à la puissance exécutrice, il n’y a point de liberté, parce qu’on peut craindre que le même monarque ou le même Sénat ne fasse des lois tyranniques pour les faire exécuter tyranniquement. Il n’y a point de liberté si la puissance de juger n’est pas séparée de la puissance législative et de l’exécutrice. Si elle était jointe à la puissance législative, le pouvoir sur la vie et la liberté des citoyens serait arbitraire; car le juge serait législateur. Si elle était jointe à la puissance exécutrice, le juge pourrait avoir la force d’un oppresseur... Tout serai perdu si le même homme, ou le même corps des principaux, ou des nobles, ou du peuple, exerçaient ces trois pouvoirs: celui de faire les lois, celui d’exécuter les résolutions publiques, et celui de juger les crimes ou les différends des particuliers». E enfim a famosa passagem: «C’est une expérience éternelle que tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser; il va jusqu’à ce qu’il trouve des limites...La vertu a besoin de limites. Pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir, il fault que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir.»[35]
    O objetivo almejado tanto por Locke quanto por Montesquieu ao conceberem a engenhosa teoria da separação de poderes era um só: evitar o arbítrio, cuja ocorrência é inevitável quando a essência do poder se concentra nas mesmas mãos, ou seja, em apenas um dos Poderes do Estado. Daí a idéia de se dividir as funções estatais, atribuindo-as a três «departamentos» distintos, e de se instituir mecanismos através dos quais cada um deles possa interagir e controlar os excessos do outro («checks and balances»).
    As idéias de Locke e Montesquieu, como se sabe, atravessaram o Atlântico no século XVIII, vindo a constituir o substrato teórico-filosófico crucial no processo de institucionalização da primeira nação a adotar uma constituição escrita (EUA), na qual se preconizava justamente como uma das chaves do sistema constitucional o princípio da separação dos poderes. Com efeito, nos chamados «Federalist Papers», hoje clássico da teoria política e do direito constitucional, James Madison, um dos mais importantes membros da Convenção de Filadélfia, expôs de forma minuciosa e didática os riscos e perigos institucionais que a concentração de poderes pode engendrar e as precauções que devem ser tomadas para evitá-los. Daí a sua conclusão lapidar: «Ambition must be made to counteract ambition».[36]
    Alicerçada nesses ensinamentos de filosofia política, durante cerca de um século e meio a teoria constitucional ocidental convergiu em torno da já clássica distinção conceitual, segundo a qual os sistemas de governo se caracterizariam, de um lado, pela «rigidez» da separação de poderes típica do sistema presidencial de governo e, de outro, pela «flexibilidade» e pela «colaboração» que seriam a marca do funcionamento desses poderes no sistema parlamentarista.
    Os EUA seriam, pois, o protótipo do sistema presidencial, com as três funções estatais rigidamente distribuídas entre «departamentos» estanques e independentes. Todas essas idéias foram assimiladas e consolidadas pela prática institucional levada a efeito nesses mais de 200 anos, tanto nos EUA, berço do regime presidencial, quanto nas centenas de países que, à sua semelhança, adotaram o mesmo sistema de governo, como é o caso do Brasil. Nos EUA, elas são recorrentes na doutrina e sobretudo na jurisprudência da Corte Suprema. Robert Jackson, então membro da Corte Suprema, assim sintetizou a fórmula da separação e contenção dos poderes: «While the Constitution diffuses power the better to secure liberty, it also contemplates that practice will integrate the disperserd powers into a workablegovernment. It enjoins upon its branches separatedness but interdependence, autonomy but reciprocity».[37]
    Ora, como conciliar tão claros e inequívocos princípios proibitivos de acumulação de poderes em um dos «departamentos» do Governo com a existência, no âmbito do poder Executivo, de organismos como as agências reguladoras? Como conciliar idéias tão díspares como a que condena «usurpação» das funções de um poder pelo outro, e ao mesmo tempo chancelar a introdução no aparelho de Estado de entidades vocacionadas a exercer simultaneamente as três funções estatais?
    O Direito dos EUA ainda não forneceu respostas satisfatórias a essas indagações. Como bem assinalou o advogado e professor paulista Conrado Hübner Mendes, a jurisprudência da Corte Suprema ainda é hesitante sobre a matéria. Se inúmeras agências independentes foram até hoje criadas pelo Congresso, algumas delas dotadas de poderes decididamente inusitados, credite-se isso ao pragmatismo dos americanos e à conhecida plasticidade de suas instituições políticas, que em momentos decisivos e dramáticos da história do país puderam sofrer as modificações e adaptações necessárias sem maiores traumas institucionais.
    A consolidação das agências reguladoras na organização estatal americana se deu num desses momentos de crise, que são, como todos sabem, férteis em inovações institucionais. Certo, já foi dito à saciedade que a primeira agência data do final do século XIX e teve a sua criação determinada pela urgente necessidade de intervenção governamental num setor específico da economia. Também é certo que a segunda agência surgiu na segunda década do século XX como parte das medidas antitruste que se fizeram necessárias para coibir os abusos então comuns na prática empresarial. Contudo, foi no período do «New Deal», isto é, um período de profunda crise econômica desencadeada pela Grande Depressão dos anos 30, à qual se somou a crise institucional que opôs a Presidência à Suprema Corte[38], que as agências tiveram sua consagração jurídica definitiva. Consagração essa que foi facilitada, entre outros fatores, pela renúncia da Suprema Corte ao dogma da separação absoluta e da indelegabilidade dos poderes, sobretudo do poder de legislar.
    As agências reguladoras constituem, pois, a superação ou mitigação do dogma da não delegação da funções específicas de cada um dos poderes estatais. O já vasto contencioso sobre o tema mostra as idas e vindas da Corte Suprema sobre o tema, demonstrando algumas vezes uma certa hesitação, mas também muito pragmatismo e realismo, atitudes típicas e desejáveis em órgão jurisdicional desse porte, que deve ser composto em geral por estadistas, por pessoas de sólida formação jurídica mas dotadas de uma «longue vue» acerca das questões nacionais de maior gravidade, e jamais por «práticos do Direito», como parece ser a preferência dos meios jurídicos brasileiros.
    Assim, embora a Constituição americana disponha em seu artigo I, § 1, que «todos os poderes legislativos» são investidos no Congresso, incumbido de votar as leis necessárias à condução dos negócios da Nação, em inúmeras oportunidades a Corte Suprema declarou a constitucionalidade de leis do Congresso delegando a função legislativa primeiramente ao Chefe do Executivo e, num segundo momento, às agências reguladoras, algumas delas revestidas de características manifestamente heterodoxas, como veremos mais adiante. Casos houve, raríssimos é verdade, em que a função legislativa foi delegada meio-a-meio ao Presidente e a entidades puramente privadas[39], criando, assim, ocasião para o surgimento de atos normativos cogentes bastante inusitados, de difícil «garimpagem» em direito comparado, caracterizados do outro lado do Atlântico, isto é, no direito administrativo francês, como « décision administrative de droit privé».
    A chave da questão reside nas condições impostas casuisticamente pela Corte para aprovação dessas delegações. Em primeiro lugar, ela examina com bastante rigor se o Legislativo delimitou com a necessária precisão os «objetivos» de cada agência. Em seguida, ela verifica se a lei instituidora da agência fixa critérios («standards») claros para o exercício da função regulamentadora, perquirindo se não há margem para abusos ou excessos («ultra vires») e estabelecendo a ponderação entre os objetivos almejados com a criação do novo ente e a extensão dos poderes que lhe serão conferidos. Por fim, examina se o ato legislativo abre espaço ao exercício das garantias constitucionais clássicas, tais como a da cláusula due process of law.
    Em realidade, no exercício dessa superior modalidade de jurisdição constitucional, muito mais do que as considerações de ordem puramente jurídica, o que pesa de fato são as necessidades de ordem prática. Elas são, como se sabe, de natureza múltipla. Em primeiro lugar, elas resultam dos incontornáveis imperativos de mudança determinados pelas situações de grave crise econômica. Em segundo lugar, elas são uma consequência direta da enorme transformaçãopor que vem passando o Estado, que para dar solução rápida e eficaz aos problemas cada vez mais frequentes e complexos da vida moderna, não pode prescindir de instrumentos ágeis e eficazes de ação, não encontráveis na prática legislativa clássica. Por fim, ainda na linha das explicações de ordem prática, a Corte Suprema dos EUA parece ter-se rendido à evidência (tese cara aos defensores das agências) de que para o bom funcionamento do Estado atual, intervencionista e não mais abstencionista, bem como para a «higidez» da economia diversificada e em constante mudança que lhe é subjacente, não se pode prescindir de supervisão técnica especializada, especializa

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    Ricardo Haag Quarta, 23 de abril de 2003, 8h45min

    Sra. Paloma,

    No mundo ocidental segue-se a divisão clássica de poderes ( executivo, legislativo e judiciário), elaborada por Montesquieu. Basicanmente, essa divisão pode estar inserida em uma forma de governo monárquica ou republiclana, podendo ser ainda presidencialista ou parlamentarista.
    v.g. No Brasil temos a república presidencialista, visto que em 1993, atráves de plebiscito popular, decidimos o presidencialismo ao invés do parlamentarismo.

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    Adriana_1 Sexta, 03 de abril de 2009, 1h29min

    Quais são os beneficios e as funções da divisão dos poderes?

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