Caro Gentil,
Um dos maiores defensores da responsabilização somente a partir dos dezoito anos é o professor Francisco de Assis Toledo. Após ter conhecimento da brilhante defesa levada a termo pelo honrado professor, nunca mais fui levado a defender tese contrária. Permito-se a transcrevê-la.
"Em nosso sistema penal, os menores de dezoito anos são considerados penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial (CP., art. 27). Os que estejam na faixa de doze a dezoito anos podem ser submetidos a processo especial perante o juiz de menores, nos termos daquela legislação; os de idade inferior a doze anos estão excluídos daquele processo, sendo contudo passíveis de medidas protetivas. Como se vê, a responsabilidade penal tem início, entre nós, conforme preceitua o Código, aos dezoito anos. Tal preceito, segundo Nélson Hungria, resulta menos de postulados científicos do que de um critério de política criminal. Com efeito, nada indica que a idade de dezoito anos seja um marco preciso no advento da capacidade de compreensão do injusto e de autodeterminação. É, entretanto, um limite razoável de tolerância (recomendado pelo Seminário Europeu de Assitência Social das Nações Unidas, de 1949, em Paris), tanto que a maioria dos países, com pequenas variações, para mais ou para menos, ficam em torno dele.
E isso tem a sua razão de ser. Ninguém, ao nascer, traz insculpidas no espírito as regras precisas do comportamento lícito. É necessário, pois aprendê-las. Por isso mesmo, o crime é um fenômeno cultural. Aquilo que seria absolutamente normal em uma ilha deserta, para um indivíduo isolado (apanhar frutas de qualquer árvore, apossar-se de tudo que lhe aprouvesse, destruir o que se lhe apresentasse como hostil ou desagradável etc), pode ser um grave crime na vida em sociedade. Ora, a criança é um ser inicialmente ilhado. Precisa ver e aprender para que possa "bem comportar-se" no interior da comunidade que brevemente irá impor-lhe desde a forma correta de mastigar, de vestir-se, até o modo de comportar-se perante as coisas e as pessoas. É, na verdade, um duro aprendizado esse de ter que conter apetites e impulsos naturais diante de certas regras ou normas de conduta impostas de fora. E não se deve esquecer que até mesmo os santos sucumbiram, por vezes, no curso desse aprendizado, como nos revela Santo Agostinho no relato do furto das peras. Que dizer dos milhares de pequenos seres (a imensa maioria) não tão bem dotados ou predestinados? Não é nada fácil abandonar o mundo mágico e livre da infância para, passando pela puberdade, transformar-se no "homem razoável" que, por força de hábitos, identifique, como nos diz Saint-Exupéry, um chapéu no desenho da jibóia que engoliu um elefante, e que resista ao chamamento das florestas virgens e das estrelas, para falar de golfe, de política e de gravatas (O pequeno príncipe).
O grande equívoco de Lombroso - e de outros positivistas - foi pensar que a natureza, ou o que quer que seja, produza, de quando em vez, um ser humano anti-social. Na verdade, os seres humanos, sem exceção, socializam-se após o nascimento, cumprindo um processo de aprendizado relativamente longo, se comparado com o tempo de duração da vida. E não é estranhável que, no curso desse processo, cometam, com certa naturalidade, atos anti-sociais e até mesmo criminosos. O não-infringir o Código Penal, nesse período, é, conforme já se disse, uma questão de pura sorte.
Sheldon Glueck, em aguda observação, salienta que, contrariamente ao que se tem por vezes sustentado, as investigações psiquiátricas e criminológicas sobre as primeiras manifestações do comportamento anti-social da infância evidenciam que este não é fruto de aprendizado, mas se verifica naturalmente. O que precisa ser aprendido é o comportamento não-delinqüente. Segundo o grande criminólogo e pesquisador americano, a criança "não-socializada", "não-domada", "não-instruída", recorre à mentira, à fraude, ao subterfúgio, à cólera, ao ódio, ao furto, à agressão, ao ataque e a outras formas de comportamento, nas suas primeiras tentativas de auto-expressão. Assim, a formação de um caráter amoldado ao respeito à lei é um processo difícil. Não é outra, aliás, senão essa, a missão reservada à educação da criança, o que exige, como é óbvio, muita paciência e algum tempo.
Isso justifica, a nosso ver, os limites de idade inicialmente referidos, visto como salta aos olhos que o menor deve realmente ter um tratamento especial, mediante legislação especial. Se essa legislação estiver desatualizada ou apresentar deficiências, a questão é aprimorá-la e não, como por vezes se proclama, reduzirem-se os limites para uma simplista extensão do reconhecidamente falho sistema penitenciário que aí está aos que ainda se encontram na puberdade, a respeito dos quais, por princípio, recusamos admitir um juízo de prognose cético, definitivo.
Note-se que não vemos razão para permitir que as convicções expostas sejam abaladas pelo fenômeno da criminalidade violenta que, em nossos dias, assume proporções inquietantes, com participação cada vez mais crescente do menor delinqüente. Isso confirma, aliás, o que vimos sustentando. Se a sociedade moderna, bastante influenciada por economistas de pouca visão, não é capaz de empenhar-se verdadeiramente no amparo e na educação do menor carente e abandonado, por não ser esse um "investimento" com retornos e lucros garantidos, não é de espantar que milhares de pequenos seres, dentre os que perambulam pelos centros urbanos, agredidos pela nossa indiferença e humilhados pelas esmolas insuficientes que lhes damos de má vontade, desenvolvam sua grande potencialidade mediante um aprendizado negativo, até serem recrutados pelos profissionais do crime. É um fato lamentável, mas que lhes assegurará, de qualquer modo, uma forma de sobrevivência, como adultos marginalizados, agressivos e inimigos de uma sociedade que sempre lhes foi extremamente hostil, apesar de não terem tido a mínima parcela de participação na circunstância de um dia nele terem surgido, pela fatalidade do nascimento."