Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10192
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A construção histórica da distinção entre ética pública e moral privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais

a contribuição de Christian Thomasius

A construção histórica da distinção entre ética pública e moral privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais: a contribuição de Christian Thomasius

Publicado em . Elaborado em .

A contribuição de Thomasius se deu no plano teórico do Direito Natural Racionalista com a separação entre Direito e Moral e na luta iniciada pelo mesmo pela humanização do Direito penal e processual penal e contra os processos de feitiçaria e heresia.

Sumário: 1. Introdução; 2. Ética pública e moral privada. 2.1. Questões preliminares; 2.2. A Dignidade humana e a diferença entre ética pública e ética privada; 3. Christian Thomasius e a diferenciação entre as questões de Direito e as questões de moral pessoal. 4. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais; 5. A contribuição de Thomasius ao Direito natural racionalista no cotejo entre ética pública e ética privada; 6. A luta pela humanização do Direito penal; 6.1. O Direito Penal da Monarquia absoluta; 6.2. A coerência de Thomasius entre sua teoria e sua proposta de práxis; 7. Considerações finais; Referências.


Resumo

O presente trabalho tem como escopo demonstrar a contribuição e influência do alemão Christian Thomasius na histórica distinção entre ética pública e ética privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais, assim como na construção do atual conceito dos mesmos. A contribuição de Thomasius se dará no plano teórico do Direito Natural Racionalista com a separação entre Direito e Moral e na luta iniciada pelo mesmo pela humanização do Direito penal e processual penal e contra os processos de feitiçaria e heresia.

Palavras-chave

Ética; Moral; Direito Natural; Secularização; Racionalismo; Direitos Fundamentais.

Abstract

The present work aims at showing the contribution and influence by Christian Thomasius in the historical distinction between public ethic and private ethic and its incidence in the process of the ideal formation of the fundamental rights as well as the construction of the present concept of both. Thomasius’s contribution will take place in the theoretical plan of the Natural Rationalist Law with the distinction between Law and Moral and in the argument started by the scholar, by the humanization of penal law and penal processual against the rituals of witchcraft and heresy.

Key words:Ethic; Moral; Natural Law; Secularization; Rationalism; Fundamental Laws.


1. Introdução.

Na elaboração histórica das idéias modernas dos direitos do homem, o tema da tolerância, em princípio tolerância religiosa, será de suma importância na construção do conceito de liberdade, um dos pilares fundamentais da atual concepção de direitos humanos. Somente será possível a idéia de tolerância depois da elaboração teórica da separação dos assuntos de moral pública dos de moral pessoal. Esta será a separação entre as questões de ética pública das questões de moral privada. No início da luta pela separação da ética pública da ética privada um autor de suma importância será Christian Thomasius [01], considerado como o iniciador da Ilustração (Aufklärung) na Alemanha [02]. A importância de Thomasius na construção do conceito dos direitos do homem pode ser condensada em sua fundamental contribuição na evolução do novo modelo de direito natural, o iusracionalismo, e em sua destacada luta contra os processos de feitiçaria e defesa da humanização do direito penal, sendo o precursor de Montesquieu, Voltaire e do próprio Marquês de Beccaria na crítica ao processo penal da monarquia absoluta. Thomasius juntamente com Grotius, Pufendorf e Wolf será fundamental na construção do qualificado pelo professor Gregorio Peces-Barba gigantesco sistema do iusnaturalismo racionalista (Peces-Barba, 1995 a, p. 134), tanto em sua esquematização e teorização na razão humana como na transformação do direito natural divino em direito natural secular. Grotius, Pufendorf, Thomasius e Wolf são os autores iniciadores dessa posição, homens de seu tempo, que já no século XVII e início do XVIII, utilizarão seus esquemas, de acordo com o protagonismo individual característico da burguesia ascendente, para conduzir o novo direito natural, o iusracionalismo, que será a base teórica dos direitos do homem que finalmente serão positivados nos documentos resultantes das revoluções burguesas do final século XVIII (Peces-Barba, 1995 a, p. 134).


2. Ética pública e moral privada.

2.1. Questões preliminares.

A obrigação moral de obedecer ao Direito justo é uma obrigação derivada da obrigação moral de ser justo. O Direito justo é aquele vinculado a um Estado democrático de Direitos e aos históricos direitos fundamentais, positivados nas constituições dos Estados contemporâneos. Na opinião do professor Eusébio Fernández (1990, p. 112) a fundamental pergunta do por quê temos a obrigação moral de ser justo, ou por quê devemos atuar com justiça, é uma pergunta derivada de uma outra mais geral do por quê devemos atuar moralmente, tendo em conta que a justiça é uma virtude moral de forte sentido social, político e jurídico.

Peter Singer em seu livro Ética Prática (1998, p. 9) assinalou acertadamente que "algumas pessoas pensam que a moralidade está fora de moda. Vêem-na como um sistema de irritantes proibições puritanas cuja função seria a de impedir que as pessoas se divirtam". Pensamos como o professor Fernández (1990, p. 112) que parte exatamente de uma postura radicalmente oposta, no sentido de que a moral ou a ética não está fora de moda, uma vez que em nossa opinião nestas questões fundamentais não existe moda (que deve servir somente a coisas sem importância) e que a ética do ser humano é importante demais para submeter-se a tal conceito fútil que deve servir as coisas e não a questões fundamentais do próprio ser humano. Como lembrava em diversas ocasiões em suas aulas o mesmo professor Fernández, que José Luis López Aranguren, com toda autoridade, sempre dizia que o homem é estruturalmente moral (Fernández, 1990, p. 112; Aranguren, 1967, p. 43). Da mesma forma o conceito de ética deve ser pluralista, aberto, fundamentado racionalmente na busca do bem estar, da virtude e da justiça. Uma ética que parte do que diz Victoria Camps (1988, p. 9): "(...) o sujeito da ética não é um deus onisciente e absolutamente poderoso, senão nós mesmos, os mesmo sujeitos que andam implicados na vida política, econômica, profissional, lúdica ou simplesmente cotidiana".

Peter Singer, na mesma obra anteriormente citada (1988, p. 10, 11 e 12), adverte sobre uma série de pontos que refletem o que não pode ser considerado como ética, são essencialmente quatro pontos. Em primeiro lugar, "a ética não é e não pode ser definida como uma série de proibições ligadas ao sexo"; em segundo lugar, "a ética não é um sistema ideal de nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática"; em terceiro lugar, "a ética não é algo inteligível somente no contexto da religião". Pensamos como o próprio Singer: "Minha abordagem da ética vai passar inteiramente ao largo da religião". E em quarto lugar, com a última afirmação Peter Singer pretende desmentir que "a ética é relativa ou subjetiva", uma vez que o citado autor crê em uma ética universal, apesar das diferenças culturais.

Ética, que etimologicamente vem do vocábulo grego ethikós que significa habitual, então poderia ser entendida como aquela parte da filosofia que trata do bem e do mal, das normas morais, dos juízos de valor (morais) e que reflexiona sobre tudo isso. Tem assim como objeto a determinação do fim (meta) da vida humana e de meios para alcançá-lo. Immanuel Kant em seu escrito Fundamentação da Metafísica dos Costumes () nos chama a atenção de que "o termo ética significava antigamente doutrina dos costumes, em geral também se chamava doutrina dos deveres. Mais tarde se pensou conveniente transferir este nome somente a uma parte da doutrina dos costumes", aqui vemos já uma idéia de separação da ética privada da ética pública. Sem nenhuma dúvida, a idéia de ética que temos hoje em dia ainda tem como base a filosofia kantiana.

2.2. A Dignidade humana e a diferença entre ética pública e ética privada.

O postulado ético de Kant é de que só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser racional tem vontade, que é uma espécie de razão, denominada razão prática. A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigatório para uma vontade, chama-se ordem ou comando (Gebot) e se formula por meio de um imperativo. Segundo o filósofo, há duas espécies de imperativo. De um lado, os hipotéticos, que representam a necessidade prática de uma ação possível, considerada como meio de se conseguir algo desejado. De outro lado, o imperativo categórico, que representa uma ação como sendo necessária por si mesma, sem relação com finalidade alguma, exterior a ela.

O mais importante e principio primeiro de toda ética é o de que "o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se a seu talante" (Kant, 1980, p. 134-135). E prossegue: "Os entes, cujo ser na verdade não depende de nossa vontade, mas da natureza, quando irracionais, têm unicamente valor relativo, como meios, e chamam-se por isso coisas; os entes racionais, ao contrário, denominam-se pessoas, pois são marcados, pela sua própria natureza, como fins em si mesmos; ou seja, como algo que não pode servir simplesmente de meio, o que limita, em conseqüência, nosso livre arbítrio" (Kant, 1980, p. 135).

A dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita.

Daí decorre, como assinalou o filósofo de Königsberg, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Cada ser humano é único e sem preço: "No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ele tem dignidade" (grifado no original – KANT, 1980, p. 140).

Pela sua vontade racional, a pessoa, ao mesmo tempo em que se submete às leis da razão prática, é a fonte dessas mesmas leis, de âmbito universal, segundo o imperativo categórico: "age unicamente segundo a máxima, pela qual tu possas querer, ao mesmo tempo, que ela se transforme em lei geral" (Kant, 1980, p. 141).

Ademais, disse o filósofo, se o fim de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como os meus (Kant, 1980, p. 134-141).

É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva em todo o mundo acadêmico, ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade humana. (Sarlet, 2002, p. 34) [03].

Segundo o jusfilosofo argentino Carlos Santiago Nino (1943-1993), a formação de uma consciência moral se atinge por propaganda ou por uma discussão racional (Nino, 1989, p. 5). Afortunadamente, na opinião do professor argentino infelizmente precocemente falecido, a vigência da discussão racional é muito mais ampla do que a dos modismos passageiros relacionados com o tema dos direitos humanos (Nino, 1989, p. 5). É de fundamental importância ter-se em conta a formação gradual através da historia do crescimento moral do ideal dos direitos humanos. Algumas questões estão na base desse ideal, uma delas é a separação das questões de ética pública das de éticas privada, como as chamam o professor Gregorio Peces-Barba (1995 b, p. 14-17 e 75-79), ou das questões de moral social das de moral pessoal, como as chamam o professor Eusébio Fernández (1990, p. 101-104).

Na concepção do mundo atual, talvez a diferença entre ética pública e ética privada seja relativamente clara, mas no contexto histórico da formação do ideal dos direitos fundamentais essa é uma questão básica. A não distinção entre o campo da ética pública e o campo da ética privada, ou respectivamente da moral social e da moral pessoal, é uma característica do Direito anterior ao advento da modernidade. A distinção entre o que é delito e o que é pecado, questões de ordem pública e questões de moral pessoal, é uma característica do Direito que surge com o advento do constitucionalismo e da positivação dos direitos fundamentais. Sem nenhuma dúvida é uma demanda fundamental separar as questões de moral pessoal das questões de moral social. Importantíssimo para o aparecimento e positivação dos direitos fundamentais, será a distinção, compreensão e isolamento das questões de ética pública.

Desta forma, então para a compreensão do que se supõe ser a ética pública faz-se necessário estipular seu sentido e distingui-la da ética privada. Assim, como diz professor Peces-Barba, ética pública é sinônimo de justiça, que há sido o nome tradicional desde Platão e Aristóteles (Peces-Barba, 1995 b, p. 14). Nas palavras do professor espanhol "(...) é a moralidade com vocação de incorporar-se ao Direito positivo, orientando seus fins e seus objetivos como Direito justo" (Peces-Barba, 1995 b, p. 14). Como é sabido, desde Hobbes que é muito claro que tanto o Direito como a moral nos diversos grupos e organizações sociais estão sobre a base da existência de certas circunstâncias básicas da vida do homem em sociedade. Para Hobbes, entre as circunstâncias que explicam e justificam a gênese do direito, ou seja, da sociedade civil ou commonwealt, está a questão da moral, pois sugere que elas – as circunstancias básicas da vida do homem em sociedade – estão subjacentes ao discurso moral, quando diz que no estado de guerra de todos contra todos nada é injusto, já que justiça ou injustiça são conceitos que somente se aplicam quando o homem vive em uma sociedade organizada (Hobbes, 1988, p. 107).

Ética Pública e ética privada se distinguem, mas também se comunicam (Peces-Barba, 1995 b, p. 15) [04]. Sem dúvida um dos grandes equívocos do Direito de épocas passadas, dos históricos e atuais críticos conservadores da modernidade e em concreto dos fundamentalismos religiosos é a confusão entre ética pública e ética privada, tanto no sentido de converter à ética privada em ética pública, como a de pensar que a ética pública pode transformar-se em ética privada. Nas palavras do professor Peces-Barba "a ética pública é uma ética procedimental que não sinaliza critérios, nem estabelece condutas obrigatórias, para alcançar a salvação, o bem, a virtude ou a felicidade, nem fixa qual deve ser nosso plano de vida ultima" (Peces-Barba, 1995 b, p. 15). Podemos falar em paz social marcada pela ética pública, uma vez que "Marca critérios, guias e orientações, para organizar a vida social, de tal maneira que situe a cada um de nós, para atuar livremente nessa dimensão última de escolher nosso caminho, nosso plano de vida para alcançar o bem, a virtude, a felicidade ou a salvação, é dizer, para escolher livremente nosso ética privada. Supõe a ética pública um esforço de racionalização da vida pública e jurídica para alcançar a humanização de todos" (Peces-Barba, 1995 b, p. 15). A ética pública é um meio para um fim, que fazendo uso da filosofia kantiana devemos dizer que tal fim é o desenvolvimento integral de cada pessoa e sua dignidade.

Já a ética privada, nos ensinamentos de Peces-Barba (1995 b, p. 15-16), é uma ética de conteúdos e de condutas que sinaliza critérios para a salvação, a virtude, o bem ou a felicidade, ou seja, orienta nossos planos de vida. Tem duas dimensões: a individual e a social. A primeira tende diretamente ao objetivo de regular nossa conduta a seu fim último, enquanto que a segunda o faz através de nossas relações sociais com as demais pessoas. Um exemplo desta segunda são os princípios de que há que tratar aos demais como fins e não como meios ou de que há que cumprir as promessas.

A ética privada pode ser obra de uma pessoa para si mesma, ou assumida desde a proposta de uma religião, de uma Igreja ou de uma concepção filosófica. Em todo caso a autonomia é uma característica necessária da ética privada em tanto quanto exige ou a criação ou a aceitação pessoal destes critérios de comportamento. Ademais, tem que suscetível de ser oferecida aos demais como uma lei geral, e este requisito da universalidade, parece que cumpre automaticamente, com a doutrina de uma Igreja, e que exige maior cuidado nas concepções éticas individuais. Um das patologias da universalidade existe quando se pensa que, levada as suas últimas conseqüências, exige converter ética privada em ética pública, que se enfrenta com a tolerância e com o pluralismo, que são características essências deste processo de racionalização da ética pública, na sua relação com o poder e com o Direito (Peces-Barba, 1995 b, p. 16).


3. Christian Thomasius e a diferenciação entre as questões de Direito e as questões de moral pessoal.

Um autor pouco estudado e conhecido em nosso meio acadêmico, e fundamental em nosso tema, é o alemão Christian Thomasius. Ele será importantíssimo no início do histórico processo de separação e diferenciação conceitual entre as questões de Direito, relativas a uma ética pública e as questões de moral pessoal, relativas a uma ética privada.

Christian Thomasius nasceu em Leipzig em 1655, no seio de uma família intelectual, seu pai era um conhecido professor de filosofia cultor de Aristóteles. Estudou inicialmente em sua cidade natal e posteriormente em Frankfurt quando ouviu lições sobre Pufendorf e conheceu sua obra que influenciará fundamentalmente o início de seu percurso como teórico do direito natural racionalista. De volta a Leipzig ministrou suas primeiras aulas em alemão, assim inovando, pois até então as aulas eram ministradas em latim [05]. Ainda em Leipzig fundou a primeira revista cultural da Alemanha [06]. Depois de ruidosos problemas com os teólogos luteranos conservadores, por culpa principalmente de seu novo método de ensinar e de sua obra de caráter iluminista, foi deposto de seu cargo de professor e mudou-se para Halle em 1690 para ingressar como docente na Academia de nobres (Ritterakademie). Em Halle, cidade na qual reinava uma maior liberdade e tolerância, em 1694 foi criada uma Universidade, que acabaria por converter-se em um centro de cultura do país, da qual Thomasius seria seu reitor e permaneceria até sua morte em 1728.

Thomasius é considerado por muitos como o iniciador do Iluminismo na Alemanha e por isso o autêntico reformador intelectual de seu país (Segura Ortega, 2001, p. 228). Das muitas coisas que se hão dito de sua trajetória o mais destacado seria que, além de iniciador do Iluminismo, Thomasius foi um intelectual sem misérias, como o qualifica o título de um dos escritos mais interessantes sobre sua obra de autoria de Ernest Bloch [07], exatamente por seu espírito inquieto, reformista e crítico com as idéias de sua época quando de maneira destacada e com muita personalidade colocou-se à frente de seu tempo defendendo a tolerância e a liberdade, especialmente a liberdade de pensamento do indivíduo frente à religião e ao Estado. Engajado com o seu tempo, sem misérias e sem a mesquinharia do viver fácil daqueles que dizem sim ou fazem vistas grossas diante das misérias de sua época, incomodado com a intromissão por parte do Estado absoluto e da Religião em assuntos particulares da vida do indivíduo, através da punição por atos relativos à vida privada de cada um, tratou de teorizar sobre a separação do Direito da Moral, além de criticar a intolerância religiosa e pedir pela humanização do Direito Processual penal. Norberto Bobbio relata que "(...) a paixão fundamental da vida de Thomasius, a qual revela seu iluminismo reformador, é a liberdade de pensamento. Em torno a esta paixão se move toda sua obra de filósofo e jurista" (Bobbio, 1947, p, 47); Manuel Segura Ortega diz que "(...) sua vida foi uma demonstração constante de luta contra o dogmatismo, a superstição e a ignorância" (Segura Ortega, 2001, p. 228-229). Um homem muito incômodo ao seu entorno adormecido e servil, como relata Ernest Bloch, que se houvesse cumprido os desejos de seus contemporâneos, o irritante inovador teria sido aniquilado (Bloch, 1980, p. 285). Sem nenhuma dúvida, sua influência é percebida por sua obra extensa, devida à precocidade de seus primeiros escritos, em diversos âmbitos da cultura seja na filosofia, no Direito ou na religião.


4. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais.

A questão da separação entre ética pública e ética privada se dará no contexto histórico do aparecimento dos direitos fundamentais, na linha de evolução que chamamos de processo de formação do ideal dos direitos humanos, ou – no plano dos direitos constitucionalizados – direitos fundamentais.

Dentre as linhas de evolução dos direitos fundamentais desenvolvidas pelo professor Gregorio Peces-Barba estariam os processos de positivação, de generalização, de internacionalização e de especificação [08]. Antes, porém, do início do processo de positivação, ou melhor, do primeiro processo de positivação levado a cabo com as revoluções burguesas do século XVIII, nos parece acertado e didático falar em um anterior processo de evolução que seria o qual chamamos de processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Esse processo de evolução estaria diretamente relacionado com a fundamental pergunta da filosofia dos direitos fundamentais que seria: qual deve ser seu conteúdo? Essa seria, em nossa opinião, a terceira pergunta fundamental relativa aos direitos, uma vez que a primeira e segunda respectivamente seriam: o por quê (?) e o para quê (?) dos direitos fundamentais [09].

Esse processo de formação do ideal dos direitos fundamentais é iniciado na época que o professor Peces-Barba chama de trânsito à modernidade [10]. Para o autor espanhol, os direitos fundamentais são um conceito do mundo moderno resultantes exatamente das condições que surgem justamente nessa época de trânsito da Idade Média para Idade Moderna. O trânsito à modernidade será um longo período, que se iniciará no século XIV e chegará até o século XVIII, no qual pouco a pouco a sociedade irá se transformando e preparando o terreno para o surgimento dos direitos fundamentais. Com as mudanças que se darão no trânsito à modernidade, a pessoa reclamará sua liberdade religiosa, intelectual, política e econômica, na passagem progressiva desde uma sociedade teocêntrica e estamental a uma sociedade antropocêntrica e individualista.

No trânsito à modernidade as estruturas do mundo medieval serão progressivamente substituídas por umas novas, ainda que algumas permanecerão até as revoluções liberais do século XVIII. Ao longo do período em questão é quando se formará a, chamada pelo professor Peces-Barba, filosofia dos direitos fundamentais como aproximação moderna da dignidade humana, em meio das feições características das mudanças que se influem e se entrelaçam. Estas se dariam resumidamente nos campos da economia, da política e da mudança de mentalidade. A profunda mudança na situação econômica com o surgimento e progressivo amadurecimento do capitalismo e com o crescente protagonismo da burguesia, favorecerá a mentalidade individualista diante da visão do homem em estamentos (Peces-Barba, 1982, p. 5-6 e 10-24).

No campo político o pluralismo do poder será substituído pelo Estado como forma de poder racional centralizado e burocratizado. O Estado é soberano, na construção doutrinal que se inicia com Jean Bodin, ou seja, o Estado não reconhece superior e tem o monopólio no uso da força legitima. Seu crescente poder como Estado absoluto, a utilização do Direito como intrumentum regni, exigirão como antítese, para garantir ao individuo um espaço pessoal, a reclamação de uns direitos. Mas, o Estado absoluto é uma etapa imprescindível. Seu esforço de centralização, de robustecimento de uma soberania unitária e indivisível, sua consideração do individuo abstrato, o homo juridicus como destinatário das normas, criará as condições necessárias para o aparecimento dos direitos fundamentais positivados exatamente com as revoluções liberais contrárias ao Estado absoluto (Peces-Barba, 1982, p. 7 e 25-52).

Uma nova mentalidade, impulsionada pelo humanismo e pela Reforma, se caracterizará pelo individualismo, o racionalismo e o processo de secularização. Em concreto, a Reforma protestante, com a ruptura da unidade eclesial, gerará o pluralismo religioso e a necessidade de uma fórmula jurídica que evite as guerras por motivos religiosos. Neste espaço a tolerância, precursora da liberdade religiosa, será o primeiro direito fundamental (Peces-Barba, 1982, p. 7-8 e 53-122).

Todos estes elementos citados, e com o fim do domínio intelectual da teologia, o auge da nova ciência e a exaltação do naturalismo, em suas influências complexas, desembocaram em uma importância extrema do individualismo e de sua capacidade de iniciativa. O conceito de contrato social [11] e do Direito que surge se orientará também para explicar o aparecimento dos direitos fundamentais [12].

O iusnaturalismo racionalista representa, segundo o professor Eusébio Fernández, "(...) no âmbito da história do pensamento filosófico-jurídico, a consecução de um marco muito importante dentro do amplo, complexo e nada homogêneo movimento de secularização do mundo moderno" (Fernández, 1998, p. 575). Dito processo de secularização [13] se delimita exatamente por uma nova concepção do antigo problema da lei natural, e Thomasius será fundamental na construção dessa nova mentalidade. Como diz em seus ensinamentos, o professor Elías Díaz: "Precisamente a ruptura do monolitismo e a uniformidade religiosa por obra da Reforma protestante, levaria coerentemente à necessidade histórica de um iusnaturalismo não fundado de modo iniludível na lei eterna (...)" (Díaz, 1980, p. 270). No mesmo sentido que o professor Peces-Barba, continua o mestre de toda uma geração de jusfilósofos espanhóis, com o intuito de encontrar

(...) um conceito unitário de Direito natural, aceito por todos os homens, sejam quais forem suas idéias religiosas, fez-se necessário tornar independente aquele de estas. No novo clima de incipiente racionalismo (séculos XVI e XVII) de afirmação da autonomia e independência da razão humana diante da razão teológica, reflete-se que a base e o fundamento desse Direito Natural não pode ser mais a lei natural, senão que a mesmíssima natureza racional do homem, que corresponde e pertence de igual maneira a todo o gênero humano: a razão, diz-se, é o comum a todo homem. Sobre ela se pode construir um autêntico e novo Direito Natural. (Díaz, 1980, p. 270-271).

Exatamente a partir desse contexto de mudanças na sociedade, evidentemente que no ocidente, é que começa a aparecer e delinear-se o conceito dos direitos fundamentais entendidos em seu início como direitos naturais, graças à contribuição do iusnaturalismo racionalista. Como sinalizou o professor Antonio Enrique Pérez Luño: "O conceito dos direitos humanos tem como antecedente imediato a noção dos direitos naturais em sua elaboração doutrinal pelo iusracionalismo naturalista" (Pérez Luño, 1979, p. 17) [14].

Na passagem de uma teoria do direito natural a uma teoria dos direitos naturais concretos, que irá desembocar nas declarações de direitos do século XVIII, será de fundamental importância um novo significado que define o iusnaturalismo racionalista e que o diferencia substancialmente de todas as teorias iusnaturalistas anteriores. Como aponta Alessandro Passerin D’Entreves: "A moderna teoria do Direito natural não era, falando com propriedade, uma teoria do Direito objetivo, senão uma teoria de Direitos subjetivos. Produziu-se uma mudança importante baixo o invólucro das mesmas expressões verbais. O ius naturales do filósofo moderno já não é a lex naturalis do moralista moderno nem o ius naturales do jurista romano" (D’Entreves, 1966, p. 75). Na formulação do direito natural racionalista será fundamental a separação das questões relativas à Moral do Direito, em outras palavras, a secularização do Direito natural será basilar para o aparecimento dos direitos fundamentais, e isso somente ocorre graças à mudança da mentalidade. Exatamente por esse motivo sinaliza Jürgen Habermas que "(...) a apelação ao direito natural clássico não era revolucionaria (...)", enquanto que "(...) a apelação ao moderno (direito natural) chegou a sê-lo" (Habermas, 1997, p. 88).

Na mudança de mentalidade que vai propiciar a luta e a positivação dos primeiros direitos fundamentais, então direitos do homem e do cidadão, alguns autores serão fundamentais para seu aparecimento. Serviram como fundamento e base dos mesmos. Estes serão os autores do iusnaturalismo racionalista. Entre eles podemos citar o primeiro período dos pensadores iusnaturalistas da época moderna, que o historiador do Direito Franz Wieacker classifica como precursores e fundadores do iusracionalismo, entre os quais encontram-se Johann Oldendorp, os autores da escolástica tardia espanhola, Johannes Althussius e o fundador por excelência do iusracionalismo Hugo Grotius (Wieacker, 1980, p. 303, 304 e 315 e seguintes). Também são dignos de menção os iusnaturalistas racionalistas (ou iusracionalistas) Thomas Hobbes, Baruch de Espinosa, Samuel Pufendorf que Wieacker classifica como a segunda geração (Wieacker, 1980, p. 304 e 340 e seguintes) de autores dessa corrente tão fundamental à formação do ideal dos futuros direitos humanos. Wieacker classificará Thomasius como pertencente a uma terceira geração dos iusracionalistas, juntamente com Christian Wolf, que servirá de elo entre o iusracionalismo e o Iluminismo (Wieacker, 1980, p. 353 e seguintes).


5. A contribuição de Thomasius ao Direito natural racionalista no cotejo entre ética pública e ética privada.

A segunda metade do século XVIII, como sabemos, constitui por muitos aspectos um período decisivo para a formação do pensamento filosófico e jurídico contemporâneo; mas será na primeira metade do século das luzes que começarão fundamentalmente a surgir os escritos mais explícitos resultantes de todo o processo anteriormente mencionado que formará o ideal dos direitos fundamentais. De esta forma, a separação do Direito da Moral, a necessidade de incrementar a tolerância religiosa e a crítica das instituições punitivas do antigo regime, todos temas fundamentais na elaboração posterior de um Direito Penal sobre novos fundamentos, serão inicialmente os capítulos principais da luta ideológica a ser travada como prova da mudança de mentalidade que se fazia necessária para a positivação dos direitos fundamentais no final do século em questão.

Não deve surpreender o interesse dos filósofos e juristas da Ilustração demonstrado pela tolerância religiosa e pelo regime repressivo da monarquia absoluta, pois o século XVIII não foi somente o século da razão, foi também o século dos sentimentos, da filantropia e da chamada dulcificação do Direito [15]. E estes valores tinham necessariamente seu ponto de partida no reproche à intolerância religiosa professada e na crítica a um Direito Penal violento, supersticioso e arcaico. Sem nenhuma dúvida as origens ideológicas de ambas críticas se encontram inspiradas no pensamento racionalista, humanitário e secularizador da Ilustração.

Desta forma com Christian Thomasius estamos diante de um autor ao mesmo tempo do início do Século XVIII e da transição com o século anterior, pois como foi visto nasce em 1655 e morre em 1728. Thomasius deve ser situado como iniciador da Ilustração, uma vez vista a importância que concede a luta pela dignidade humana numa autêntica cruzada contra o sistema penal da monarquia absoluta e pela separação do Direito da Moral. É considerado um continuador de Pufendorf, ainda que acrescentará uma importante dimensão original a sua obra, um pessimismo [16] recebido por sua formação luterana e uma fundamental aposta pelo processo de secularização que começa com Grotius. Diante do pensamento católico elogiará esta secularização: "Grocio fue el primero en resucitar de nuevo y empezar a purificar esta utilisima disciplina que había sido totalmente manchada, corrompida y casi muerta por el polvo del escolasticismo; así la disciplina dice por sí misma cuanto la revistió Pufendorf de manera excelente y honrosa y la defendió virilmente de sus variados adversarios (…)" (Thomasius, 1994, p. 5).

A filosofia jurídica de Thomasius está condensada em três de suas obras: Institutiones iurisprudentiae divinae libri tres (um tratado de Direito Natural em três tomos intitulado Instituições de Jurisprudência Divina – Frankfurt, 1688 – doravante Instituições); Fundamenta iuris naturae et gentium (Fundamentos de Direito Natural e de Gentes – Halle, 1705 – doravante Fundamentos) [17] e Paulo plenior historia iuris naturalis (História algo mais extensa do Direito Natural – Halle, 1719) [18]. A doutrina divide a obra de Thomasius em duas etapas, uma marcada pelo livro de 1688 e outra pelo livro de 1705. É corrente a afirmação no sentido de que sua obra evolucionou já que na primeira etapa era marcado pela influência de Hugo Grotius e, sobretudo Samuel Pufendorf e a segunda era genuinamente sua [19].

Na obra Instituições de 1688, Thomasius indicada que o Direito Natural é lei escrita no coração de todos os homens [20], conceito que alude a Deus como fonte imediata de Direito natural e, concretamente, a voluntas Dei, não a ratio divina (Blanco González, 1999, 137). Thomasius em sua primeira etapa, por sua formação de luterano, participa de um voluntarismo da fundamentação teológica imediata do Direito natural [21]. Afirma que esta lei escrita obriga a fazer o que é necessariamente conforme a natureza do homem racional e abster-se do que a ela repugna, referência à razão como fonte mediata do Direito natural [22]. Estas duas fundamentações, contígua teológico voluntarista de um lado e intermediaria racionalista do outro, se predicam do Direito natural quando Thomasius ainda não evolucionou na direção da distinção total entre Teologia e Filosofia (Blanco González, 1999, 137).

Em contrapartida na obra Fundamentos, de 1705, o Direito natural se conhece mediante o racionamento de ânimo sereno, sem nenhuma referência à revelação, é a razão individual a que descobre e fundamenta o Direito natural e todo o que a razão se opõe é um preconceito (Blanco González, 1999, 137). A referência a Deus permanece como autor da Natureza e, portanto, também da natureza humana, mas com tal afirmação fica claro que Thomasius não segue com a tese de Grotius de que o Direito natural existira ainda que Deus não existisse [23]. Agora sim, de maneira clara ficou estabelecida na obra de Thomasius a fundamental – e então inovadora – desconexão do saber filosófico com relação ao saber dos teólogos, cuja conseqüência mais imediata será a distinção entre Direito e Moral como normativas do comportamento autônomas e distintas.

Na obra de Fundamentos, ainda que nela permanece a influência do barroco e do luteranismo de seus primeiros anos, Thomasius, como foi dito anuncia já a Ilustração e desenvolve com sua distinção entre Direito e Moral a convicção, que se ia consolidando, de que o Estado e seu Direito não eram o instrumento adequado para realizar a concepção do bem de uma Igreja ou confissão, com o que anunciava, além da separação do Estado da religião, também a distinção entre ética pública e ética privada, tão decisiva para a compreensão do conceito de dignidade humana, que é um dos pilares da atual teoria dos direitos fundamentais (Peces-Barba, 2004 a, p. 42-43).

A contribuição de Thomasius à histórica separação entre ética publica e ética privada é de fundamental importância. O que realmente elucida sua doutrina de separação entre Moral e Direito é a afirmação de que a obrigação jurídica é essencialmente coativa: como o direito regula as ações externas e somente o externo pode chegar a ser objeto da coação (questões de ética pública), somente essa obrigação é coativa, sem que a coação possa, em câmbio, alcançar ao forum internum da consciência, que é onde se produzem os atos regulados pela Moral (questões de ética privada) (Fernández-Galiano, 2001, p. 484).

Segundo Antonio Fernández-Galiano é possível que esta tese de Thomasius tivesse uma finalidade bem prática, no sentido de criar um reduto – o foro da consciência – no qual o homem se encontraria a salvo da ação onipotente do Estado, titular da força coativa, que teria assim limitada sua eficácia ao foro meramente externo; mas seja assim ou não, o certo é que a afirmação teve conseqüências importantes para o conceito de direito natural (Fernández-Galiano, 2001, p. 484). Uma vez que a coação externa resulta ter um caráter essencialmente jurídico, o direito natural, como conseqüência do afirmado não é, ou não dever ser considerado como Direito, senão simples conselho. Neste sentido Thomasius textual e categoricamente afirma: "(…) la ley natural y divina pertenece más a los consejos que a los mandatos y la ley humana propiamente dicha no se refiere sino a normas imperativas" (Thomasius, 1994, p. 15). Se o direito natural não é Direito, ficará em simples ideal inspirador do único e autêntico Direito que é o positivo (Fernández-Galiano, 2001, p. 484).

Com um excessivo esquematismo, na opinião de Antonio Blanco González [24], Thomasius distingue três ordens ou sistemas normativos do obrar humano, que tendem uniformemente a conseguir a felicidade na vida, para qual se há de viver honesta, decorosa e justamente, que se referem as três ordens normativas: o moral, o político e o jurídico respectivamente. A Moral e a Política originam deveres imperfeitos. O Direito cria deveres perfeitos, distinção que Thomasius segue a Pufendorf. Blanco González (1999, p. 138) traduz a essência da clássica distinção dos fundamentos de Thomasius caracterizados nos planos do honesto (honestum), do decoroso (decorum) e do justo (iustum):

O honesto, identificado ao moral ou ético, provem do princípio faz a ti o quê queiras que os demais façam a si mesmos. Esta forma de comportamento é reflexiva; nasce e reverte no sujeito mesmo, carece de relação intersubjetiva ou alteridade; regula o campo das ações humanas das ações humanas boas, tendentes a alcançar a felicidade interna, motivo pelo qual gera mais que uma obrigação também interna que ninguém, mais que o próprio sujeito, pode exigir.

O decoroso, sinônimo de político, se nutre do princípio faz aos demais o quê queiras que os demais façam contigo. Esta norma de comportamento é de caráter transitivo e biunívoco; requere a existência de, ao menos, duas partes relacionadas entre si, pelo que seu caráter essencial é a bilateralidade. Esta norma regula as relações com os demais e tende a alcançar a benevolência alheia, é dizer, normatiza aquelas noções medias que nem promovem nem perturbam a paz externa, uma vez que em si mesmas não podem ser coativas.

O justo, equiparável ao Direito, provem do princípio não faças aos demais o quê não queiras que façam contigo. Esta norma, igualmente, é transitiva, biunívoca e, ademais, proibitiva, e se refere àquelas relações externas e intersubjetivas que tendem a assegurar a paz externa e que, por afetar a tranqüilidade social, são coercíveis. (grifos no original).

Desta forma em Thomasius encontramos plenamente situada a fundamental distinção entre Direito e Moral, ao separar o iustum, objeto do Direito, tanto do honestum, objeto da moral individual, como do decorum, objeto da moral social. Neste sentido, com um maior grau de maturidade que os iusnaturalistas anteriores, o autor alemão em sua etapa de Halle, formula a distinção entre o objeto da ciência jurídica e o objeto da teologia moral com a citada descrição das ações humanas referentes às respectivas esferas do iustum e do honestum, e a categorização das chamadas ações medianas, aquelas irrelevantes à consecução seja da paz externa como da paz interna, as que pertencem à órbita do decorum [25]. O honestum se refere à paz interna (a satisfação da íntima consciência) e o iustum à paz externa (a pacífica convivência social). O Direito limitá-se ao campo do iustum, e consiste no respeito aos demais e a abstenção para que cada um goze de seus próprios direitos. Com isto desenvolve-se a categoria autônoma da juridicidade, por seu caráter intersubjetivo e seu caráter coativo. É dizer, o Direito se refere e é competente unicamente nas ações exteriores que relacionam aos homens entre si e que se podem impor coativamente. Com esta afirmação, se produz a autonomia respectiva do Direito e da Moral, e praticamente se favorece – diante das Igrejas intolerantes e também diante do Estado – a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa, posto que somente as ações externas podem ser objeto de coação. Para o professor Truyol y Serra, a separação entre Direito e Moral em Thomasius está "(...) inspirada en la finalidad política de excluir de la regulación estatal o eclesiástica lo relativo al fuero de la conciencia y la vida interior (...)"(Truyol y Serra, 1988, p. 273). Toda esta construção tem uma finalidade bem clara no sentido de que o Estado deve limitar-se a garantir a chamada paz externa. Além do que, a distinção entre Direito e Moral que Wolf completará mais tarde, será a base da concepção kantiana do Direito de cujas categorias vivemos ainda atualmente (Truyol y Serra, 1988, p. 273). A filosofia do Direito, nas palavras de Ernest Bloch (1980, p.300-301), com a contribuição de Thomasius perde assim completamente sua vinculação com a teologia, uma vinculação que, de uma maneira ou de outra, todavia havia sido mantida por Pufendorf e os demais autores iusnaturalistas anteriores.


6. Uma questão fundamental na construção do conceito de ética pública: a luta pela humanização do Direito penal.

6.1. O Direito Penal da Monarquia absoluta.

Segundo o professor espanhol Francisco Tomás y Valiente (2000, 154), é impossível compreender a importância da humanização do Direito penal sem conhecer – ainda que seja brevemente –, como era o sistema jurídico-penal e processual contra o qual irão escrever os filósofos iluministas como Thomasius, Montesquieu, Voltaire e Beccaria. Uma vez que esses autores lutaram por mudanças de uma determinada situação, não é possível entender nem valorizar as censuras e o teor das inovações que foram pedidas pelos mesmos, sem ter alguma idéia sobre qual era a realidade que eles queriam modificar (Tomás y Valiente, 1969, p. 5).

A Situação do Direito Penal e do Direito Processual Penal no decorrer dos séculos da Monarquia absoluta era caracterizada por um sem fim de arbitrariedades e uma forma cruel de tratar o acusado. Aos olhos do cidadão de hoje era todo um conjunto de barbaridades: a falta de independência dos juizes; o fato de que os procedimentos não serem iguais a todos [26]; a utilização da tortura como pena e como meio de averiguação da verdade; a utilização de penas inumanas e cruéis [27]. Ditas arbitrariedades e crueldades serão os motivos do dissenso com a ordem legal da Monarquia absoluta que os pensadores do século XVIII utilizar-se-ão para gerar o movimento pela humanização do Direito penal e seu procedimento, que ao lado da necessidade de tolerância religiosa serão as causas pioneiras – primeiras necessidades e reflexões – na formação do ideal dos direitos fundamentais. A limitação do poder do Estado será o terceiro grande movimento, mas este surgirá um pouco depois na segunda metade do século XVIII. Dito movimento pela humanização do Direito penal originará uma elaboração baseada na necessidade de segurança jurídica por meio das garantias processuais, igualdade formal, direito à presunção de inocência, direito de ampla defesa, etc. (Peces-Barba, 1995 a, p. 143). Thomasius será um dos autores iniciais e fundamentais nessa construção.

Nos países do centro e ocidente da Europa continental, os respectivos Direitos penais e processuais ofereciam quase que idênticos caracteres [28]. A Monarquia absoluta incorreu sempre em um excesso de leis penais, com o intuito de intervir em muitos campos da vida social, até então controlados por reis de poder mais débil, os monarcas se viram obrigados a respaldar seus preceitos com sanções penais nada suaves (Tomás y Valiente, 2000, p. 156).

Subsistiam os delitos religiosos de procedência medieval, penalizados em geral de maneira muito severa, posto que constituíam os chamados crimina laesae Majestatis divinae (heresia, magia, sacrilégios, etc.), penalizados pela lei real e (também) perseguidos por uma jurisdição eclesiástica ou pela real ordinária (blasfêmias, bigamia, perjúrio, etc.) (Tomás y Valiente, 2000, p. 156).

O procedimento penal era o inquisitorial, isto é, secreto, com clara desigualdade entre as partes, em prejuízo do acusado, com um sistema de provas legais e de elásticas presunções que permitiam provar quase qualquer acusação contra o réu, o qual dispunha de pouquíssimos recursos defensivos (Tomás y Valiente, 2000, p. 156). Em todo o processo estava latente a idéia de que o réu além de delinqüente era um pecador. Por este motivo, como no sacramento da penitência, o réu pecador devia acusar-se de suas próprias culpas, isto é, confessar seu pecado [29]. Considerava-se também que diante do Tribunal da justiça humana a atitude obrigada por parte do delinqüente-pecador era a confissão de seu delito. Assim, a confissão passaria a ser a rainha das provas, entendida sempre como confissão de culpabilidade, mas carecendo de todo valor a afirmação de inocência por parte do réu (Tomás y Valiente, 2000, p. 156).

Uma vez iniciada a pesquisa ou julgamento inquisitivo contra algum indiciado de culpabilidade, se não havia provas suficientes para condenar-lhe, quase sempre havia (se considerava que havia) indícios suficientes para justificar a aplicação da tortura contra o acusado. Em caso de provas incompletas, a tortura tinha a finalidade de "descobrir a verdade" (quaestio ad eruendam veritatem), entendendo-se que a "verdade" ficava revelada quando o réu atormentado confessava sua culpabilidade, mas não se afirmava insistentemente sua inocência durante o tormento. A confissão pronunciada mediante a dor do tormento não era válida se o réu não a ratificava depois; mas se não realizava a ratificação, podia voltar a ser torturado (duas ou três vezes sucessivas, de acordo com as legislações de cada país) até que ratificasse sua confissão (Tomás y Valiente, 2000, p. 157).

Os juizes dispunham de uma grande margem de discricionariedade ao aplicar a lei penal. O segredo do processo os fazia terrivelmente temíveis, entre outras razoes, porque na maioria dos casos, suas numerosas arbitrariedades permaneciam ocultas, e não eram conhecidos senão por quem as sofria. Com relativa freqüência os textos legais não determinavam a pena concreta aplicável a um delito, senão que remitiam ao juiz para que este a impusera em função das particularidades do caso julgado. Ao mesmo tempo, a apreciação e valorização das circunstâncias agravantes ou atenuantes dependiam também por inteiro (inclusive quando o delito tivesse pena legal certa) do arbítrio judicial [30].

Nessa escalada do terror punitivo, os reis não se contentavam com esclarecer profusamente a pena de morte para uma multidão de supostos, senão que diante de determinados delitos (por exemplo, os de falsificação de moeda, que tinham muito interesse em reprimir) facilitavam a condenação dos possíveis réus, dotando de valor pleno a certas provas incompletas, como o testemunho (quase sempre secreto) de uma só pessoa, ou premiando a delação dos cúmplices, ou aumentando o valor probatório de certas presunções (Tomás y Valiente, 2000, p. 156).

6.2. A coerência de Thomasius entre sua teoria e sua proposta de práxis.

Christian Thomasius ocupou-se de diversas questões relativas ao Direito penal de seu tempo, exatamente por ser, como já foi dito, um intelectual sem misérias e engajado com as questões de sua época. Com a finalidade de oferecer soluções práticas aos problemas que suscitava o Direito penal e processual da monarquia absoluta, entre 1685 a 1723 Thomasius publicou seis escritos referidos a questões práticas relativos: 1. à questão da bigamia (De Crimine Bigamiae, de 1685); 2. à heresia e a questão da liberdade religiosa (Problema Juridicum: Na Haeresis sit Crimen, de 1697); 3. ao delito de magia (De Crimine Magiae, de 1701); 4. à prática da tortura como instrumento processual para a averiguação da verdade (De Tortura ex foris Christianorum proscribenda, de 1705); à prerrogativa de graça soberana a propósito do homicídio (De Iure Principis Evangelici aggrantiandi in caussis homicidii, de 1707); e, finalmente, às penas infames como contrárias à correção e reeducação de quem há delinqüido (Problema Juridicum: Na poenae viventium, eos infamantes, sint absurdae et abrogandae?, de 1723). Todos os textos evidenciam o interesse de seu autor na reforma da legislação penal e processual e foram publicados durante o chamado período de Halle, ou seja, na etapa intelectual na qual amadurece sua preparação e vem à luz os Fundamenta Júris Naturae et Gentium. A maioria dos comentaristas da obra de Thomasius apontam como os mais relevantes escritos citados, desde o ponto de vista de sua contribuição à identificação dos problemas mais urgentes da época, e por tanto, os que têm um melhor título a ser recordado como iniciadores da época das luzes em terras alemãs, os relativos à tortura, à heresia e à magia [31].

Além de, como já foi visto, Thomasius ser o precursor do Iluminismo na Alemanha, na opinião de Giovanni Tarello e Mario Cattaneo estamos também diante da primeira expressão do liberalismo alemão (Tarello, 1976, p. 117), ainda que, como muito bem afirma Norberto Bobbio (1947, p. 64), é inegável que Thomasius foi um defensor da liberdade religiosa, que é historicamente a primeira liberdade a ser defendida e que será a semente ideológica da defesa das liberdades posteriores, mas mesmo assim não pode ser considerado um liberal no sentido moderno da palavra porque lhe faltou uma concepção liberal de Estado. Pode-se, portanto e de acordo com Bobbio (1947, p. 65-67), falar de um liberalismo religioso e não político, ou ainda, no dizer de Gioele Solari (1949, p. 178) de um absolutismo liberal no entendimento de um Estado que é absoluto em suas ações, mas dirigidas estas em favor do interesse dos súditos.

Segundo Jerónimo Betegón (1998, p. 498) a filosofia da pena de Thomasius registra a interessante oscilação entre despotismo ilustrado e liberalismo. No livro Fundamentos, de 1705, essa postura fica bem clara ao impor-se, a já comentada distinção entre Direito e moral, entre o iustum e o honestum, como esboço de uma teoria do delito, ou seja, na determinação das características da ação punível quando deixa claro qual deve ser o objeto da tutela penal (Betegón,1998, p. 498). Exatamente no fundamento da tutela do delito penal, com a diferenciação entre pecado e delito, seja com a separação entre os assuntos relevantes ao Estado e à religião ou na exaltação da gravidade das violações do Direito do súdito confundidos com questões de foro íntimo, Thomasius constrói os argumentos dos que o consideraram como o precursor do individualismo liberal no âmbito do Direito penal (Cattaneo, 1976, p. 80-85). Então, da mesma forma, Thomasius é citado por muitos autores como, praticamente uma unanimidade [32], o precursor da humanização do Direito penal e do Direito processual penal, uma vez que de forma coerente em tudo que escreveu, além de se posicionar contra a tortura também lutou contra os processos de heresia, magia e feitiçaria.

6.2.1. A supressão da tortura do procedimento penal.

É importante ter a exata idéia, como sinaliza Tarello, que o problema do uso da violência no procedimento penal não foi suscitado e nem recebe respostas globais e articuladas até a segunda metade do século XVIII, e que talvez a única exceção de Thomasius, o pensamento precedente se tornou escassamente crítico com as instituições penais do antigo regime ou, ao menos, sua crítica careceu de uma orientação geral (Tarello, 1976, p. 383). Thomasius foi um dos primeiros teóricos que exigiu a abolição da tortura [33]. Seus passos seriam seguidos, entre outros por autores importantes como Montesquieu, Voltaire e Beccaria. No dizer de Ernest Bloch, "(...) nem sequer as almas mais nobres de seu tempo se opuseram a ela. E apenas se há outro terreno no qual o engenho humano tenha se tão ativo e fértil como na invenção de métodos que causem as dores mais insuportáveis" (Bloch, 1980, p. 308).

O motivo deste surgimento relativamente tardio da crítica aos procedimentos penais é difícil de determinar. Tarello sugere que foi a ruptura do consenso sobre os valores jurídicos que representou a secularização e a conseguinte excisão entre a idéia de pecado e a de delito; mas ainda que sem dúvida dita ruptura teve uma influência tangível, tampouco explicaria por que o humanismo penal nasce com notável posterioridade ao fenômeno da secularização (Tarello, 1976, p. 348). Como diz Luis Prieto Sanchís "(...) é significativo que uma das primeiras críticas abertas e decisivas ao Direito penal do antigo regime saísse da pluma de Thomasius, um autor muito mais próximo à Ilustração madura que ao iusnaturalismo racionalista precedente" (Pietro Sanchís, 1985, p. 289).

Thomasius iniciou uma autentica cruzada pela supressão da tortura que – como foi visto – constituía um procedimento habitual de obtenção de provas em relação aos indivíduos que se negavam a confessar. Em De tortura ex foris Chistianorum proscribenda (Sobre a eliminação da tortura do Tribunal dos cristãos) dizia que "(...) por la tortura se impone al desdichado acusado, todavía no convicto, una pena que excede en crueldad a aquella con la que sería castigado de ser comprobada su culpa (...) Horrible perversión en el ejercicio del poder punitivo" [34].

Sem dúvida a doutrina da separação entre Direito e Moral produziu efeitos benéficos tanto no plano teórico como no plano prático, mas neste último âmbito fica muito mais evidente e notória a influência de Thomasius. Quando se afirma que o Direito é coativo o que se defende é exatamente o contrário, no sentido de que não se pode regular – e muito menos castigar – as condutas que afetam exclusivamente a consciência individual relativos aos planos do honesto e do decoroso. Desta forma, então, na obra de Thomasius não estamos simplesmente na presença de uma pura distinção conceitual senão que, a partir da distinção entre o delito e pecado (Direito e a Moral), desde sua cátedra de Halle o autor propõe, como foi visto, um amplo catálogo de propostas tendentes a reformar o Direito vigente. Neste aspecto, segundo Segura Ortega (2001, p. 238), a importância das idéias de Thomasius é facilmente constatável. Exatamente com ele, começa o chamado humanitarismo penal que submete a uma profunda revisão o conteúdo do Direito penal da monarquia absoluta. É a luta pela humanização do Direito e do procedimento penal.

Neste sentido pode-se dizer que Thomasius criticou tudo aquilo que, em princípio, resultava anacrônico para uma mentalidade ilustrada como a sua. O principal argumento de sua critica com relação ao procedimento da tortura tem a ver com a profunda injustiça de tal meio processual e sua evidente iniqüidade. Ao uso da tortura se opõe o próprio direito natural que nos concede o recurso aos meios necessários à defesa da própria vida. Desde uma perspectiva política, Thomasius incide na estreita relação que cabe apreciar entre a prática institucionalizada do tormento e das tiranias (Betegón, 1998, p. 499).

Thomasius na obra De tortura ex foris christianorum proscribenda, defende a exclusão da tortura dos procedimentos penais, por ser uma pena desproporcionada e estar contra a justiça em geral, assim como também estar contra o sentido cristão da justiça e da proporcionalidade. Thomasius aconselha, em sua obra de 1705, ao príncipe a considerar sua abolição desde a perspectiva estritamente política, uma vez, que teologicamente e segundo o Direito natural a prática da tortura é insustentável [35].

Principalmente a partir da famosa obra escrito pelo jurista italiano Cesare Beccaria, Dei delitti e delle pene (Dos Delitos e Das Penas), publicada em Livorno em 1764, os iluministas retomam os argumentos de Thomasius e conseguem introduzir a proibição da tortura na legislação então vigente, começando pela legislação penal da Suécia e pela da Prússia, então governada pelo Rei Frederico II [36].

6.2.2. Os argumentos contra os processos de heresia, magia e feitiçaria.

A secularização do Direito natural e a defesa de uma Moral laica estão dirigidas tanto diante ao Estado como à Igreja. Os indivíduos são livres quanto ao seu foro interno e o exercício dessa liberdade não deve ser cerceada por nenhuma autoridade civil ou eclesiástica. Thomasius sabe exatamente do que fala, pois ele mesmo sofreu a intolerância em suas próprias carnes. O que exige é que os indivíduos se liberem dos preconceitos – fundamentalmente religiosos – e sejam capazes de dirigir suas vidas com autonomia e independência; neste sentido afirma: "el origen de la miseria procede de que los prejuicios llevan al entendimiento humano a equivocarse en el conocimiento de lo bueno y lo malo" [37].

Todas estas idéias implicam em uma nova visão do fenômeno da moral, da liberdade e, sobretudo, da dignidade humana. Por tudo isso a diferenciação entre Direito e Moral "(...) expressava não somente o sentimento de si do indivíduo burguês diante do Estado-policia que o rodeava, senão que dava à dignidade humana – elemento constitutivo de uma pessoa e de uma humanidade não somente e simplesmente burguesas – um lugar que, até então, não havia tido em absoluto na sociedade" (Bloch, 1980, 303).

Partindo desses supostos, Thomasius também lutou pela supressão dos processos de heresia, feitiçaria e magia. Sua luta nesse sentido é acima de tudo contra a superstição. Esta posição é totalmente coerente com sua doutrina de defesa da liberdade de pensamento e proteção da consciência dos indivíduos. Para Thomasius a heresia constitui em último caso um erro do intelecto, mas o respeito à consciência dos indivíduos deve ser absoluto de modo que todos também têm "direto a equivocar-se" sem que tais "erros" sejam suscetíveis de serem castigados penalmente (Ortega Segura, 2001, p. 238). Ademais, a heresia não é mais que o resultado do exercício da liberdade de pensamento e por essa razão, fundamental para nosso autor alemão, não pode configurar-se como um delito. Por tanto, o que faz Thomasius é negar ao Estado e a igreja o direito de castigar aos hereges. Fundamental a advertência da importância dessa afirmação em um ambiente no qual tanto a autoridade política como religiosa consideravam normal a intervenção nos assuntos da consciência [38]. O Direito penal deve cumprir outras funções e sua finalidade suprema há de ser a reprimir e castigar as condutas que afetem à comunidade e que possam alterar de algum modo à paz; no resto das ações o Estado não deve intervir (Ortega Segura, 2001, p. 239). Por esse motivo lamentava Thomasius (1994, p.15) de que "en la doctrina penal no están separadas las penas divinas de las humanas sino que se consideraban en común". Por conseguinte, os juristas têm que se ocupar somente das penas humanas porque as chamadas penas divinas pretendem a expiação do pecado enquanto que tal finalidade não existe – ou pelo menos, não deve existir – nas penas humanas (Ortega Segura, 2001, p. 239).

Sua argumentação é a semente do princípio da liberdade religiosa em tanto que também é evidentemente um pressuposto fundamental para o necessário desenvolvimento de todos os demais direitos de liberdade. Nega-se o caráter de delito a este tipo de manifestação por quanto não pertence à categoria do iustum; motivo pelo qual a heresia cabe identificá-la melhor como um erro do intelecto, um erro provavelmente desonesto, mas a legislação não pode referir-se ao intelecto. Por ultimo, a propósito dos processos de feitiçaria e magia, Thomasius ataca a superstição que radica em considerar a possibilidade de um pacto com o diabo e que tal conjectura possa dar origem a existência de um tipo delitivo desta índole.

Observar-se que Thomasius distingue claramente as idéias de pecado e delito e, por tanto, o Direito fica reduzido a uma dimensão estritamente humana. Em definitiva, se tivéssemos que definir a atitude de Thomasius com um só vocábulo teríamos que usar a palavra tolerância: a tolerância dignifica ao ser humano, o faz livre e o liberta dos preconceitos.

A luta pela humanização do Direito penal e processual, iniciada por Thomasius, será um dos pilares essenciais na construção do ideal dos direitos fundamentais e na separação da ética pública da ética privada. Felizmente sua idéia de humanização do procedimento penal será retomada e completada por autores como Montesquieu, Beccaria, Voltaire, entre outros, e assim chegará à inclusão da mesma em textos fundamentais que serão a base e o inicio da positivação dos direitos do homem [39].

A separação do Direito da Moral e a humanização do Direito penal e processual penal estão na base dos modernos direitos humanos e das demais liberdades, serão a semente que germinará as modernas liberdades que seguirá seu caminho até os atuais direitos fundamentais positivados nas constituições dos Estados ocidentais e na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.


7. Considerações finais.

A essencial contribuição de Christian Thomasius à fundamental diferenciação da ética pública da ética privada, ainda que este seja um autor não muito conhecido em nosso meio acadêmico, é de fácil constatação exatamente quando estudamos as origens das mudanças que vão desembocar em um novo direito natural, o racionalista, e no iluminismo, movimentos nos quais o nome de Thomasius está inscrito como um de seus iniciadores e um dos seus principais autores. A separação das questões de Direito (delitos) das questões de Moral (pecados), e a luta pela humanização do direito penal e seu procedimento, exatamente para apartar as questões de moral privada do Direito, são os dois vieses mais importantes da contribuição do autor alemão do final do século XVII e inicio do século das luzes.


REFERÊNCIAS

ARANGUREN, José Luis López. Lo que sabemos de moral. Madrid: Gregorio del Toro Editor, 1967.

BECCARIA, Cesare. De los Delitos y de las Penas. Tradução española de Juan Antonio de las Casas. Madrid: Alianza, 1968. Título original: Dei delitti e delle pene.

BETEGÓN CARRILLO, Jerónimo. Los precedentes de la humanización del Derecho penal y procesal en los siglos XVI y XVII. In: FERNÁNDEZ, Eusebio; PECES-BARBA, Gregorio (org.). Historia de los Derechos Fundamentales. Tomo I: Tránsito a la Modernidad. Siglos XVI y XVII. Madrid: Dykinson/Universidad Carlos III, 1998. p. 483-502.

BLANCO GONZÁLEZ, Antonio. El Iluminismo: Thomasio, Montesquieu. In: Filosofía del Derecho: Las concepciones jurídicas a través de la historia. 2. ed. Madrid: UNED, 1999. p. 133-144.

BLOCH, Ernest. Christian Thomasio, un intelectual alemán sin miseria. In: ______. Derecho Natural y Dignidad Humana. Tradução espanhola de Felipe González Vicen. Madrid: Aguilar, 1980. p. 285-318.

BOBBIO, Norberto. Il diritto naturale nel secolo XVIII. Torino: Giappichelli, 1947.

CAMPS, Victoria. Ética, retórica, política. Madrid: Alianza, 1988.

CATTANEO, Mario A. Delitto e pena nel pensiero di Christiano Thomasius. Milano: Giuffrè, 1976.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

D’ENTREVES, Alessandro Passerin. Derecho natural. In: _____ (et alii). Crítica del Derecho natural. Traducción de Elías Díaz. Madrid: Taurus, 1966. p. 73-199.

DÍAZ, Elías. Sociología y Filosofïa del Derecho. Madrid: Taurus, 1980.

EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. 2.ed. Tradução de Maria José Lopes da Silva. Brasília: Rosa dos Ventos, 1993. Título original: Directorium Inquisitorum.

FASSÒ, Guido. Historia de la Filosofía del Derecho: la Edad Moderna. Tomo II. Tradução española de José F. Lorca Navarrete. Madrid: Pirámide, 1966. Título original: Storia della Filosofia del Diritto: L’Età Moderna.

FERNÁNDEZ-GALIANO, Antonio. El iusnaturalismo. In: _____; CASTRO CID, Benito de. Lecciones de Teoría del Derecho y Derecho Natural. 3.ed. Madrid: Universitas, 2001 p. 377-529.

FERNÁNDEZ GARCIA, Eusebio. El contractualismo clásico (Siglos XVII y XVIII) y los derechos naturales. In: ______. Teoría de la Justicia y Derechos Humanos. Madrid: Debate, 1984. p.127-173.

FERNÁNDEZ GARCIA, Eusebio. El iusnaturalismo racionalista hasta finales del siglo XVII. In: ______; PECES-BARBA, Gregorio (org.). Historia de los Derechos Fundamentales. Tomo I: Tránsito a la Modernidad. Siglos XVI y XVII. Madrid: Dykinson/Universidad Carlos III, 1998. p. 571-599.

FERNÁNDEZ GARCIA, Eusebio. Estudios de Ética Jurídica. Madrid: Debate, 1990.

GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4.ed. Tradução de A.M. Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 2003. Título original: Introduction Historique au Droit.

GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Volume I. tradução de Ciro Mioranza. Ijuí: Ed. Unijuí, 2004. Título original: De Jure Belli ac Pacis.

HABERMAS, Jürgen. Derecho Natural y Revolución. In: _______. Teoría y praxis: estudios de filosofía social. 3.ed. Tradução espanhola de Salvador Mas Torres e Carlos Moya Espí. Madrid: Tecnos, 1997. Cap. II, p. 87-122. Título original: Theorie und Práxis.

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e M. Beatriz Nizza da Silva. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Título original: Leviathan.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os Pensadores – Kant (II). Tradução de Paulo Quintanela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 100-162. Título original: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten.

NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos: un ensayo de fundamentación. Barcelona: Ariel, 1989.

PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales: teoría general. Madrid: Universidad Carlos III, 1995 a.

PECES-BARBA, Gregorio. Ética, Poder y Derecho: reflexiones ante el fin de siglo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1995 b.

PECES-BARBA, Gregorio. La dignidad de la persona y la filosofía del derecho. Madrid: Dykinson, 2004 a.

PECES-BARBA, Gregório. Lecciones de Derechos Fundamentales. Madrid: Dykinson, 2004 b.

PECES-BARBA, Gregório. Tránsito a la Modernidad y Derechos Fundamentales. Madrid: Mezquita, 1982.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Delimitación conceptual de los derechos humanos. In: _____ (et alii). Los derechos humanos: Significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilla: Publicaciones Universidad de Sevilla, 1979. p. 16-45.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996.

PRIETO SANCHÍS, Luis. La filosofía penal de la Ilustración: Aportación a su estudio. Anuario de Derecho Humanos. Madrid: Instituto de Derechos Humanos. Universidad Complutense. p. 287-356. N.3, 1985.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e directos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

SEGURA ORTEGA, Manuel. El iusnaturalismo racionalista: Thomasius y Wolf. In: FERNÁNDEZ GARCÍA, Eusebio; PECES-BARBA, Gregorio (org.). Historia de los Derechos Fundamentales. Tomo II: Siglo XVIII, Vol. I: El contexto social y cultural de los derechos. Madrid: Dykinson/Universidad Carlos III, 2001. p. 220-250.

SINGER, Peter. Ética prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1988. Título original: Practical Ethics.

SOLARI, Gioele. Christiano Thomasio. In: ______. Studi storici di filosofia del diritto. Torino: Giappichelli, 1949. p. 157-178.

TARELLO, Giovanni. Storia della Cultura Giurídica Moderna. Tomo I: Assolutismo e codificazione. Bologna: Il Mulino, 1976.

THOMASIUS, Christian. Fundamentos de Derecho Natural y de Gentes. Tradução espanhola de Salvador Rus Rufino e M. Asunción Sanches Manzano. Madrid: Tecnos, 1994. Título original: Fundamenta iuris naturae et gentium.

THOMASIUS, Christian. Historia algo más extensa del Derecho Natural. Tradução espanhola de Salvador Rus Rufino e M. Asunción Sanches Manzano. Madrid: Tecnos, 1998. Título original: Paulo plenior historia iuris naturalis.

TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. El derecho penal de la monarquía absoluta (siglos XVI, XVII y XVIII). Madrid: Tecnos, 1969.

TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. La tortura judicial en España. Barcelona: Crítica, 2000.

TRUYOL Y SERRA, Antonio. Historia de la Filosofía y del Derecho: del Renacimiento a Kant. Tomo II. Madrid: Alianza, 1988.

WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução de A.M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. Título original: Privatrechtsgeschichte der Neuzait under Besonderer Berücksichtigung der Deutschen Entwicklung.


Notas

01 Preferimos escrever o nome do autor nascido em Leipzig como Thomasius, segundo a forma latinizada, adotada também pelos autores alemães do nome Thomas, da qual deriva, como também no caso de Grotius, a forma em primeiro lugar italianizada de Tomasio ou Thomasio e Grocio. FASSÒ, 1966, p. 167. No mesmo sentido, TRUYOL Y SERRA, 1988, p. 272.

02 Neste sentido, entre outros: SOLARI, 1949, p. 157; TRUYOL Y SERRA, 1988, p. 272; WIEACKER, 1980, p. 357.

03 O professor Antonio Pérez Luño chama a atenção no sentido de que o grande dilema da atualidade da humanidade é a escolha por ter-se uma postura ética ou pela economia (1996, p. 35-38). Tema interessantíssimo e que traduz o grave problema atual da humanidade por sua escolha, pelo menos pelos que estão no poder, pela economia e ao tratamento do ser humano como um meio e não como um fim.

04 Da mesma forma expõe o professor Eusebio Fernández: "Uma tese que me interessa aqui é a que está perfeitamente justificado o diferenciar a moral pessoal da moral social. Esta distinção há de ser aclarada, posto que as fronteiras entre a moral pessoal e a moral social não são tão sólidas como uma interpretação literal dessa distinção poderia fazer ver". (FERNÁNDEZ, 1990, p. 101).

05 "Como se sabe, Thomasius foi o primeiro que falou em alemão em uma sala de aula. (...) O monopólio cultural acirrado pelo uso do latim mantinha completamente separados, inclusive dentro da própria burguesia, os letrados dos iletrados; além isolava a ciência do povo em sua totalidade. Com seu gesto, Thomasius possibilitou a efetividade de uma Ilustração no seio da burguesia. Ao ensinar a ciência de modo específico ao falar em alemão, muito antes de Christian Wolf, o filósofo ilustrado ou praeceptor Germaniae, Thomasius fez também que se desenvolvessem na Alemanha formas lingüísticas nacionais de conteúdo europeu burguês. E nos principados territoriais, ainda separados, ofereceu em seu terreno o mais elevado do saber e da ciência, a unidade de uma pátria, ao menos quanto ao seu idioma". (BLOCH, 1980, p. 286-287 – tradução livre do autor do presente artigo). No mesmo sentido, segundo o próprio Thomasius "’Por esta forma devemos imitar os franceses na vida corrente’, indicando, portanto como finalidade o incentivar uma cultura geral e lingüística alemãs atraídas pelos modernos franceses". (WIEACKER, 1980, p. 357).

06 "Este hombre emprendedor no hizo menos que publicar, a partir de 1688, la primera revista cultural de su país, llamada Meses alemanes (el título lo cambió a menudo) (…) durante dos años, hasta que Thomasio abandonó Leipzig, la revista apareció mensualmente (…) esta revista es la más temprana en lengua alemana tuvo como modelo en muchos puntos al Journal des sevants, qua había comenzado a aparecer unos veinte años antes (…)" (BLOCH, 1980, p. 287).

07 BLOCH, Ernest. Christian Thomasio, un intelectual alemán sin miseria. In: ______. Derecho Natural y Dignidad Humana. Tradução espanhola de Felipe González Vicen. Madrid: Aguilar, 1980. p. 285-318.

08 Umas das sugestivas contribuições do professor Gregorio Peces-Barba à teoria dos direitos fundamentais, entre tantas outras, consiste no estudo das chamadas linhas de evolução dos direitos em questão que são relatadas nos seguintes processos, entre os quais incluímos didaticamente um anterior por nós chamado processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Resumidamente estes são: a. processo de positivação: a passagem da discussão filosófica ao Direito positivo (primeira geração, direitos de liberdade); b. processo de generalização: significa a extensão do reconhecimento e proteção dos direitos de uma classe a todos os membros de uma comunidade como conseqüência da luta pela igualdade real (direitos sociais ou de segunda geração); c. processo de internacionalização: ainda em fase embrionária, de difícil realização prática e que implica na tentativa de internacionalizar os direitos humanos e que ele esteja por cima das fronteiras e abarque toda a Comunidade Internacional (tentativa de universalização dos direitos humanos). d. processo de especificação: pelo qual se considera a pessoa em situação concreta para atribuir-lhe direitos seja como titular de direitos como criança, idoso, como mulher, como consumidor, etc, ou como alvo de direitos como o de um meio ambiente saudável ou à paz (direitos difusos ou de terceira geração). Entre outros trabalhos do professor espanhol, ver: PECES-BARBA, 1995 a, p. 146-198.

09 Na opinião do professor Gregorio Peces-Barba as duas mais importantes perguntas da Filosofia dos Direitos Fundamentais é a do POR QUÊ e do PARA QUÊ dos direitos humanos, da existência dos direitos humanos. Em nossa opinião deve-se incluir uma terceira pergunta: QUAL DEVE SER SEU CONTEÚDO? Essa então seria a terceira pergunta importante. As respostas: Quanto à segunda pergunta do PARA QUÊ dos Direitos Fundamentais encontramos resposta na leitura dos documentos de Direitos Humanos, seja a Declaração Universal de Direitos Humanos, ou de Direitos Fundamentais, seja a Constituição da República Federal do Brasil de 1988 ou qualquer outra constituição dos paises democráticos do ocidente. Quanto à terceira pergunta, qual de ser seu conteúdo, também pode ser respondida com a leitura dos documentos de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, fazendo-se a ressalva de que os Direitos Humanos podem modificar-se através dos tempos como podemos ver com o advento de novas necessidades e com o fenômeno dos novos direitos. Veremos em seguida essa questão com o estudo do Processo de formação do ideal ou da idéia dos Direitos Fundamentais, é um processo que existe desde o inicio e que jamais deixará de existir uma vez que os Direitos Fundamentais não são um conceito estático, imutável ou absoluto e muito pelo contrário trata-se de um fenômeno que acompanha a evolução da sociedade e das novas tecnologias, e as novas necessidades de positivação para proteger a dignidade humana, a liberdade, a igualdade e fazer da solidariedade uma realidade entre todos.

A grande pergunta, e mais difícil de responder, da Filosofia dos Direitos Fundamentais é a do POR QUÊ dos Direitos Fundamentais. POR QUE devem ser respeitados os Direitos Fundamentais? Essa resposta é o conteúdo da própria a fundamentação dos Direitos Fundamentais, ela vai unida ao conhecimento de sua história, sua evolução, seus processos de evolução e do seu conceito. Diz o professor Peces-Barba que se cruamente não fundamentamos, não justificamos moralmente os Direitos Fundamentais, os mesmos seriam uma FORÇA SEM MORAL; E os Direitos Fundamentais somente como MORAL, como querem entre outros os atuais seguidores de um Direito Natural contemporâneo, seria uma MORAL SEM FORÇA. (PECES-BARBA, 1995 a, p. 101-112).

10 Justifica o professor Peces-Barba sua utilização da expressão, devido à "(...) ambigüidade do termo Renascimento preferimos falar do termo, muito menos comprometedor, trânsito à modernidade. Não podemos nos subtrair, como é lógico, a tomar posições respeito a teorias extremas, a de ruptura e a da continuidade, que dependem, em parte, da localização dos respectivos períodos, isso é descrever onde se situa o fim da Idade Média e onde se localiza o inicio do Renascimento". Segue o professor espanhol, "(...) Como entendemos que há um entrecruzamento no tempo entre esses dois momentos, o que já supõe tomar uma posição intermediaria entre as duas posições extremas, consideramos mais adequado, mais compreensivo, utilizar o termo trânsito à modernidade". Conclui: "Na análise concreta destas grandes linhas caracterizadoras do trânsito à modernidade se perfilará nossas posições, que adiantamos: o trânsito à modernidade é um momento revolucionário, de profunda ruptura, mas ao mesmo tempo importantes elementos de sua realidade já anunciavam na Idade Média, e outros elementos tipicamente Medievais sobreviveram ao fim da Idade Média, neste trânsito à modernidade e até o século XVIII, aparecerá a filosofia dos direitos fundamentais, que como tal, é uma novidade histórica do mundo moderno, que tem sua gênese no trânsito à modernidade, e que, por conseguinte, participa de todos os componentes desse trânsito já sinalizados, ainda que sejam os novos, os especificamente modernos, os que lhe dão seu pleno sentido". (PECES-BARBA, 1982, p. 2-4 – tradução livre do autor).

11 "Las teorías contractualistas vendrán a dar solución a la búsqueda de un nuevo principio de legitimidad democrática en los siglos XVII y XVIII, que explique el origen y fundamento de la sociedad civil y política. Este tipo de legitimidad, encarnado en la teorías del contracto social, será el principio de la legitimidad democrática, ya que explica el origen de la sociedad en un pacto de individuos libres e iguales y fundamenta la legitimidad de los gobiernos en el consentimiento de los gobernados". (FERNÁNDEZ, 1984, p. 147).

12 Evidentemente que o aludido processo de formação do ideal dos direitos fundamentais não ocorre somente na época denominada trânsito à modernidade, é um processo em constante transformação, e que segue seu curso até os dias atuais. Alguns direitos fundamentais que não eram considerados em épocas anteriores, agora são e o contrario também ocorre, os exemplos são muitos.

13 "A secularização se produz diante das características da sociedade medieval, e suporá a mundanização da cultura, que contrapõe a progressiva soberania da razão e o protagonismo do homem orientado na direção de um tipo de vida puramente terrenal, à ordem da revelação e da fé, baseado na autoridade da Igreja. É conseqüência da ruptura da unidade religiosa, e abarcará a todas os seguimentos da vida, desde a arte, a pintura, a literatura, a nova ciência e a política a partir da obra de Maquiavel. Os temas religiosos são substituídos pelos problemas humanos. (...) Em todo esse processo os direitos fundamentais realizarão progressivamente uma tarefa de substituição da ordem medieval, desde o momento em que supõe uma garantia de segurança que o edifício medieval, culminado por Deus, já não podia proporcionar; e que havia que encontrar nos homens mesmos. (...) Na sociedade, progressivamente secularizada se poderá dar releve as necessidades da burguesia para a procura de uma nova ordem baseada na razão e na natureza humana; é a ordem do individualismo e dos direitos naturais". PECES-BARBA, 2004 b, p. 81-82 – tradução livre do autor).

14 Da mesma forma como recorda o próprio professor Antonio Enrique Pérez Luño não se pode esquecer a importante contribuição ao tema da chamada escolástica tardia, dos teólogos e juristas espanhóis dos séculos XVI e XVII. (PÉREZ LUÑO, 1979, p. 33-34). Sobre o mesmo asunto: MARAVAL, J. A. La idea de tolerancia en España: siglos XVI y XVII. In: ____. La oposición política bajo los austrias. Barcelona: Ariel, 1974. p. 93-105; ABELLÁN, José Luis. Historia crítica del pensamiento español: La Edad de Oro (siglo XVI). Tomo II. Madrid: Espasa Calpe, 1979. p. 349-589. Da mesma maneira é interessante o que diz professor Eusebio Fernández: "Sin Duda, no debe minusvalorarse la influencia de la Escuela española de Derecho Natural – Neoescolástica o Segunda Escolástica – en la elaboración de las teorías del derecho natural racionalista, pero tampoco este punto debe ser exagerado, pues las innovaciones del iusnaturalismo racionalista tienen una valía importante por méritos propios y por lo que representan en la historia de la reflexión sobre el Derecho Natural" (FERNÁNDEZ, 1998, p. 578).

15 No conhecido decálogo do Marquês de Beccaria, descrito pelo professor Francisco Tomás y Valiente, fica bem claro o sentido de "dulcificação", principalmente a partir do princípio sexto, ao que se referem os racionalista e iluministas com relação à lei penal: : Racionalidade; : Legalidade do Direito Penal; : A justiça penal deve ser pública; : Igualdade entre todos diante da lei penal; : O critério para medir a gravidade dos delitos deve ser o dano social produzido por cada um deles, não podem seguir sendo considerado válidos os critérios da malícia moral (pecado) do ato, nem o de qualidade ou classe social da pessoa ofendida. : Não por serem mais cruéis são mais eficazes as penas, há a necessidade de moderação respeito às penas, importa mais e é mais útil uma pena moderada e de segura aplicação do que outra cruel, mas incerta. Existe a necessidade de impor-se a pena mais suave entre as eficazes, somente essa é uma pena justa, ademais de útil. Existe, pois, a extrema necessidade de combinar a utilidade e a justiça. : A pena não deve perseguir tanto o castigo do delinqüente como a repressão de outros possíveis e futuros delinqüentes, aos que ela deve dissuadir de seu potencial inclinação a delinqüir. : Existe a extrema necessidade de obter-se uma rigorosa proporcionalidade entre delitos e penas. O contrario é socialmente prejudicial, além de injusto, porque diante de delitos de igual pena e diferente gravidade, o delinqüente se inclinará quase sempre pelo mais grave, que provavelmente lhe dará maior beneficio ou satisfação. : A pena de morte é injusta, desnecessária e menos eficaz que outros meios menos cruéis e mais benignos. Há que suprimi-las quase por inteiro. 10º: Deve-se ter presente que é sempre preferível prevenir que punir, evitar o delito por meios dissuasivos não punitivos que castigar ao delinqüente (TOMÁS Y VALIENTE, 2000, p. 160-162).

16 O estado de natureza que descreve Thomasius está impregnado de um pessimismo antropológico que recorda em muito as teses hobbesianas apesar de que afirma situar-se em um ponto intermediário entre Hobbes e Aristóteles: "(...) el estado natural de los hombres, hablando con precisión, no es el estado de guerra, n iel estado de paz, sino un caos confuso mezclado de una y de otra, aunque tiene más de estado de guerra que de paz" (THOMASIUS, 1994, p. 55).

17 THOMASIUS, Christian. Fundamentos de Derecho Natural y de Gentes. Tradução espanhola de Salvador Rus Rufino e M. Asunción Sanches Manzano. Madrid: Tecnos, 1994.

18 THOMASIUS, Christian. Historia algo más extensa del Derecho Natural. Tradução espanhola de Salvador Rus Rufino e M. Asunción Sanches Manzano. Madrid: Tecnos, 1998.

19 Neste sentido, entre outros: TRUYOL Y SERRA, 1988, p. 273; FASSÒ, 1966, p. 167; BLANCO GONZÁLEZ, 1999, p. 137.

20 "(…) la ley natural es la ley divina inscrita en el corazón de todos los hombres que les obliga a hacer lo que es necesariamente conforme a la naturaleza del hombre racional y a omitir todo lo que repugna a ésta". THOMASIUS, Christian. Instituciones Jurisprudentiae Divinae. Aalen: Scientia Verlag, 1963. p. 97. Apud: SEGURA ORTEGA, 2001, p. 231.

21 Na obra Instituições, segundo afirma Guido Fassò, Thomasius mantém uma posição voluntarista tipicamente luterana. FASSÒ, 1966, p. 169.

22 Na opinião de Thomasius, Deus quer (por intermédio de uma ordem expressa de sua vontade) que o homem se comporte de uma determinada maneira de acordo com sua natureza racional e social: "(...) haz lo que conviene a la vida social del hombre y omite lo que repugna a aquélla". THOMASIUS, Christian. Instituciones Jurisprudentiae Divinae. Aalen: Scientia Verlag, 1963. p. 64. Apud: SEGURA ORTEGA, 2001, p. 231.

23 "O que (...) teria lugar de certo modo, mesmo que se concordasse com isso, o que não pode ser concebido sem um grande crime, isto é, que não existiria Deus ou que os negócios humanos não são objeto de seus cuidados". GROTIUS, 2004, p. 40.

24 A crítica de Blanco González é no sentido de que na prática não acontece tão taxativa separação das esferas internas e externas do indivíduo, ainda que o professor espanhol reconheça também que com esta tripla distinção Thomasius pretendia levar à prática seu convencimento intelectual de que somente os deveres jurídicos são coercíveis para regular um comportamento externo que afeta à paz social. BLANCO GONZÁLEZ, 1999, p. 138.

25 Hoje identificado com os usos e costumes sociais, em geral, e com a ética social ou com o pluralismo ético existente socialmente. BLANCO GONZÁLEZ, 1999, p. 140.

26 A desigualdade: Um dos privilégios mais importantes da nobreza era o que estipulava que um nobre não poderia ser submetido à tortura, salvo em processos de lesa majestade divina ou humana. Era esta uma das manifestações de desigualdade pessoal diante da lei penal. Neste terreno, como em todos os demais, os privilégios do estamento nobiliário eram muito notáveis e eficazes; gozavam também de jurisdições especiais, e certas penas (as corporais ou aflitivas) não podiam impor-se aos nobres. TOMÁS Y VALIENTE, 2000, p. 157.

27 O repertório de penas legais era muito escasso respeito às leis e muito amplo respeito aos de maior dureza. O desterro de uma cidade, a prisão por não muito tempo, a pena de vergonha pública e as pecuniárias eram as mais suaves. Junto a elas existiam as de azotes, presídios em minas ou arsenais, mutilações (de olhos, de orelhas, de mãos, de língua), galeras (por tempo certo ou perpétuas) e a pena de morte. Como a pena de morte era muito freqüentemente estabelecida sua aplicação revestia diversas formas, como última tentativa de aterrorizar eficazmente aos súditos, reservando as formas mais dolorosas para os delitos mais graves. A história nos traz diversos sistemas de execução tão cruéis como refinados: a morte na fogueira, no azeite fervendo, o despedaçamento, a romana pena do culleum contra o parricida – aplicada em geral com atenuação de seu rigor –, a decapitação, o garrote, a forca, etc. TOMÁS Y VALIENTE, 2000, p. 158-159.

28 Nos territórios que hoje são a França, a Itália, a Espanha e a Alemanha, a recepção romano-canônica dotou a seus ordenamentos jurídicos de um fundo comum desde os séculos da Baixa Idade Média; no Império, a Constitutio Criminales Carolina, do imperador Carlos V, em 1532, deu entrada na legislação penal imperial a esse Direito romano-canônico que, se bem já era conhecido na Alemanha pelos juristas teóricos, em geral penetrou ali mais lenta e tardiamente que nos paises mediterrâneos. GILISSEN, 2003, p. 716-717. Em todas as partes esse direito comum romano-canônico encontrou resistências no anterior direito consuetudinário, de caráter popular e não técnico, e que em algumas zonas do norte da França e do Império, por exemplo, se opôs com êxito durante muito tempo ao novo Direito. Mas em concreto, pelo que faz referência ao Direito penal e os processos penais, as Monarquias ampararam insistentemente esse Direito penal de raiz romana e baixo-medieval. Porque favorecia de modo muito eficaz sua autoridade. TOMÁS Y VALIENTE, 2000, p. 154-155.

29 A proximidade entre as idéias de delito e pecado existentes nas mentes e obras dos teólogos, juristas e legisladores fazia ver no delinqüente um pecador. Uma vez que, segundo ensinavam os teólogos da época, a violação da lei penal justa ofende a Deus, concluía-se que o réu era também um pecador. Desde estes supostos, a pena era principalmente considerada como um castigo merecido pelo delinqüente, e sua imposição pretendia ser uma justa vingança. Como dizia os documentos da época, uma vingança pública. Junto a este fim purgativo, a pena era utilizada pelo legislador como arma repressiva, como convite à obediência da lei pelo caminho do ius puniendi. Pensava-se que quando mais temor produzira uma pena, era mais exemplar e, por conseguinte, mais eficaz. TOMÁS Y VALIENTE, 2000, p. 159-160.

30 Os delitos não estavam perfilados ou "tipificados" devido a definições legais precisas e não sucetíveis de interpretações extensivas por analogia. Pelo contrário, as leis penais costumavam serem meramente descritíveis, isto é, enumerados como uma espécie de "casos concretos" incluídos mediante a qualificação de furto, homicídio, estupro, etc. Com ajuda de uma abundantíssima e também casuística doutrina penal, os juizes podiam interpretar extensivamente qualquer dos casos legalmente penalizados e dar entrada por analogia a supostos não previstos pelo legislador. A obscuridade das leis, a ainda maior da doutrina, e a ausência de fundamentos de fato e de direito como justificação expressa de cada sentença penal, faziam possível que a legalidade destas fosse escassa e a margem do arbítrio judicial enorme. Ademais, a grande quantidade de delitos castigados com a pena de morte eliminava toda possível proporcionalidade entre delitos e penas. TOMÁS Y VALIENTE, 2000, p. 158.

31 Neste sentido: CATTANEO, 1976, p. 227; BLOCH, 1980, p. 306-313; TRUYOL Y SERRA, 1988, p. 275; BETEGÓN, 1998, p. 499.

32 Neste sentido, entre outros: PECES-BARBA, 1995 a, p. 515; BLOCH, 1980, p. 308-309; TRUYOL Y SERRA, 1988, p. 273; SEGURA ORTEGA, 2001, p. 238; BETEGÓN, 1998, p. 498; TARELLO, 1976, p. 383; CATTANEO, 1976, p. 227.

33 O primeiro documento que se tem notícia em condições de rejeitar e condenar a prática da tortura foram os comentários do humanista cristão João Vives ao De Civitate Dei de Santo Agostinho em pleno século XVI, que condenava a pratica da tortura se os castigados eram indivíduos condenados sem defesa e provas. Conferir: A progressiva rejeição da tortura. In: ARNS, Paulo Evaristo. (org.). Brasil: nunca mais. 31 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 281.

34 THOMASIUS, Christian. De tortura ex foris Chistianorum proscribenda. p. 3 Apud: BLOCH, 1980, p. 309.

35 Em sua obra citada, De tortura ex foris christianorum proscribenda, defendia a exclusão da tortura dos processos penais, por se tratar de uma pena desproporcional e contra a justiça em geral, bem como por ser contra o senso cristão de justiça e de proporção. THOMASIUS, Christian. De tortura ex foris Chistianorum proscribenda. p. 43. Apud: BLOCH, 1980, p. 309.

36 O Marquês de Beccaria levantou a tese de que a tortura constituía uma injustiça e um ato ineficaz, que representava uma inversão de situações em que o inocente e fraco sofreria os suplícios injustamente e no calor do desespero acabaria confessando o que não fez, por conseguinte seria condenado, enquanto o verdadeiro criminoso por tratar-se de homem robusto e forte acostumado com as piores situações, se entregando as técnicas do torturador e confessando estaria pagando por seus crimes, mas resistindo e negando sua criminalidade seria posto em liberdade como se inocente fosse. Essa relação já demonstracomo a injustiça é formalmente praticada com o ritual procedimental das autoridades. No mesmo sentido que Thomasius, na acepção beccariana do termo, tortura é a consecução da vontade do mais forte pela força, com fins de obter a verdade mesmo que esta seja forjada. Cesare Beccaria, Dei delitti e delle pene (Dos Delitos e Das Penas), publicada em Livorno em 1764. BECCARIA, Cesare. De los Delitos y de las Penas. Capítulo 16: Del tormento. p. 52-58.

37 THOMASIUS, Christian. De las causas de la infelicidad general. In: De los prejuicios y otros escritos. p. 43. Apud: SEGURA ORTEGA, 2001, p. 237.

38 Veja-se: EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. 253 p.; Especialmente: BOFF, Leonardo. Prefácio – Inquisição: um espírito que continua a existir. p. 7-28; e Parte III – Questões referentes à prática do Santo Ofício da Inquisição. p. 183-253.

39 Como exemplos, do posterior processo de positivação dos direitos fundamentais relativos aos fenômenos da tortura e da conseqüente humanização do Direito penal, podemos citar em primeiro lugar o artigo 8 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que estabelecia a proibição de impor penas que no forem estrita e evidentemente necessárias. E, em segundo lugar, em 1791 a emenda oitava à Constituição dos EUA dizia que não se poderão impor castigos cruéis nem aberrantes. Conferir: COMPARATO, Fábio Konder, 2003, p. 114-121 e 122-160.


Autor

  • Marcos Leite Garcia

    Marcos Leite Garcia

    doutor em Direito, mestre e especialista em Direitos Humanos e especialista em História da Inquisição pela Universidade Complutense de Madrid (Espanha), professor do curso de pós-graduação stricto sensu em Ciência Jurídica e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Marcos Leite. A construção histórica da distinção entre ética pública e moral privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais: a contribuição de Christian Thomasius. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1488, 29 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10192. Acesso em: 18 abr. 2024.