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Considerações sobre a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado

Considerações sobre a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado

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INTRODUÇÃO

A sentença passada em julgado, após escoado o prazo para a propositura da ação rescisória, deve ser sempre acobertada pelo manto da imutabilidade? Em outras palavras, haveria casos excepcionais, além dos enumerados no art. 485, CPC [01] em que, mesmo escoado o biênio previsto pelo art. 495 do CPC [02], a sentença mereceria ser reformada?

Esta questão, hoje chamada de flexibilização da coisa julgada, será o objeto de nosso artigo. O que despertou o interesse pelo tema foi o fato de que para nós, a coisa julgada, conforme disse Humberto Theodoro Júnior [03], sempre esteve em um patamar de santidade. Disse ainda que os autores do século XIX referiam-se a ela como algo sacro, intangível e intocável. Portanto o estudo sobre a flexibilização de algo intocável chamou-nos a atenção.

Para melhor compreendermos o assunto, apresentaremos o nosso artigo em seis partes. Na primeira parte, faremos uma breve recapitulação do conceito de coisa julgada. Na segunda, discutiremos a questão da nomenclatura mais adequada para o tema. Os casos mais relevantes que suscitaram a discussão serão apresentados na terceira parte. Voltaremos nossa atenção para as correntes e argumentos que defendem a flexibilização ou relativização da coisa julgada inconstitucional na quarta parte. O estudo de argumentos a favor da segurança jurídica e, por conseguinte, contrários à flexibilização será o objeto de nossa apreciação, na quinta parte. Finalmente, apresentaremos nossa conclusão e ousaremos sugerir medidas que, a nosso ver, poderiam contribuir para solucionar a questão.


DO CONCEITO DE COISA JULGADA.

Uma vez que a sentença esteja imune ao ataque de quaisquer recursos, diz-se que transitou em julgado. Do CPC temos: "Art.467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário." Por sua vez o § 3º do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: "§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso."

Da lição de Nelson Nery Junior, extraímos:

Coisa julgada material (auctorias rei iudicatae) é a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (CPC 467; LICC 6º§3º), nem à remessa necessária do CPC 475. Somente ocorre se e quando a sentença de mérito tiver sido alcançada pela preclusão, isto é, a coisa julgada formal é pressuposto para que ocorra a coisa julgada material, mas não o contrário. A coisa julgada material é um efeito especial da sentença transitada formalmente em julgado. [04]

Cintra, Grinover e Dinamarco, professam:

A sentença não mais suscetível de reforma por meio de recursos transita em julgado, tornando-se imutável dentro do processo. Configura-se a coisa julgada formal, pela qual a sentença, como ato daquele processo, não poderá ser reexaminada. É sua imutabilidade como ato processual, provindo da preclusão das impugnações e dos recursos. A coisa julgada formal representa a preclusão máxima, ou seja, a extinção do direito ao processo (àquele processo, o qual se extingue).

(...)

A coisa julgada formal é pressuposto da coisa julgada material. Enquanto a primeira torna imutável dentro do processo o ato processual sentença, pondo-a com isso ao abrigo dos recursos definitivamente preclusos, a coisa julgada material torna imutáveis os efeitos produzidos por ela e lançados para fora do processo. É a imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro, entre as mesmas partes. Em virtude dela, nem o juiz pode voltar a julgar, nem as partes a litigar, nem o legislador a regular diferentemente a relação jurídica. (...)

Conforme lição da mais viva atualidade, nem a coisa julgada formal, nem a material, são efeitos da sentença, mas qualidades da sentença e de seus efeitos, uma e outros tornados imutáveis. (...) [05]

Na mesma direção é o ensinamento de Vicente Greco Filho:

Coisa julgada, portanto, é a imutabilidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença, que decorre de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis.(...)

(...) coisa julgada formal, que é a imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo por falta de meios de impugnação possíveis, recursos ordinários ou extraordinários. (...)

(...) a coisa julgada material, que é a imutabilidade dos efeitos que se projetam fora do processo (torna-se lei entre as partes) e que impede que nova demanda seja proposta sobre a mesma lide. Esse é o chamado efeito negativo da coisa julgada material, que consiste na proibição de qualquer outro juiz vir a decidir a mesma ação. [06]

José Roberto dos Santos Bedaque esclarece:

A coisa julgada visa a impedir conflitos práticos de julgados, pois estabiliza os efeitos da sentença. Faz com que a regra concreta revelada na sentença fique imune a novos julgados e novas normas. Daí dizer-se que o instituto tem finalidade eminentemente prática, destinando-se a conferir estabilidade á tutela jurisdicional.

O sistema processual pretende evitar novos litígios a respeito da mesma situação da vida. Nessa medida, natural que o grau de imunização e seus limites sejam determinados pelas circunstâncias da relação jurídica substancial. [07]

Frente ao acima exposto, a sentença que esteja ao abrigo de recursos é imutável, depois de escoado o biênio da ação rescisória. Se a jurisdição busca a paz social por intermédio do processo é preciso ter um instante em que a sentença se torne definitiva e indiscutível, para não haver uma discussão infindável.


JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA DA EXPRESSÃO "SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO".

Cumpre-nos, agora comentar o termo flexibilização ou relativização da coisa julgada. Flexibilizar é tornar flexível, menos rígido [08]. De maneira semelhante, ao se dizer que algo deva "ser ‘relativizado’, logicamente se dá a entender que se está enxergando nesse algo um absoluto: não faz sentido que se pretenda ‘relativizar’ o que já é relativo." [09] Sabe-se que a sentença, mesmo após o trânsito em julgado, pode ser atacada por meio da ação rescisória. Então ela já é flexível e relativa. Não há como tornar flexível e relativo, aquilo que já o é. Como bem observa Barbosa Moreira [10], o que se pretende é um alargamento dos limites hoje existentes para majorar o grau de flexibilidade ou relatividade da sentença transitada em julgado.

Cabe, ainda, outra observação referente ao uso do termo "relativização". Não há direito fundamental que seja absoluto. Todos os direitos e garantias fundamentais integram um sistema constitucional que deve ser harmônico. Portanto direitos e garantias devem prestar contas reciprocamente e, assim, limitarem-se. Vale dizer que a coisa julgada não é um valor absoluto, o que nos mostra mais uma vez a impropriedade da expressão relativização da coisa julgada. Como relativizar o que não é absoluto? [11]

Por outro lado, a coisa julgada é apenas qualidade da sentença que se torna imutável. A inconstitucionalidade é característica da sentença incompatível com a Constituição. Ela não se torna nem mais, nem menos inconstitucional, porque imutável, isto é adquiriu o status de coisa julgada. Logo, a inconstitucionalidade é da sentença, e não da coisa julgada. [12]

Assim, julgamos que a expressão flexibilização ou relativização da coisa julgada não é a mais adequada para nos referimos a esta questão. Face aos argumentos apresentados, preferimos adotar a locução sentença inconstitucional passada em julgado.


ALGUNS CASOS QUE LEVAM À REFLEXÃO SOBRE A SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO.

Humberto Theodoro Júnior, no seminário denominado "Flexibilização Sobre a Coisa Julgada" [13] e em artigo publicado em co-autoria com Juliana Cordeiro de Faria, [14] nos revela que há poucos anos a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo solicitou seu parecer "a respeito da multiplicidade e superposição de sentenças transitadas em julgado condenando o poder público a indenizar a mesma área expropriada, mais de uma vez, ao mesmo proprietário. Já não cabia mais rescisória...".

Ainda tratando do direito de propriedade, há o caso em que a área expropriada já pertencia ao expropriante [15], e outro em que, após o trânsito em julgado da sentença de desapropriação, o pagamento foi postergado por culpa do ente expropriante. Assim, o STF determinou nova avaliação [16]. E, como nos contou Humberto Theodoro Júnior, há uns trinta anos, quando surgiu a inflação e sobre ela foi perdido o controle, o Supremo Tribunal Federal começou a enfrentar questões versando sobre desapropriação, que chegavam com a sentença transitada em julgado, e o "grito de desespero do desapropriado, porque simplesmente sem a existência da correção monetária, aquela indenização justa, prévia e em dinheiro, que era uma garantia constitucional, se esvaía no tempo, desaparecia, e o proprietário perdia a casa onde morava, a fazenda, o imóvel urbano e nada tinha a receber." [17]

Há ainda a questão referente à paternidade: sentença transitada em julgado que determinou, antes da existência do exame de DNA que "A" era filho de "B". Posteriormente, com o avanço tecnológico e a descoberta de novo meio de prova, constatou-se que "B" não é pai de "A". Todavia, por força da coisa julgada, são filho e pai.

Na obra Nova Era do Processo Civil, Dinamarco, citando Eduardo Couture, nos apresenta outro interessante relato:

Couture examinou um caso do fazendeiro rico que, tendo gerado um filho em parceria com uma empregada, gente muito simples, para forrar-se às responsabilidades de pai, induziu esta a constituir procurador, pessoa da absoluta confiança dele, com poderes para promover a ação de investigação de paternidade. Citado, o fazendeiro negou vigorosamente todos os fatos constitutivos narrados na demanda e o procurador do menor e da mãe, que agia em dissimulado conluio com o fazendeiro, negligenciou por completo o ônus de provar o alegado; a conseqüência foi a improcedência total da demanda, passando em julgado a sentença porque, obviamente, o advogado conluiado não recorreu. Mais tarde, chegando à maioridade, aquele filho moveu novamente uma ação de investigação de paternidade, quando então surgiu o problema da coisa julgada. O caso terminou em acordo, lamentando-se não ter sido possível aprofundar a discussão e obter um pronunciamento do Poder Judiciário sobre o importantíssimo tema." [18]

Encontramos, ainda referência ao estudo efetuado por Mazzilli e citado por Ada Pellegrini Grinover [19]. Mazzilli estudou o Direito Ambiental e sustentou o seguinte: uma demanda ambiental que versava sobre a nocividade ou não de um produto teve o trânsito em julgado da sentença cujo dispositivo determinava a não nocividade do produto. Posteriormente, novas descobertas científicas evidenciaram que o produto era nocivo. Tal coisa julgada não pode obstar uma nova ação, com o fito de produzir nova prova científica.

Procuramos aqui, pontuar alguns dos principais fatos que suscitaram a polêmica sobre a sentença inconstitucional passada em julgado. Diante disto, basicamente, duas correntes formaram-se. Os que sustentam que a sentença, ainda que ao abrigo da preclusão máxima, pode ser revista e, de outro lado, os que advogam que a segurança jurídica, refletida pela coisa julgada é um bem que deve ser protegido contra qualquer ataque. Passaremos, então, a examinar os argumentos que sustentam tais correntes.


PRINCIPAIS ARGUMENTOS QUE LEVAM AO ATAQUE DA SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO.

A – O Judiciário não detém a soberania e não pode ficar intangível.

Podemos dizer que a Constituição é o conjunto de princípios e normas supremos que definem o poder de um Estado e as liberdades de seu povo. Logo, a estrutura básica do moderno Estado Democrático de Direito é encontrada na sua Lei Maior. A ela se submetem todas as funções típicas do Estado: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Portanto todos os atos que representem o dizer do Estado devem estar em absoluta consonância com a Carta Magna, e assim como os atos administrativos e as leis podem sofrer o controle da constitucionalidade, também deve haver mecanismos de controle da constitucionalidade da sentença ou do acórdão, ainda que ao abrigo da preclusão máxima.

Nessa direção, Carlos Valder do Nascimento, referindo-se a Paulo Manuel Cunha da Costa Otero, ensina:

Decerto, o Poder Judiciário há de moldar-se ao modelo do Estado de Direito, de sorte que "esse regime só pode ser a admissibilidade de controle das referidas decisões com fundamento em inconstitucionalidade e a sua inerente modificabilidade..." Trata-se de poder jurídico tal qual os outros que compõem a Federação, como adverte Paulo Manuel Cunha da Costa Otero: por outro lado, o poder judicial, repita-se uma vez mais, não é um poder constituinte paralelo ao poder originário de feitura da Constituição, antes se apresenta como poder constituído tal como o Poder Legislativo ou o administrativo. Em conseqüência, a rejeição destes dois últimos poderes ao controle da conformidade jurídica dos seus actos com o princípio da constitucionalidade não pode ser acompanhado de um estatuto diferenciado para as decisões judiciais violadoras da Constituição, em especial se estas são proferidas por tribunais sujeitos a uma ordem jurisdicional de recurso das respectivas decisões.

O Poder Judiciário não detém a soberania e, como tal, não se pode justificar o mito da intangibilidade da função jurisdicional, enquanto manifestação do exercício da atividade estatal. Isso porque ela é uma decorrência do poder político que, na percepção de Clèmerson Merlin Clève, é indivisível, tendo o povo na sua titularidade, que não se divide senão em face do Poder Constituinte que torna efetiva a distribuição de diferentes funções a se compor na estrutura que dá corpo à organização político-administrativa do Estado. [20]

José Augusto Delgado também leciona que deve haver sempre atuação subordinada do Estado às suas próprias regras e que a decisão judicial deve ser consonante com a Constituição, além de ser "escrava obediente da moralidade e da legalidade". [21]

Humberto Theodoro Júnior apresenta a questão com o seguinte questionamento:

Verificando-se que uma decisão judicial sob o manto da "res iudicata" avilta a Constituição, seja porque dirimiu o litígio aplicando lei posteriormente declarada inconstitucional, seja porque deixou de aplicar determinada norma constitucional por entendê-la inconstitucional ou, ainda, porque deliberou contrariamente a regra ou princípio diretamente contemplado na Carta Magna, poderá ser ela objeto de controle?

E expressa preocupação com o fato de que as normas, cada vez mais, apresentam conceitos indeterminados e abertos. Tais conceitos conferem mais poderes aos juízes, quando da interpretação e de criação do Direito. Com isto, os juízes são elevados ao status de "guardiões da constitucionalidade e da legalidade da atividade dos demais poderes públicos". Lembra da lição de Canhotilho que observa que há hoje, "um trânsito silencioso de um ‘Estado-legislativo-parlamentar’ para um ‘Estado jurisdicional executor da Constituição’". [22]

Logo, pode-se concluir que o argumento segundo o qual os atos do Judiciário, ainda que ao abrigo da coisa julgada, devem prestar obediência à Constituição é um ponto de apoio para a corrente "desconsideracionista".

B – A prevalência do princípio da justiça frente ao da segurança jurídica.

A coisa julgada tutela os valores segurança e certeza, que contrapõem-se ao valor justiça. Este é perseguido no curso do processo. Assim durante o desenrolar da lide, a procura da justiça é intensa. Os recursos são utilizados para que a decisão final seja verdadeiro retrato do valor justiça. No momento em que se encontrarem esgotados, ou preclusos, todos os recursos, a decisão tornar-se-á cristalizada. O processo chegará ao seu termo, distribuindo justiça. A cristalização da sentença significa a certeza jurídica, o valor estabilidade das relações jurídicas. O processo é permeado pela tensão entre os valores segurança e justiça. No momento do trânsito em julgado, passa a preponderar o valor segurança, o valor coisa julgada, que é de se esperar seja o coroamento do valor justiça, buscado ao longo de todo o processo. Assim, em princípio, toda sentença que contasse com a qualidade da coisa julgada material, seria justa.

Mas nem sempre isso ocorre. Tratemos do caso da sentença inconstitucional passada em julgado, que certamente, deverá afrontar o valor justiça. Carlos Valder Nascimento diz: "De fato, inadmissível a segurança servir de pano de fundo para impedir a impugnação da coisa julgada, imutável, imodificável e absoluta, na percepção dos processualistas mais conservadores. Mas torna-se necessário enfrentar tais resistências, desmistificando essa idéia do Estado de Direito pelo Poder Judiciário." [23]

Humberto Theodoro Júnior leciona que o valor segurança jurídica mereceu especial consideração até recentemente. Portanto poucos ousavam questionar a sentença inconstitucional passada em julgado. E refere-se à lição de Paulo Otero, que parte do argumento anteriormente exposto, para bem exprimir o atual que também pretende dar lastro à corrente favorável a "flexibilizar a coisa julgada inconstitucional":

... estamos de acordo com Paulo Otero, para quem "admitir, resignados, a insindicabilidade de decisões judiciais inconstitucionais seria conferir aos tribunais um poder absoluto e exclusivo de definir o sentido normativo da Constituição: Constituição não seria um texto formalmente qualificado como tal; Constituição seria o direito aplicado nos tribunais, segundo resultasse da decisão definitiva e irrecorrível do juiz", o que não se adequa às noções do Estado de Direito. Admitir-se como válida a noção de Constituição ali esposada significa, ainda segundo magistralmente assinalado por Paulo Otero, "proclamar como divisa do Estado de Direito a seguinte idéia: todos os poderes públicos constituídos são iguais, porém, o poder judicial é mais igual do que os outros".

Neste cenário, torna-se imprescindível repensar-se o controle dos atos do poder público em particular da coisa julgada inconstitucional, na busca de soluções que permitam conciliar os ideais de segurança e os anseios de justiça, lembrando sempre, nesta trilha, que "num Estado de Direito material, tal como a lei positiva não é absoluta, também não o são as decisões judiciais. Absoluto, esse sim, é sempre o Direito ou, pelo menos, a idéia de um DIREITO JUSTO" [24].

Assim, segundo o argumento apresentado, temos a defesa do valor justiça em detrimento do valor segurança e da estabilidade das relações jurídicas, o que tornaria suscetível de ataques a coisa julgada inconstitucional.

C – A aplicação da querela nullitatis à sentença inconstitucional passada em julgado.

A querela nullitatis consiste em uma ação declaratória que visa decretar a nulidade de atos processuais por vícios formais. [25]

Deocleciano Batista escreveu:

A querela nullitatis insanabilis surgiu no início do período medieval como meio de impugnação de sentenças nulas que conciliava aspectos comuns aos sistemas jurídicos romano e visigodo. Ela seria, assim, ‘uma das sínteses entre o princípio germânico da força formal da sentença e a distinção romana entre sententia nulla e sententia iniustia[26]

Todavia, para Carlos Valder Nascimento:

Se a sentença inconstitucional é nula, contra ela não cabe rescisória, por incabível lançar-se mão dos recursos previstos na legislação processual. Na espécie, pode-se valer, sem observância de lapso temporal, da ação declaratória de nulidade da sentença, tendo presente que ela não perfaz a relação processual, em face de grave vício que a contaminou, inviabilizando, assim, seu trânsito em julgado. Nesse caso, há de se buscar suporte na actio querela nullitatis.

De referência a essa ação autônoma, cumpre trazer o conceito formulado por José Cretella Neto: ‘Expressão latina que significa nulidade do litígio. Indica a ação para impugnar a sentença, independentemente de recurso, apontada como a origem das ações autônomas de impugnação. [27]

Valder bem expressa a idéia da aplicação da querela nullitatis nos casos de sentença inconstitucional passada em julgado:

São, por conseguinte, passíveis de serem desconstituídas as sentenças que põem termo ao processo, por ter decidido o mérito da demanda, enquadrando-se, também, na hipótese, os acórdãos dos tribunais. Isso se persegue mediante ação autônoma que engendra uma prestação jurisdicional resolutória da sentença hostilizava, cujos efeitos objetiva desconstituir. Nisso é que reside sua razão fundamental: anulação da sentença de mérito que faz coisa julgada inconstitucional. [28]

No mesmo sentido, Deocleciano Batista escreve sobre as decisões judiciais inexistentes ou aparentes também chamadas de "não sentença" e esclarece que "frente a elas, o decurso dos períodos de tempo facultados à impugnação não tem o efeito de imunizar a invalidade ou suprimir a propositura da querela nullitatis insanabilis." E ensina que, caso o título judicial seja aparente ou inexistente, [29] inconstitucional [30] ou nulo ipso iure [31], a invalidade da coisa julgada poderá ser a qualquer tempo argüida pelo interessado ou reconhecida de ofício pelo órgão jurisdicional. [32]

Batista, ainda, propõe que a querela nullitatis insanabilis passe a constar de nosso direito positivo, pois a considera como a melhor via para a impugnação perpétua do título judicial viciado:

Mas, independentemente de qual seja a espécie de invalidade da coisa julgada, o instituto processual melhor concebido para a impugnação perpétua do título judicial viciado continua a ser a milenar querela "nullitaits insanabilis". Recepcioná-la em nosso "ius scriptum", do modo formal, seria de grande valia para o aperfeiçoamento dos meios autônomos de impugnação extraordinária e reforçaria sobremodo as vias de controle da integralidade da Constituição. [33]

Humberto Theodoro Júnior, em palestra por nós assistida, disse que nunca um jurista ou legislador conseguiria banir da esfera da sentença todas as causas de nulidade. E por mais que se criassem remédios específicos, haveria de aparecer aqueles casos de nulidades graves, que não foram considerados pelo legislador. Então, o juiz teria que voltar ao passado e ressuscitar a querela nullitatis, porque não seria possível conviver com uma sentença gravemente inconstitucional, violenta, inaceitável, sob as condições mínimas de justiça, sem ter uma saída para aquilo. E aí vaticinava: vai continuar existindo a querela nullitatis. [34]

Assim, procura-se justificar a aplicação da querela nullitatis, para obter-se uma declaração de nulidade da sentença inconstitucional passada em julgado.

D – A supremacia do princípio da constitucionalidade.

Ao iniciarmos a apresentação dos principais argumentos que levam ao ataque da sentença inconstitucional passada em julgado, dissemos que à Constituição se submetem todas as funções típicas do Estado. Logo, deve haver o controle da constitucionalidade das sentenças judiciais. E, em havendo desconformidade com a Constituição, a sentença não deve alcançar, jamais, a preclusão máxima.

Deocleciano Batista depois de escrever que a contrariedade à Constituição leva a decisão judicial a obter apenas o status de coisa julgada formal, ensina:

Um dos consensos publicistas mais arraigados de nosso tempo talvez seja o de que todo ato praticado no âmbito dos poderes constituídos tem sua validade condicionada à conformidade com as normas constitucionais. Pouco importa que o ato seja um título judicial com trânsito em julgado e não esteja mais sujeito à oposição dos embargos à execução ou à propositura da ação rescisória. Se inconstitucional, a conseqüência lógica é a de que ele jamais poderá ser convalidado ou vir a produzir qualquer efeito jurídico." [35]

Ao abordar o tema, Cândido Rangel Dinamarco [36], refere-se à monografia escrita em Portugal, por Paulo Otero. Otero diz que a decisão judiciária poderá contrariar a Constituição de três diferentes formas: direta e imediatamente, mediante a aplicação de norma inconstitucional e por recusa de aplicação de uma norma constitucionalmente legítima. Assim, em qualquer das espécies de contrariedade em que se encontre, a decisão será inconstitucional. Otero refere-se a Kelsen, para quem "o poder de criar normas individuais, de que os tribunais estão investidos inclui o de criar normas contrárias à Constituição". Mas Otero diverge de Kelsen e questiona se existe "uma norma com valor constitucional que permita a validade ou a produção de efeitos dos casos julgados de decisões judiciais desconformes com a Constituição, excluindo, simultaneamente, os tribunais de qualquer dever oficioso de controle difuso da constitucionalidade" [37]

Também Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro escreveram que, assim como todos os atos obtêm o fundamento de sua validade na Constituição Federal, surge a idéia de que é insuficiente outorgar garantias, pois a Constituição deve ser uma fortaleza para preservar estas garantias. Esta garantia é a conseqüência lógica do princípio da constitucionalidade. E continuam, referindo-se à lição de Jorge Miranda:

O aludido princípio é conseqüência direta da força normativa e vinculativa da Constituição enquanto Lei Fundamental da ordem jurídica e pode ser enunciado a partir do contraposto da inconstitucionalidade, nos termos seguintes: "sob pena de inconstitucionalidade – e logo, de invalidade – cada acto há se ser praticado apenas por quem possui competência constitucional para isso, há de observar a forma e seguir o processo constitucionalmente prescritos e não pode contrariar, pelo seu conteúdo, nenhum princípio ou preceito constitucional." [38]

O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado, apresentou síntese de seu pensamento sobre os efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Destacamos: "o decisum judicial não pode produzir resultados que materializem situações além ou aquém das garantidas pela Constituição Federal". E mais adiante apresenta as palavras de Carlos Mário Velloso:

Também aqui não custa repetir, é uma Constituição que estamos interpretando, vale dizer, estamos interpretando um ato normativo superior a todos os outros, justamente o que empresta validade a estes, motivo pelo qual bem lembrou o Prof. Fábio Konder Comparato, em trabalho que desenvolveu em torno das normas constitucionais, o sentido e o alcance dessas normas superiores não pode ser entendido da mesma maneira que o das leis às quais empresta validade; ou que o conteúdo e a força normativa vinculante das normas constitucionais possam ser obtidas com o emprego do mesmo método ou raciocínio que se usa para a compreensão das normas jurídicas fundadas na Constituição [39]

Questão interessante apresentada pelo Ministro Delgado é a sua interpretação do inciso XXXVI [40], art. 5º da CF. Segundo Delgado, tal comando se dirige apenas ao legislador. Assim, um segundo juiz poderia decidir a questão nova que lhe fosse apresentada, mesmo que idêntica a uma outra já posta em juízo, desconsiderando a coisa julgada. [41]

Cumpre ressaltar que o movimento relativizador faz ainda um cotejamento entre o princípio da segurança jurídica e outros, com o da constitucionalidade. A nosso ver, quem melhor apresentou uma sistematização dos princípios que devem ser considerados, "para não se levar longe demais a coisa julgada" foi Cândido Rangel Dinamarco. Dinamarco ensina:

I – o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade como condicionantes da imunização dos julgados pela autoridade da coisa julgada material;

II – a moralidade administrativa como valor constitucionalmente proclamado e cuja efetivação é óbice a essa autoridade em relação a julgados absurdamente lesivos ao Estado;

III – o imperativo constitucional do justo valor das indenizações em desapropriação imobiliária, o qual tanto é transgredido quando o ente público é chamado a pagar mais, como quando ele é autorizado a pagar menos que o correto;

IV – o zelo pela cidadania e direitos do homem, também, residente na Constituição Federal, como impedimento à perenização de decisões inaceitáveis em detrimento dos particulares.

V – a fraude e o erro grosseiro como fatores que, contaminando o resultado do processo, autorizam a revisão da coisa julgada;

VI – a garantia constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que não deve ficar desconsiderada mesmo na presença de sentença passada em julgado;

VII – a garantia constitucional do acesso à ordem jurídica justa, que repele a perenização de julgados aberrantemente discrepantes dos ditames da justiça e da eqüidade;

VIII – o caráter excepcional da disposição a flexibilizar a autoridade da coisa julgada, sem o qual o sistema processual perderia utilidade e confiabilidade, mercê da insegurança que isso geraria. [42]

Parece-nos que, exceto a fraude e o erro grosseiro, todos os outros itens encontram apoio na Constituição. Ada Pellegrini Grinover [43] acredita que um exame da casuística taxativa apresentada por Dinamarco faz crer que os demais conceitos se enquadram no que ele chama de princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade [44]. Tal princípio apresenta-se como poderoso instrumento para solucionar o conflito entre princípios ou normas constitucionais.

A corrente desconsideracionista obteve importante vitória com a edição da Medida Provisória 2.180-35/2001 que acrescentou o parágrafo único do art 741 [45] do CPC e o § 5º ao art. 884 da CLT, com igual teor. Dessa maneira, passou a ser dispositivo do direito posto a previsão que afasta a eficácia da coisa julgada da sentença inconstitucional em alguns casos.

Procuramos apresentar os principais argumentos que poderiam justificar ataques à sentença inconstitucional passada em julgado. Passaremos, no próximo item, a outra análise.


PRINCIPAIS ARGUMENTOS QUE LEVAM À MANUTENÇÃO DA SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO.

A – A prevalência do valor certeza sobre o da justiça.

O segundo argumento apresentado em defesa da flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado é o presente, todavia, apresentado em sentido contrário.

No cotejamento entre o valor certeza ou segurança jurídica e o valor justiça, o legislador constitucional efetuou sua opção pela segurança [46]. Assim, não cabe ao intérprete uma escolha entre qual valor deva prevalecer. A Constituição aponta a opção a ser tomada: a certeza, a segurança das relações jurídicas é o valor maior a ser preservado. E se houver um conflito entre este e o valor justiça, a justiça será sacrificada. "Essa é a razão pela qual, por exemplo, não se admite ação rescisória para corrigir injustiça da sentença. A opção é política..." [47]

No mesmo sentido, é o entendimento de Ada Pellegrini Grinover:

Então, eu não posso aceitar posições que ponham em conflito coisa julgada e justiça, dando prevalência ao valor justiça, porque a escolha não é do intérprete, mas essa escolha já foi feita pelo legislador constituinte (...) Diante disso, também não posso aceitar a posição de Humberto Theodoro Júnior, que na verdade, foi autor de um parecer, nesse mesmo sentido a que me referi, coisa julgada "versus" justiça, e que foi depois acolhido no voto, que iniciou [48], praticamente, essa doutrina, do Ministro José Augusto Delgado [49]

Dentro dessa ótica, a interpretação restritiva [50] da disposição Constitucional, segundo a qual o inciso XXXVI do art. 5º da CF é dirigido somente ao legislador não pode ser aceita, pois só serve para a tese de que a "inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado pode ser alegada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, independentemente da propositura de ação rescisória" [51]. Botelho de Mesquita esclarece que "em direito constitucional, deve prevalecer sempre o chamado princípio da máxima efetividade". E apresenta-o, enunciado por J. J. Gomes Canotilho:

"A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e, embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA), é sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas, deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)" [52]

No processo civil, pelo princípio do contraditório e da ampla defesa, as partes podem influir no convencimento do juiz. Assim, espera-se que, ao ter a decisão proferida, o processo tenha permitido que aquela decisão seja justa. Então, é de se supor, que a sentença ou o acórdão que possuam o trânsito em julgado sejam justos, pelo menos, em princípio. Assim, à coisa julgada deve ser atribuída a marca da justeza.

É claro que a parte sucumbente terá dificuldade em enxergar como justa a decisão que contrarie o seu pedido. Isso, aliado à enorme possibilidade de encontrar inconstitucionalidade na decisão, face à característica formal [53] de nossa Carta Magna, pode suscitar, com relativa freqüência, o questionamento da constitucionalidade, ou mesmo do valor justiça da decisão. Se a coisa julgada fosse atacada com estes fundamentos, eles poderiam servir para novo ataque à parte vencedora do primeiro julgamento, agora sucumbente. Isso seria perpetuar o conflito, levá-lo à eternidade. Seria sobrecarregar ao infinito o Judiciário já sobrecarregado, seria caminhar no sentido contrário da paz social, seria estabelecer um processo que não teria fim. E o processo, conceitualmente, busca um fim para o litígio. Nesta direção é o ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira:

(...) Mesmo a doutrina favorável, em maior ou menor medida, à proposta "relativizadora" não pode deixar de advertir-se da insuficiência, para justificá-la, da mera invocação de eventual "injustiça" contida na sentença passada em julgado. Condicionar a prevalência da coisa julgada, pura e simplesmente, à verificação da justiça da sentença redunda em golpear de morte o próprio instituto. Poucas vezes a parte vencida se convence de que sua derrota foi justa. Se quisermos abrir-lhe sempre a possibilidade de obter novo julgamento da causa, com o exclusivo fundamento de que o anterior foi injusto, teremos de suportar uma série indefinida de processos com idêntico objeto: mal comparando, algo como uma sinfonia não apenas inacabada, como a de Schubert, mas inacabável – e bem menos bela. [54]

José Ignácio Botelho de Mesquita escreveu sobre o tema, com o mesmo entendimento:

De resto, a coisa julgada não visa apenas garantir a certeza, a segurança e a estabilidade das relações jurídicas protegidas por sentenças transitadas em julgado.

A coisa julgada é uma exigência lógica e ontológica do conceito de processo. Processo é caminho em direção a algo. Supõe que um dia termine.

Razões de natureza cultural, sociológica ou política, ou até mesmo religiosa, podem influir poderosamente na opção de incluir ou não incluir a coisa julgada entre as garantias constitucionais ou infraconstitucionais do processo, conforme agora se está pretendendo. Daí não se extrai, contudo, que aquelas razões constituam o fundamento jurídico da coisa julgada. Processo sem coisa julgada é mero procedimento ou processo de jurisdição voluntária, administrativa ou graciosa. De jurisdição contenciosa nunca será. [55]

A corrente "desconsideracionista" vale-se do argumento de que a coisa julgada tem o condão de transformar o preto em branco, falso em verdadeiro e o quadrado em redondo. Barbosa Moreira responde que:

Desde que ela [a coisa julgada material] se configure, já não há lugar – salvo expressa exceção legal – para indagação alguma acerca da situação anterior. Não porque a res iudicata tenha a virtude mágica de transformar o falso em verdadeiro (ou, conforme diziam textos antigos em termos pitorescos, de fazer do quadrado redondo, ou do branco preto), mas simplesmente porque ela torna juridicamente irrelevante – sempre com a ressalva acima – a indagação sobre falso e verdadeiro, quadrado redondo, branco e preto. [56]

Luiz Guilherme Marinoni apresenta o seguinte ensinamento:

Mesmo sem adentrar em complexos temas da filosofia do direito, pode-se logicamente argumentar que as teses da "relativização" não fornecem qualquer resposta para o problema da correção da decisão que substituiria a decisão qualificada pela coisa julgada. Ora, admitir que o Estado-Juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado-Juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de "relativizar" a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça. [57]

Um exemplo hipotético pode bem ajudar na compreensão da questão: Imaginemos a aquisição de imóvel residencial em praça pública. O adquirente, depois de morar vários anos, com sua família, é notificado de que, por força de inconstitucionalidade ou de injustiça da decisão, ela foi "flexibilizada". A conseqüência seria a anulação daquela praça, na qual houve a aquisição da casa. Diante de casos como este, teríamos o fim da segurança jurídica. Não cabe o argumento de que a flexibilização só seria aplicável em casos bem limitados, com enumeração taxativa. A criatividade dos operadores do direito beira ao infinito para romper limites.

Em sentido contrário ao entendimento de que a segurança jurídica decorre da coisa julgada é a lição de Rosemiro Pereira Leal:

A garantia da coisa julgada (...) não tem escopo de gerar segurança, porque, no Estado Democrático, não é da segurança em si que se cogita como fundamento dos atos jurídicos, mas da legitimidade obtida pelo processo jurídico que venha a estabelecer a segurança almejada, mesmo que seja esta ainda concebível em escopos meta-jurídicos do obsoleto e paternal Estado Social de direito como está em Dinamarco [58].

Face ao acima exposto, para nós, a eventual injustiça (e cremos poder considerar a inconstitucionalidade, como espécie do gênero injustiça), não é argumento suficiente para atacar a coisa julgada.

B – A coisa julgada como fundamento do Estado democrático de direito.

Da Teoria Geral do Estado, segundo a lição de Dalmo de Abreu Dallari [59], concluímos que, o Estado Moderno possui como notas características o povo, o território, a soberania e a finalidade. Sem desconsiderar as demais características do Estado, trataremos, ainda que brevemente, por haver maior liame com o objeto do presente artigo, apenas da finalidade. Em síntese, Dallari diz que a finalidade do Estado é o bem comum. E cita o conceito formulado pelo Papa João XXIII: O bem comum é "o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana" [60]. A finalidade da República Federativa do Brasil está estampada nos primeiros artigos de nossa Constituição Federal. Dentre outros, temos como objetivos fundamentais, construir uma sociedade livre justa e solidária (art. 3º, I), promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, III).

Para bem atingir sua finalidade, a República Federativa do Brasil possui como fundamento o Estado Democrático de Direito. Democrático, pois o parágrafo único do art. 1º estabelece que "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição." Nessa linha de raciocínio, Nelson Nery Junior ensina:

Não é apenas de Estado de Direito que se cogita, mas de Estado Democrático de Direito. Isto porque o Estado nazista, bem como o de reconhecidas ditaduras como o de Cuba, são "de direito", porque tinham e têm normas legais regulando as atividades do Estado e dos particulares. Não basta. É necessário que esse Estado de Direito, legal, seja democrático, instituído e regulado por princípios que se traduzem no bem-estar de todos, na igualdade, na solidariedade. É por isso que, no Brasil, se pode discutir a constitucionalidade de determinada lei sob fundamento de que não atende à letra ou ao espírito da Constituição.

Para as atividades do poder Judiciário, a manifestação do princípio do Estado Democrático de Direito ocorre por intermédio do instituto da coisa julgada. Em outras palavras, a coisa julgada é elemento de existência do Estado Democrático de Direito. [61]

Na mesma obra, Nery Junior leciona que, em 1941, Hitler assinou Lei que conferia poderes ao Ministério Público para intervir no processo civil e dizer se a sentença era justa, conforme os fundamentos do Reich alemão e os anseios do povo. Se o entendimento fosse no sentido de que a sentença era injusta, o Ministério Público alemão poderia propor ação rescisória. A injustiça da sentença era causa de rescindibilidade da sentença, na Alemanha nazista. Vale notar que nem a ditadura nazista ousou desrespeitar a coisa julgada. Foi criada nova causa para a ação rescisória, mas a coisa julgada não foi flexibilizada.

Mais uma vez, valendo-nos da lição de Nery Junior, temos:

O processo civil é instrumento de realização do regime democrático e dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual reclama o comprometimento do processualista com esses preceitos fundamentais. Sem democracia e sem Estado Democrático de Direito o processo não pode garantir a proteção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Desconsiderar a coisa julgada é eufemismo para esconder-se a instalação da ditadura, de esquerda ou de direita, que faria desaparecer a democracia que deve ser respeitada, buscada e praticada pelo processo. [62]

Luiz Guilherme Marinoni observa que:

Entretanto, apesar de se reconhecer o primado do princípio da dignidade da pessoa humana como vetor do sistema do direito, é certo que o atual desenvolvimento das teorias pelas quais sempre seria obtenível uma decisão justa ainda não possibilitam sua execução fática. Em outras palavras, ainda não existem condições de disciplinar um processo que sempre conduza a um resultado justo. Diante disso, a falta de critérios seguros e racionais para a "relativização" da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua "desconsideração", estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça. Essa "desconsideração" geraria uma situação insustentável, como demonstra Radbruch citando a seguinte passagem de Sócrates: "crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?" [63]

A coisa julgada material é quem dá a rigidez necessária ao pilar da segurança jurídica, sobre o qual se apóia o Estado Democrático de Direito. Com a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado, o Estado Democrático de Direito estará comprometido.

C – Crítica aos argumentos que de apoio à flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado.

O primeiro argumento apresentado que visa dar suporte à corrente "desconsideracionista" é o de que o Judiciário não detém a soberania e não pode ficar intangível. De maneira alguma defendemos a intangibilidade do Poder Judiciário. Assim como os atos administrativos e as leis podem sofrer o controle da constitucionalidade, as decisões do judiciário, por meio dos recursos, também estão sujeitas a passar pelo crivo da constitucionalidade, caso em que, eventualmente, pode até haver o recurso extraordinário, a ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal.

A intangibilidade seria característica não do Judiciário, mas sim da sentença inconstitucional passada em julgado.

Cabe lembrar que a parte desfavorecida pela eventual inconstitucionalidade teve a seu dispor meios para influir no convencimento do juiz, produzir provas, enfim, valer-se de todas as garantias que o processo e a Constituição oferecem, para que a decisão final seja justa. Contou ainda, com o prazo para a propositura da ação rescisória. Não seria razoável, ao final de todos os recursos esgotados, alegar a inconstitucionalidade, pois além de levar o processo a não ter fim, a paz social, a segurança jurídica e o Estado democrático de direito estariam seriamente comprometidos. O Direito não pode socorrer os que dormem.

O segundo argumento apresentado para dar consistência à flexibilização trata da prevalência do princípio da justiça frente ao da segurança jurídica. Desnecessário efetuar o cotejamento dos dois princípios, pois, no item anterior, já o efetuamos, com a defesa da prevalência da segurança jurídica, pois, em suma, toda decisão judicial, pelo menos, em princípio, possui intrinsecamente o valor justiça.

A aplicação da querela nullitatis insanabilis foi o terceiro item, por nós apresentado, com o fito de atacar a sentença inconstitucional passada em julgado. Mas, como ensina Sérgio Bermudes, para os que defendem que a sentença inconstitucional passada em julgado pode ser atacada pela ação de nulidade, essa ação

outra não é senão a querela nullitatis insanabilis, que subsiste no sistema do direito positivo brasileiro e "é o remédio voltado para a impugnação de erros graves cometidos no âmbito da jurisdição". Sem dúvida, a ação de nulidade, declaratória ou constitutiva, tem a querela nullitatis por uma das suas fontes, mas não é a própria querela, simplesmente porque o direito brasileiro não contempla esse instituto. Não existe um procedimento especial com essa denominação, nem normas que consagrem a querela, tal como existente e aplicada nas origens. Dizer-se que a ação para a declaração de nulidade da sentença (abrangido nesse vocábulo o acórdão, tal como acontece, v.g., no caput do art. 485 do CPC) é a querela nullitatis seria o mesmo que entender, por exemplo, que o agravo de instrumento é o agravo ordinário português, ou quiçá a supplicatio romana, sobrevivente no direito pátrio. Se existe a nulidade da coisa julgada por contrária à Constituição (...) tem de existir ação de declaração dessa nulidade, sem que, só por isso, haja sobrevivido o instituto. Há exagero na construção, respeitáveis embora opiniões que a amparam. [64]

É importante também, observar que a querela nullitatis não se relaciona com a injustiça, senão com a validade da sentença como ato processual. [65] Logo, como a justificativa para atacar a sentença inconstitucional passada em julgado está centrada em aspectos referentes à injustiça e não à validade da decisão, temos que é inaplicável a querela nullitatis.

A supremacia do princípio da constitucionalidade foi o quarto e último argumento apresentado a fim de apoiar a corrente desconsideracionista. Defendemos a premissa de que toda decisão judicial, pelo menos em princípio, deve estar em conformidade com as disposições constitucionais. Todavia é a própria Constituição que dá à coisa julgada o status de garantia, de imutabilidade. Assim, embora a sentença possa conter alguma inconstitucionalidade, uma vez adquirida a qualidade de coisa julgada, parece-nos que o ataque a essa decisão também estaria viciado de inconstitucionalidade, por ofender à previsão textual da Carta Magna.


TRATAMENTO SUGERIDO PARA OS CASOS QUE LEVAM À REFLEXÃO SOBRE A QUESTÃO DA SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO.

Os casos apontados por aqueles que pretendem flexibilizar a coisa julgada, inegavelmente, incomodam o senso de justiça comum a todos [66]. Portanto, quem advoga a estabilidade das relações e a manutenção da coisa julgada não pode se furtar a apresentar, senão soluções, pelo menos caminhos para contornar os casos apresentados, sem ferir a coisa julgada. Procuraremos recomendar, para cada caso, o caminho mais adequado, segundo nosso entendimento, de maneira a manter a coisa julgada como valor absoluto.

Primeiramente, abordaremos a questão referente à paternidade: sentença transitada em julgado que determinou, antes da existência do exame de DNA que "A" era filho de "B". Posteriormente, com o avanço tecnológico e a descoberta de novo meio de prova, constatou-se que "B" não é pai de "A". Todavia, por força da coisa julgada, são filho e pai. Adotaremos o caminho apresentado por Ada Pellegrini Grinover. É possível que, sem se falar em flexibilizar a coisa julgada, a questão seja resolvida trazendo para o nosso ordenamento, a ação rescisória especial, que já existe no direito italiano. Em tal ação, o prazo inicial é deslocado para o momento do conhecimento da nova prova. "Surgindo o exame do DNA, é possível, pelo ordenamento italiano, mesmo que o trânsito em julgado tenha ocorrido há dez anos, recomeçar a contar o prazo para essa rescisória especial." [67]

De forma semelhante, pode-se tratar o caso da demanda ambiental que versava sobre a nocividade ou não de um produto, que teve o trânsito em julgado da sentença, cujo dispositivo determinava a não nocividade do produto. Posteriormente, novas descobertas científicas evidenciaram que o produto era nocivo. Aqui, também seria o caso de aplicação da ação rescisória especial. Face às novas descobertas científicas, novos meios de prova, inexistentes à época da prolação da sentença, seria aberto novo prazo para a proposição da rescisória. Tal Instituto é denominado de coisa julgada segundo a prova. Grinover ensinou que:

(...)como a coisa julgada somente colhe os fatos como eles se apresentam no momento da sentença, e não fatos futuros, nós chegamos, com toda a sinceridade, a aceitar a idéia de uma coisa julgada rebus sic standibus, uma coisa julgada enquanto os fatos estão assim, enquanto as coisas estiverem desse jeito. Por exemplo, na ação de alimentos, não é tecnicamente correto dizer, que a ação de alimentos não faz coisa julgada. Faz coisa julgada. Só que em respeito à cláusula rebus sic standibus, qualquer modificação posterior na situação de fato, leva à possibilidade de adaptar a coisa julgada à questão de fato superveniente. Ora, não falta, senão um pequeno passo, para que nós possamos sustentar que perante uma prova nova, que não existia no momento do processo, nós também possamos raciocinar com a coisa julgada, de acordo com a prova. A prova não pôde ser produzida no processo, porque não existia essa nova prova científica. Isso significa que também ela não é colhida por aquilo que nós, os processualistas, chamamos de eficácia preclusiva da coisa julgada e que nos diz, segundo o nosso Código, que todas as questões que foram abordadas, ou poderiam ter sido abordadas no processo, são cobertas pela eficácia preclusiva da coisa julgada. Essa prova não poderia ter sido produzida no processo, porque ela não existia à época e, portanto, a coisa julgada, dando um passo mais, assim como não pode cobrir fatos novos supervenientes, também se poderia sustentar que não pode cobrir provas novas supervenientes. Claro que nós teríamos que dar um prazo para o exercício dessa demanda, a partir da descoberta da prova nova, até porque, de contrário, nós vamos fazer um exame de DNA na ossada de D. Pedro I, para descobrir um descendente que não seja conhecido, e isso não seria pertinente. [68]

Fica a sugestão, ao nosso legislador, de acrescer o inciso X, ao artigo 485 do Código de Processo Civil, incluindo a ação rescisória especial [69].

Há ainda, os casos que possuem em comum a ofensa ao direito de propriedade e ao princípio constitucional da justa indenização. Temos: a) multiplicidade e superposição de sentenças transitadas em julgado condenando o poder público a indenizar a mesma área expropriada, mais de uma vez, ao mesmo proprietário, sem caber ação rescisória; b) o caso em que a área expropriada já pertencia ao expropriante; c) o caso em que após o trânsito em julgado da sentença de desapropriação, o pagamento foi postergado por culpa do ente expropriante, tendo o STF determinado nova avaliação; d) e finalmente, o caso em que a sentença de desapropriação foi proferida na época em que se perdeu o controle sobre a inflação. Assim, no período entre a avaliação do bem e o efetivo pagamento, a justa indenização se esvaía, pois não havia correção monetária e o proprietário perdia o imóvel.

Nos dois primeiros casos, parece-nos que o devido processo legal levou a decisão a conter uma injustiça (indenizar a mesma área expropriada, mais de uma vez ou a área expropriada já pertencia ao expropriante). Para nós, o caminho mais indicado é o de respeitar a sentença passada em julgado, em que pese a injustiça, ou inconstitucionalidade, mesmo porque o ente público [70] teve a oportunidade de se defender em um devido processo legal. O Estado democrático de direito possui valor maior que qualquer quantia a ser paga, ainda que injustamente, mas determinada por decisão judicial, com trânsito em julgado. Entretanto, caberia a apuração da responsabilidade daqueles que deveriam ter evitado tal situação (peritos, institutos de terras, procuradores, dentre outros). Quanto aos casos "c" e "d" parece-nos mais ser uma questão de ordem econômico-financeira, do que de direito. A sentença determinou a desapropriação e o valor a ser pago. Na época do efetivo pagamento, índices econômicos devem ser utilizados para que seja procedida a atualização do valor nominal a ser pago. Efetuar nova avaliação não nos parece o caminho mais adequado, pois conforme escreveu Nery Junior:

O objetivo da ação de desapropriação é consolidar juridicamente a propriedade do imóvel expropriado no patrimônio do expropriante. E, em contrapartida, condenar o expropriante a pagar o equivalente em dinheiro, no valor de mercado, da época da sentença. Na sentença o expropriante é condenado não a uma obrigação de entrega de coisa certa (imóvel), mas a pagar o equivalente, naquele momento, em dinheiro. A obrigação fixada na sentença é de dar (entregar quantia em dinheiro). O objeto da prestação, portanto, não é o imóvel expropriado (obrigação de fazer: entrega de coisa certa), mas a quantia em dinheiro (obrigação de dar: pagar quantia certa) fixada na sentença. Eventual atualização de valores depois do trânsito em julgado da sentença, durante o processo de execução, terá como objeto o dinheiro a que foi condenado o expropriante. Os procedimentos que têm sido empreendidos por alguns órgãos do Poder Judiciário, secundados por opiniões de parte da doutrina, de mandar atualizar o valor do imóvel, ofendem de maneira cabal e irremediável a garantia constitucional da coisa julgada (CF 1º, caput e 5º XXXVI), merecendo reprovação. [71]

O Professor José Joaquim Calmon de Passos, em palestra proferida no dia 14 de abril de 2005 no Seminário "Flexibilização da Coisa Julgada" promovida pelo Instituto dos Advogados Mineiros, apresentou soluções para problemas apresentados. No primeiro caso, Estados da federação brasileira foram condenados a pagar indenizações milionárias em processos judiciais de desapropriação nitidamente fraudulentos, com violação ao princípio constitucional da justa indenização. Para Calmon, a responsabilidade do juiz, do perito, do procurador do Estado, do governador, do procurador geral de justiça, em suma de todos que atuaram no processo, deve ser apurada. Ademais, havia vários recursos para impedir que isso acontecesse. Calmon invoca a lição de Pontes de Miranda, e diz

que uma perícia em descompasso com a realidade é uma falsa prova. E Pontes de Miranda, muito antes da relativização da coisa julgada, sustentava uma tese, que hoje está sendo recuperada, que dizia que, se a lei estabelece como fundamento para a ação rescisória a falsa prova, o prazo de decadência não pode decorrer automaticamente do trânsito em julgado da decisão. Porque você pode ter acesso à falsidade da prova num tempo já muito superior ao biênio. E o espírito da lei não foi consolidar a decisão que se baseou em falsa prova. Então, você pode perfeitamente, sem violentar o sistema, contar o prazo de dois anos, a partir da decisão do processo criminal que considerou a prova falsa, ou da comprovação de que você teve ciência da falsidade daquela prova, naquele momento. Caso uma perícia seja considerada falsa prova não precisa submeter à inalterabilidade da coisa julgada.

Para Calmon de Passos, de maneira semelhante, para aquele que é pai somente por força da coisa julgada, e obtém um laudo do exame de DNA confirmando a não paternidade, tal laudo é documento novo.

E continua na defesa da manutenção da coisa julgada:

Como é que o Estado legitima um agente político: o magistrado. O Estado legitima um procedimento que foi adotado. O Estado legitima uma série de recursos que foi ou poderiam ter sido utilizados. O Estado viabiliza um contraditório, que foi ou poderia ter sido utilizado. Se essa sentença desse juiz, essa sentença patológica, transitou em julgado, você está querendo que o sujeito se utilize da sua própria torpeza ou da sua própria inoperância, imperícia. Porque para uma sentença monstruosa dessa transitar em julgado é necessário: primeiro, que a decisão de primeiro grau não tenha sido objeto de apelação. Que o acórdão monstruoso não tenha sido objeto de recurso especial e que o aresto do Superior Tribunal de Justiça, vá para o Supremo Tribunal Federal (...).

O que você quer é premiar o displicente, o incompetente, o leviano, o descuidado, o inoperante às custas da garantia do sistema democrático. [72]

Não poderíamos deixar de anotar relevante caso evidenciado pelo professor José Joaquim Calmon de Passos [73]. Ele disse que a questão do pai que só é pai por força da sentença com trânsito em julgado, bem como todos as demais apresentadas, apenas servem para que a real pretensão dos desconsideracionistas seja encoberta. Segundo Calmon, o Brasil possui um sistema tributário constitucionalizado e, face às constantes alterações da legislação tributária, fica fácil obter-se a declaração de inconstitucionalidade de uma lei tributária. Entre a entrada em vigor da lei e sua declaração de inconstitucionalidade, há a incidência do tributo. Se a tese da flexibilização da coisa julgada inconstitucional prevalecesse, os tributos recolhidos aos cofres públicos seriam devolvidos aos contribuintes, sem limite no tempo, retroativamente, com correção monetária, juros e honorários de advogado, o que colocaria o Estado brasileiro em dificuldades. Os maiores beneficiários, certamente, seriam os grandes contribuintes. Nesse sentido, a flexibilização seria um grande instrumento de injustiça social. O homem comum nada tem a ganhar com a desconsideração da coisa julgada.

Outra questão relevante, e que pode solucionar alguns casos, é a das sentenças que não transitam em julgado. Tereza Arruda Alvim Wambier defende a tese de que "há certas sentenças (...) que não têm aptidão para transitar em julgado" e propõe que sejam chamadas de "sentenças juridicamente inexistentes". Ensina Tereza Wambier:

No que tange ao processo civil, toda a doutrina reconhece circunstâncias em que a sentença dada deve ser considerada inexistente juridicamente.

Estas circunstâncias se resumem na situação de um processo que, por alguma razão, não se constituiu juridicamente.

A grande maioria dos doutrinadores menciona uma série de requisitos, que, se inexistentes, impedem a formação do processo. O processo tem pressupostos de existência (jurídica, é claro). O que ocorre, no mundo dos fatos, quando estes pressupostos não são preenchidos é um "simulacro"de processo "aparente".

Os requisitos para que se considere um processo como sendo juridicamente existente são correlatos à definição clássica de processo, que praticamente o identifica com a relação jurídica que se estabelece entre autor, juiz e réu. Portanto, sem que haja um pedido, formulado diante de um juiz, em face de um réu (potencialmente presente, ou seja, citado) não há, sob o ângulo jurídico, propriamente um processo.

Claro que uma sentença de mérito proferida nestas condições e neste contexto é por "contaminação", sentença juridicamente inexistente, que jamais transita em julgado.

Portanto, não havendo coisa julgada, rigorosamente dir-se-ia neste caso não estarem presentes nem mesmo os pressupostos de cabimento da ação rescisória, descritos no caput do art. 485: sentença de mérito transitada em julgado." [74]

No mesmo sentido, Luiz Guilherme Marinoni observa que:

Pontes de Miranda já sustentava, há muito tempo, a existência de sentenças nulas e inexistentes – que dispensariam rescisão, por meio de ação rescisória própria -, reconhecendo que "a sentença nula não precisa ser rescindida. Nula é; e a ação constitutiva negativa pode ser exercida ainda incidenter, cabendo ao juiz a própria desconstituição de ofício. [75]

Assim, parece-nos que se a sentença inexiste, ainda que venha a conter alguma inconstitucionalidade, não necessitará ser flexibilizada. Nestes casos, "é suficiente a ação declaratória para que se conheça o defeito, que até, a rigor, seria desnecessária." [76]


CONCLUSÃO

A flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado é uma idéia que inicialmente possui forte conteúdo sedutor, grande capacidade de atrair para si toda a aprovação. Especialmente quando relatados os casos, que se apresentam como um aparente "xeque-mate" para o valor justiça. Sobre isso afirma Nelson Nery Junior "Essa corrente está na moda, havendo até quem acredite que ela seja de vanguarda" [77].

Todavia, ultrapassada a comoção inicial resultado da apresentação dos casos, a análise mais aprofundada mostra que a sentença inconstitucional passada em julgado não pode ser objeto de ataque. Nessa direção foi o dizer de Calmon de Passos "exemplos que querem apenas reforçar uma tese que não comporta reforço nenhum..." [78] Por outro lado, os argumentos jurídicos que procuram sustentar a flexibilização são, data venia, simplistas.

Como nos ensinou Calmon de Passos, a coisa julgada é uma garantia do dominado. Garantia de que só uma vez, o dominador irá interferir na liberdade e no patrimônio do dominado, sob um mesmo fundamento. "O dominador não precisa da coisa julgada. Ele precisa de luz verde para que a sua dominação seja reiterada quantas vezes ele pretender" [79]. Como o Estado democrático de direito deve garantir a paz social e o bem comum, também deve garantir a coisa julgada. Portanto, podemos dizer que a fortaleza que abriga a coisa julgada é diretamente proporcional à vitalidade do Estado democrático de direito. A coisa julgada é conquista do cidadão comum, do governado. Não podemos admitir o menor ataque a essa conquista. Calmon lembra do perigo de fazermos pequenas concessões, de permitirmos pequenos ataques à coisa julgada, e depois, perdermos a oportunidade de reação, citando o poema, "No caminho com Maiakovski", de Eduardo Alves da Costa:

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

Assim, todo cerceamento de liberdades deve ser veementemente repudiado. E a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado põe em risco nossa liberdade, é um ataque ao Estado democrático de direito, que nem a ditadura nazista usou.

Cumpre também lembrar que a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado poderá gerar uma repetição sem fim de demandas, pois o vencido, muito possivelmente, se sentirá injustiçado (ainda que a decisão tenha sido objeto de todos os recursos possíveis ou que esteja esgotado o prazo para ajuizamento de ação rescisória e ainda que a decisão contenha intrinsecamente o exame do valor justiça) e, ao encontrar na decisão judicial alguma contrariedade à Constituição, submeterá ao Judiciário, novamente a mesma questão. Como o Judiciário já está com uma taxa de congestionamento [80] acima do desejável, a situação seria agravada.

O sistema processual civil brasileiro é considerado como um dos melhores do mundo. A flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado afetará substancialmente sua estrutura básica, "mas é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida." [81]

Ousaremos, aqui, pois, apresentar ao nosso legislador a sugestão de acrescer o inciso X, ao artigo 485 do Código de Processo Civil, incluindo a ação rescisória especial, também conhecida por rescisória secundum eventum probationis. Outra sugestão seria a de majorar o prazo para a propositura da ação rescisória. Tudo isso visando resguardar a sentença transitada em julgado, ainda que inconstitucional, que deve prevalecer em face da segurança jurídica e da preservação do Estado democrático de direito.


REFERÊNCIAS

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BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003.

BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

CALMON DE PASSOS, Joaquim José. Palestra proferida no seminário denominado "Flexibilização Sobre a Coisa Julgada", promovida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 14 de abril de 2005.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 18ª. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002.

CYRANKA, Lúcia Furtado de Mendonça; SOUZA, Vânia Pinheiro de. Orientações para normalização de trabalhos acadêmicos. 6ª. ed. rev. e atual., Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2000.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. 19ª. ed. atual., São Paulo: Saraiva, 1995.

DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003.

GRECCO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 2v.,16ª ed. atual., São Paulo: Saraiva, 2003.

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NOTAS

01 Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

I – se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III – resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV – ofender a coisa julgada;

V – violar literal disposição de lei;

VI – se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

VII – depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

VIII – houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

IX – fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.

§1º Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

§2º É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.

02 Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão.

03 Palestra proferida por Humberto Theodoro Júnior, no dia 13 de abril de 2005, em Belo Horizonte, promovida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

04 Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 500 e 501.

05 Antônio Carlos de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 306 e 307.

06 Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, 2º Volume, p. 249.

07 José Roberto dos Santos Bedaque, Direito e Processo Influência do Direito Material sobre o Processo, p. 119.

08 Dicionário Houaiss, p. 1356.

09 José Carlos Barbosa Moreira, Considerações sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material, Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, p. 5.

10 Ibid., p. 6.

11 Ada Pellegrini Grinover, Palestra transmitida pela TV Justiça em 14 de abril de 2005.

12 José Carlos Barbosa Moreira, Considerações sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material, Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, p. 7.

13 Palestra proferida em 13 de abril de 2005, no âmbito do Seminário "Flexibilização da Coisa Julgada" promovido em Belo Horizonte, pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

14 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, p. 72 e 73.

15 Recurso Especial 240712/SP. Da ementa temos: "2. Alegação, em sede de Ação Declaratória de Nulidade, de que a área reconhecida como desapropriada, por via de Ação Desapropriatória Indireta, pertence ao vencido, não obstante sentença trânsito em julgado."

16 Recurso Extraordinário 93412/SC Ementa: "Desapropriação. Indenização (atualização). Extravio de autos. Nova avaliação. Coisa Julgada. Não ofende a coisa julgada a decisão que, na execução, determina nova avaliação para atualizar o valor do imóvel, constante de laudo antigo, tendo em vista atender a garantia constitucional da justa indenização, procrastinada por culpa do expropriante. Precedentes do STF. Recurso extraordinário não conhecido."

17 Fala de Humberto Theodoro Júnior, no já referido seminário.

18 Cândido Rangel Dinamarco, Nova Era do Processo Civil, p. 232 e 233.

19 Ada Pellegrini Grinover, Palestra transmitida pela TV Justiça em 14 de abril de 2005.

20 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, p.4.

21 Ibd, p. 33.

22 Ibd, p. 76 e 77.

23 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, p. 11.

24 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, p. 78.

25 Ada Pellegrini Grinover. Palestra transmitida pela TV Justiça em 14 de abril de 2005.

26 Deocleciano Batista, Coisa Julgada Inconstitucional e a Prática Jurídica, p. 110.

27 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, P.21 e 22.

28 Ibid., p.24.

29 Ocorre quando a relação processual não chega a ser formada (falta ou nulidade da citação, por exemplo) ou quando a decisão definitiva carece de requisito essencial (como por exemplo, sentença proferida por juiz absolutamente incompetente, ou sentença em que falte dispositivo).

30 Este aspecto, dada a sua relevância, será abordado no próximo item.

31 Deocleciano Batista escreve que: "... a nulidade ipso iure (...) costuma situar-se em áreas comuns aos fenômenos da aparência jurídica e da inconstitucionalidade. A regra observada no direito infraconstitucional é a de que até os vícios mais graves acabam sanados pela preclusão. Fórmula que vale tanto para o direito processual, onde a nulidade depende de reconhecimento judicial, quanto para o direito privado, que nas relações materiais ainda segue o brocado de que "o que é nulo não produz nenhum efeito". (...) O interessado só poderá objetar indefinidamente o defeito do ato jurídico se a imprescritibilidade contar com a inequívoca reserva legal, como ocorre com os vícios citatórios (CPC, art. 741, inc. I), a sentença desfundamentada (CR, art. 93, inc. IX) e o título judicial atentatório à Constituição (CPC, art, 741, parágrafo único).

32 Deocleciano Batista, Coisa Julgada Inconstitucional e a Prática Jurídica, p. 116 e 117.

33 Ibid., p.118.

34 Palestra proferida em 13 de abril de 2005, no âmbito do Seminário "Flexibilização da Coisa Julgada" promovido em Belo Horizonte, pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

35 Deocleciano Batista, Coisa Julgada Inconstitucional e a Prática Jurídica, p. 117.

36 Cândido Rangel Dinamarco, Nova Era do Processo Civil, p. 235 e 236.

37 Ibid.

38 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, p. 79.

39 Carlos Valder do Nascimento (coord.), Coisa Julgada Inconstitucional, p. 65.

40 art 5º, XXXVI da CF "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;"

41Ibid., p. 37

42 Candido Rangel Dinamarco, Nova Era do Processo Civil, p. 243 e 244.

43 Ada Pellegrini Grinover, Palestra transmitida pela TV Justiça em 14 de abril de 2005.

44 Ada Pellegrini Grinover refere-se a Canotilho, constitucionalista português, que diz que para a aplicação do princípio da proporcionalidade, tem que se levar em conta, os seguintes fatos: I – adequação, ou seja, aptidão da medida do sacrifício de um dos bens para atingir a proteção de outro bem; II – a necessidade, ou seja, a evidente impossibilidade de harmonizar os dois bens, no caso concreto, e a exigência de limitar um bem, em benefício do outro; III – a proporcionalidade estrita, ou seja, a ponderação da relação existente entre meios e fins; IV – o princípio da não excessividade, ou seja, não se pode sacrificar um princípio para além daquilo que é estritamente necessário para se garantir um outro.

45 Art. 741. Na execução fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre:

I – falta ou nulidade de citação no processo de conhecimento, se a ação lhe correu à revelia;

II – inexigibilidade do título;

III – ilegitimidade das partes;

IV – cumulação indevida de execuções;

V – excesso de execução, ou nulidade desta até a penhora;

VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação com execução aparelhada, transação ou prescrição, desde que supervenientes à sentença;

VII – incompetência do juízo da execução, bem como suspeição ou impedimento do juiz.

Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicações ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.

46 Constituição Federal, art 5º, XXXVI "a lei não prejudicará o direito adquirido, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;"

47 Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 511.

48 José Ignácio Botelho de Mesquita, em sua obra, A Coisa Julgada, nas páginas 93 e 94, revela que a corrente flexibilizadora tem origens antigas. "A tese, ao fazer diferença entre as sentenças justas e as injustas, para conceder àqueles e negar a estas a autoridade da coisa julgada, descreve, na verdade, descreve um movimento retrógrado de volta ao sistema das Ordenações Alfonsinas, de 1446, que distinguia entre sentença dada contra ‘direito expresso’ e a proferida ‘contra direito da parte’.

Da primeira, dizia a Ordenação do Livro III, Título LXXVIII, que era ‘sentença nenhuma’, da qual não era preciso apelar, ‘nem pode já mais em alguum tempo passar em cousa julgada, mas em todo tempo se pode dizer contra ella que he nenhuuma se sem alguum effeito’. Já a sentença proferida contra o direito das partes era dita sentença ‘alguma’ e ‘se a parte contra que fosse dada não apelasse della ao tempo que per direito he assinado para apelar, ela passaria em cousa julgada, e ficaria firme, assy como se fosse bem julgado’.

Essa distinção é todavia mais antiga ainda. Conforme MOACYR LOBO DA COSTA, o princípio enunciado no cabeçalho do Título LXXVIII "é genuinamente romano, lembrando mesmo dois títulos do Digesto (49.8) ‘Quae Sententia sine Appellatione Rescindantur e do Código (7.64) ‘Quando provocare nom est necesse’".

(...)

Da tese em análise, portanto, é licito dizer que, a despeito dos foros de modernidade que se arroga, é mais velha do que a Sé de Braga, obra monumental cuja construção data do ano 1070 da era cristã. Não se desprega do absolutismo da velha tradição monárquica, que fez a glória dos totalitarismos europeus do século passado."

49 Fala de Ada Pellegrini Grinover. Palestra transmitida pela TV Justiça em 14 de abril de 2005.

50 Da lição de Carlos Maximiliano, na obra Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 246: "Quando o texto menciona o gênero, presumem-se incluídas as espécies respectivas; se faz referência ao masculino, abrange o feminino; quando regula o todo, compreendem-se também as partes. Aplica-se a regra geral aos casos especiais, se a lei não determina evidentemente o contrário. Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus: ‘Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir’".

51 José Ignácio Botelho de Mesquita, A Coisa Julgada, p. 98.

52 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, apud José Ignácio Botelho de Mesquita, A Coisa Julgada, p. 99.

53 Nossa Constituição Federal possui regras que apesar de estarem em seu texto, não são temas tipicamente constitucionais (os tipicamente constitucionais são o poder do Estado e liberdade do povo), como o § 2º do art. 242 e os arts. 170 a 192.

54 José Carlos Barbosa Moreira. Considerações sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, p. 16.

55 José Ignácio Botelho e Mesquita. A Coisa Julgada, p. 118 e 119.

56 José Carlos Barbosa Moreira. Considerações sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, p. 11.

57 Luiz Guilherme Marinoni, Sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material. Disponível em <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 07 de abril de 2005.

58 Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada Temática Processual e Reflexões Jurídicas, p. 4.

59 Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 61.

60 Ibd. p. 89.

61 Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 500.

62 Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 509.

63 Luiz Guilherme Marinoni, Sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material. Disponível em <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 07 de abril de 2005.

64 Carlos Valder do Nascimento (coord.). Coisa Julgada Inconstitucional. p. 267.

65 Ada Pellegrini Grinover, em palestra transmitida pela TV Justiça, em 14 de abril de 2005, lecionou: Existe no Direito Processual um instrumento que é chamado de querela nullitatis, que é uma ação declaratória, que serve para decretar a nulidade de atos processuais por vícios formais, e que cada vez mais, hoje, é utilizada no prazo de vinte anos, fora, portanto, do prazo da ação rescisória. Mas ela tem como objeto, exclusivamente, vícios processuais.

66 Luiz Guilherme Marinoni, em seu artigo, Sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material, observa: "A ‘tese da relativização’ contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por "justiça" e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão médio (l’ uomo della strada), o que a torna imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência, nos termos a que se refere Canaris.

O grande filósofo alemão Gustav Radbuch há muito já criticava a inconsistência que advém da falta de uma concepção adequada de justiça, quando dizia que a ‘disciplina da vida social não pode ficar entregue, como é obvio, às mil e uma opiniões dos homens que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses homens terem ou poderem ter opiniões e crenças opostas, é que a vida social tem necessariamente de ser disciplinada duma maneira uniforme por uma força que se ache colocada acima dos indivíduos.’"

67 Fala de Ada Pellegrini Grinover. Palestra transmitida pela TV Justiça em 14 de abril de 2005.

68 Ibid.

69 No mesmo sentido é a lição de Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 518; "Para modificar essa situação, somente com a edição de lei autorizando que a coisa julgada, em ação de investigação de paternidade, ocorresse secundum eventum probationis, para ambos os litigantes (investigante e investigado – pai e filho). Essa sugestão, como é curial, é de lege ferenda."

70 A Fazenda Pública conta com um tratamento processual diferenciado: só pode ser citada pessoalmente (art. 222, c, do CPC), possui o quádruplo do prazo para contestar e o dobro para recorrer (art. 188 do CPC), não precisa de preparo para interpor recurso (§ 2º do art. 511 do CPC), conta com revisão de ofício (art. 475 do CPC), e o pagamento é efetuado por meio de precatório (art. 730 do CPC).

71 Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 519 e 520.

72 Transcrição livre da fala do Professor José Joaquim Calmon de Passos, em palestra ministrada no Seminário Flexibilização da Coisa Julgada, promovida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais, em 14 de abril de 2005.

73 Palestra proferida por José Joaquim Calmon de Passos, no dia 14 de abril de 2005, em Belo Horizonte, promovida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

74 Tereza Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, O Dogma da Coisa Julgada, p. 28.

75 Luiz Guilherme Marinoni, Sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material. Disponível em <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 07 de abril de 2005.

76 Tereza Arruda Alvim Wambier, op.cit., p. 29.

77 Nelson Nery Junior, Teoria Geral dos Recursos, p. 506.

78 Fala do Professor José Joaquim Calmon de Passos, em palestra proferida, no dia 14 de abril de 2005, em Belo Horizonte, promovida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

79 Fala do Professor José Joaquim Calmon de Passos, em palestra proferida, no dia 14 de abril de 2005, em Belo Horizonte, promovida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

80 Discurso do Presidente do STF em 02 de fevereiro de 2005. "(...) em alguns setores a taxa de congestionamento do sistema judiciário está na ordem de 20%, ou seja, a cada ano, para 100 demandas nós temos a capacidade geral de julgar 20 delas. Ou seja, o congestionamento nos levará à paralisação completa do sistema e é por isso a necessidade de formulação de mecanismos que melhorem a nossa capacidade de oferta de decisões, modernamente, na perspectiva das demandas de massa...." Disponível em: <www.stf.gov.br/noticias/impresnsa/palavra_dos_ninistros/ler.asp?CODIGO=120987&tip=DP>. Acesso em: 06 de fevereiro de 2005.

81 Luiz Guilherme Marinoni, Sobre a Chamada "Relativização" da Coisa Julgada Material. Disponível em <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 07 de abril de 2005


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Paulo Halfeld Furtado de. Considerações sobre a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1513, 23 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10303. Acesso em: 19 abr. 2024.