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O exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal sob a ótica das teorias da tipicidade conglobante e imputação objetiva.

Excludentes da antijuridicidade ou da tipicidade?

O exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal sob a ótica das teorias da tipicidade conglobante e imputação objetiva. Excludentes da antijuridicidade ou da tipicidade?

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O Código Penal, em seu artigo 23, inciso III, considera o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal como sendo causas de exclusão da antijuridicidade. Assim, o agente que age acobertado pelas referidas justificantes pratica um fato típico, porém lícito. Há subsunção do fato à norma penal incriminadora, atendendo-se ao primeiro elemento do crime (fato típico) mas não ao segundo (antijuridicidade).

No Direito Penal brasileiro, a doutrina tradicional e o próprio artigo 23 concebem o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal como sendo fatos típicos, ou seja, passíveis de se amoldarem aos vários tipos penais previstos no estatuto repressivo. Ilustremos com alguns exemplos: o investigador de polícia, munido de mandado de busca e apreensão e que exerce sua função pública no exercício regular de seu direito (em absoluta legalidade) pode provocar lesões corporais em terceiro que injustamente resista à apreensão de um bem. É evidente que não responderá pelo crime previsto no art. 129 do Código Penal por exclusão da ilicitude da sua conduta. Contudo, a lei, antes de afastar sua responsabilidade criminal pelo fato praticado, considera-o típico. Outro exemplo: o pugilista, durante uma luta, provoca inúmeras lesões corporais em seu adversário. De acordo com o Código Penal, o pugilista pratica fato típico (previsto no art. 129 do mesmo diploma), porém lícito (o exercício regular de direito exclui a ilicitude). O mesmo raciocínio deve ser aplicado ao soldado que, agindo no estrito cumprimento de dever legal, mata seu inimigo no campo de batalha. Para o vigente art. 23, não responde pelo crime de homicídio, tendo em vista que o seu comportamento é típico, mas não antijurídico.

Não obstante o respeito e observância ao preceito vigente, a moderna (e a nosso ver mais correta) concepção do Direito Penal tende a não mais considerar o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal como excludentes da ilicitude, devendo constar no rol do art. 23 apenas a legítima defesa e o estado de necessidade. Por óbvio, conquanto vigente o mencionado artigo, a ele devemos obediência, sendo concebido da maneira como dispõe o Código Penal. O objetivo é expor as razões pelas quais deve ser suprimido o inciso III do art. 23, retirando o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal do rol das excludentes da antijuridicidade.

Com efeito, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal devem excluir a tipicidade da conduta e não a ilicitude. Esse entendimento é alicerçado em duas grandes teorias do Direito Penal, que passamos a expor em linhas gerais.

A primeira, chamada de teoria da tipicidade conglobante, foi criada pelo penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni e preconiza a seguinte idéia: o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal excluem a tipicidade e não a antijuridicidade. Para os defensores dessa teoria, quando uma conduta for permitida por qualquer ramo do direito, globalmente considerado, ela é atípica. Isso porque o ordenamento jurídico é um todo, insuscetível de ser cindido para considerar, simultaneamente, a mesma conduta como sendo autorizada pela lei e prevista como crime. Um comportamento autorizado (como lutar boxe, por exemplo) e muitas vezes respaldado pela lei (exemplo do investigador de polícia) não pode ser, ao mesmo tempo, legal e típico (previsto em norma penal incriminadora, descrito como criminoso). A contradição é manifesta. E a conclusão não pode ser outra: são atípicos (indiferentes penais) os fatos praticados em exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal. Não devem ensejar sequer a instauração de inquérito policial. Aliás, deve ser ressaltado que as conseqüências desta necessária mudança de concepção não são meramente acadêmicas. Um fato típico pode (e deve) ser investigado em inquérito policial, bem como a denúncia deve ser oferecida, se houver elementos suficientes para tanto. Não podemos olvidar que a tipicidade é a ratio cognoscendi da antijuridicidade. Em outras palavras: um fato típico em princípio é também antijurídico (gera presunção relativa) salvo se presente alguma das justificantes constantes do art. 23 (caráter indiciário da antijuridicidade). Com a propositura da ação penal, a verificação da presença ou não da excludente da ilicitude pode ser postergada para a sentença, pois nem sempre o procedimento inquisitivo fornece elementos seguros para a promoção de arquivamento. No entanto, sendo o fato inequivocamente atípico, a autoridade policial dificilmente instaurará inquérito policial, e ainda que o faça e o Ministério Público ofereça denúncia ou o ofendido ingresse com a queixa-crime, ambas seriam rejeitadas com fundamento no art. 43, inciso I, do Código de Processo Penal (fato atípico). Reside aí a importância de ser suprimido o inciso III do art. 23 do Código Penal. Havendo alteração do referido artigo, condutas como as do investigador de polícia (desde que legais e sem excesso) seriam de plano revestidas de atipicidade, evitando o uso muitas vezes desnecessário da máquina judiciária. A prática forense revela que muitos inquéritos policiais são instaurados para a apuração de fatos praticados em exercício regular de direito e que posteriormente ganham o mesmo destino: o arquivo. Adotada a teoria da tipicidade conglobante, qualquer conduta ou diligência realizada nos estritos termos da lei passariam a ser indiferentes penais, exatamente como um homem que utiliza gravatas roxas (comportamento irrelevante para o Código Penal). Em suma, não haveria sequer possibilidade de subsumir a conduta a uma norma jurídica.

Para melhor explicarmos o benefício gerado pela exclusão da tipicidade e não da ilicitude, devemos apresentar duas situações distintas: a) se a caracterização do exercício regular de direito ou estrito cumprimento de dever legal é inequívoca (a atipicidade é nítida), resultante de condutas absolutamente legais e que não causam o menor resquício de dúvida a respeito da legalidade do comportamento ou do ato praticado, o inquérito policial não deve ser instaurado, pois o fato é irrelevante para o Direito. A legalidade deve ser evidente tanto para a ótica de quem exerce o ato quanto para o destinatário de sua execução (no caso, o terceiro, proprietário do bem que será apreendido). Nesta primeira hipótese é que se vislumbra a vantagem pragmática do acolhimento de nossa posição, pois conforme explanado acima, evitaria o uso desnecessário da máquina judiciária; b) a conduta praticada gera dúvida quanto à legalidade ou quanto aos seus limites (abuso ou excesso). Nesse caso, não terá outra opção a autoridade policial a não ser instaurar inquérito policial e remetê-lo ao Ministério Público, para a formação da opinio delicti. Enfim, mesmo que a cautela prevaleça, a exclusão da tipicidade possibilita um preliminar e acurado exame acerca da existência do crime, homenageando os ditames constitucionais da legalidade e da reserva legal. Não é crível aceitar a premissa de que um fato é típico sem antes confrontá-lo com os princípios constitucionais e com o próprio Código Penal. Por isso, antes da precipitada conclusão de considerá-lo típico para posteriormente aceitá-lo como sendo lícito, é mister que se verifique se o fato possui conteúdo de crime, não bastando a mera subsunção formal. Não podemos aceitar a errônea premissa de que fatos autorizados pelo ordenamento sejam típicos. Também devemos ter em mente que o operador do Direito não é um cego adaptador de comportamentos a tipos penais, sem antes analisar se a conduta é autorizada, aceita ou protegida. E essa análise preliminar realiza-se na tipicidade do comportamento e não na antijuridicidade.

Idêntica conclusão é extraída pela teoria da imputação objetiva. Desenvolvida na Alemanha e amplamente discutida na Espanha, Chile, Colômbia, Argentina, Venezuela e mais recentemente no Brasil, a teoria integra as modernas escolas penais européias, sobretudo as alemãs. Podemos citar Claus Roxin e Günther Jakobs como grandes expoentes e defensores dessa teoria. No Brasil, Damásio de Jesus, André Luís Callegari e Luiz Regis Prado.

A imputação objetiva, em síntese, enuncia o seguinte postulado a respeito: se um risco é permitido pelo Estado, ou seja, socialmente aceito e padronizado, não poderá ser típico. A partir do momento em que a sociedade tolera os riscos e os vê como justos e necessários, a conduta praticada sob as duas justificantes que estamos tratando não constitui crime ou contravenção penal. Se o Estado aceita os riscos que envolvem a prática do boxe, por exemplo, não deve o comportamento do pugilista que age dentro das regras do esporte ter a ilicitude afastada, bem como não deve também subsumir-se ao art. 129 ou ao art. 121, § 3° (homicídio culposo), conforme o caso. Motivo: essas condutas são atípicas (não são criminosas ou contravencionais). Afinal, como poderia o Estado aceitar os riscos de determinadas ações e ao mesmo tempo descrevê-las como criminosas?

Desta forma, seja por meio da teoria da tipicidade conglobante, seja por meio da teoria da imputação objetiva, o Direito Penal deve caminhar no sentido da supressão do exercício regular de direito e do estrito cumprimento de dever legal do rol do art. 23 do Código Penal. O moderno Direito Penal tende a enriquecer a análise da tipicidade e a empobrecer a antijuridicidade. Se a mera subsunção formal é insuficiente por si só para caracterizar uma conduta como criminosa, exigindo-se também que tenha conteúdo material de crime, todo o exame dessas exigências, ditadas não apenas pelo Direito Penal, mas pelo Direito Penal Constitucional devem passar pela tipicidade antes de adentrar na antijuridicidade. Se os fatos forem irrelevantes para o Direito Penal, como o são as condutas respaldadas por lei (tipicidade conglobante) ou socialmente padronizadas (imputação objetiva) aqueles serão atípicos diante da circunstância.


BIBLIOGRAFIA:

JESUS, Damásio de. Direito Penal (Parte Geral), Ed. Saraiva. São Paulo, 1999.

_________________. Imputação Objetiva, Ed. Saraiva. São Paulo, 2002.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal (Parte Geral), Ed. Saraiva. São Paulo, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal. Parte General, Ed. Ediar. Buenos Aires, 1988.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEDAS, Thiago Vinicius de Melo. O exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal sob a ótica das teorias da tipicidade conglobante e imputação objetiva. Excludentes da antijuridicidade ou da tipicidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1557, 6 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10504. Acesso em: 19 abr. 2024.