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Direitos humanos como projeto cosmopolita insurgente na concepção de globalização contra-hegemônica

Direitos humanos como projeto cosmopolita insurgente na concepção de globalização contra-hegemônica

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Resumo: Os direitos humanos, genericamente considerados, imbuem-se de um valor universal, transcendendo o conceito de nação isolada. Dentre os desafios da sociedade hodierna, encontra-se fundamentalmente o de propiciar a garantia e efetividade destes direitos, considerando estarmos inseridos em uma globalização hegemônica, sinônima de neoliberalismo globalizado. Uma das possibilidades, visualizada por Boaventura de Sousa Santos, é a resistência exercida mediante o cosmopolitismo insurgente, o qual se constitui de reações contra a exclusão social, mediante o ativismo trans-fronteiriço e o movimento democrático transnacional.

Palavras-chave: direitos humanos, neoliberalismo, globalização contra-hegemônica, cosmopolitismo insurgente, ativismo trans-fronteiriço.


O presente artigo objetiva realizar uma breve análise acerca dos direitos humanos, das dificuldades em assegurá-los de forma uniforme a todos os povos no âmbito do direito internacional, além de abordá-los sob o enfoque de um projeto cosmopolita insurgente e subalterno, dentro da concepção de globalização contra-hegemônica, ambos conceitos de Boaventura de Sousa Santos.

Sobre o aspecto histórico dos direitos do homem, Rogério Gesta Leal ressalta ser consenso entre os historiadores considerar sua origem nos "primórdios da civilização, abarcando desde as concepções formuladas pelos hebreus, pelos gregos, pelos romanos, e pelo cristianismo, passando pela Idade Média, até os dias de hoje". (1997, p. 20)

Enquanto parcela considerável da doutrina considera como sinônimas as terminologias "direitos humanos" e "direitos fundamentais", outra sustenta o oposto, diferenciando-as no sentido de que, enquanto os fundamentais seriam os direitos do ser humano reconhecidos e positivados constitucionalmente em determinado Estado, os humanos seriam os aplicados a todos os indivíduos enquanto da espécie humana, inerentes em razão de sua própria natureza, independentemente do seu vínculo estatal.

Neste sentido, destaca-se o entendimento de Alexandre de Morais, para o qual o conceito de direitos fundamentais é anterior à noção de constitucionalismo, que apenas consagrou a necessidade de estabelecer um rol mínimo de direitos humanos em um documento escrito, derivado diretamente da vontade popular soberana.

Em acepção mais restrita, José Afonso da Silva opta pelo uso da terminologia "direitos fundamentais" e confere-lhes apenas os caracteres de historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade, expurgando os de conotação jusnaturalista (inatos, absolutos, invioláveis e imprescritíveis). Já em sentido mais amplo, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tendo em vista que declaração presume preexistência, os direitos humanos seriam, por conseguinte, naturais, além de necessariamente abstratos, imprescritíveis, inalienáveis e, por tudo isso, universais, pertencendo a todos os homens.

Em que pese a não-uniformidade de definições, não se pode negar que os direitos humanos, considerados em seu aspecto mais amplo, se imbuem de um valor universal, atemporal e não espacialmente delimitado, com caráter supranacional, transcendendo, pois, o conceito de nação isolada, o que atende ao fenômeno contemporâneo de mundo global.

Conforme relembram Nascimento e Accioly, vários foram os instrumentos internacionais que expressaram a necessidade de existir uma cooperação internacional, a fim de regular a proteção aos direitos humanos, podendo-se destacar a "Carta das Nações Unidas", de 1945, a "Declaração Universal dos Direitos do Homem", de 1948, o "Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais" e o "Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos", ambos de 1966.

Para Jean-Marie Lambert, em razão de haver diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, e não apenas um único, criados e aceitos pelos Estados, a maior parte deles não são além do que supletivos, uma vez que "[...] os regimes estabelecidos por lei internacional convencional – ou costumeira – visam normalmente a suprir as lacunas dos Estados e não a instaurar por inteiro a proteção". (2000, p. 242)

Desta forma, constata-se que, dentre os desafios da sociedade hodierna, se encontra não apenas o de definir, delimitar ou justificar os direitos humanos, mas principalmente o de propiciar sua garantia e efetividade, impedindo que estes, não obstante as declarações e tratados internacionais, sejam constantemente violados.

Não há que se perder de vista que a globalização agrava o desrespeito aos direitos humanos, de forma que Azevedo assevera que "a globalização, tal como a quer o neoliberalismo, está associada à exclusão social" (2000, p. 115), tornando-se mais dramática para o setor populacional majoritário. Assim sendo, justamente a parcela da população mundial que mais precisa ter seus direitos humanos garantidos é a que não integra a lógica do mundo global e tampouco detém os instrumentos de controle. Desta constatação advém a importância dos movimentos sociais de resistência.

Boaventura defende o uso do termo "globalizações", ao invés de seu singular, porquanto identifica quatro tipologias. A globalização hegemônica seria constituída por dois processos, o localismo globalizado e globalismo localizado, ao passo que a globalização contra-hegemônica se comporia pelo cosmopolitismo insurgente e subalterno e pelo patrimônio comum da humanidade.

Na concepção do sociólogo, a globalização hegemônica, sinônima de neoliberalismo globalizado, vem enfrentando resistência através da sua forma contra-hegemônica, desde a década de 1990, sendo esta "o conjunto vasto de redes, iniciativas, organizações e movimentos [...] que se opõem às concepções de desenvolvimento mundial a estas subjacentes, ao mesmo tempo que propõem concepções alternativas" (2006, p. 400). Para ele, a oposição do ativismo trans-fronteiriço e do movimento democrático transnacional é pautada por uma proposta de luta contra a exclusão social e "redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos", baseando-se nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença.

Destarte, uma vez que as violações dos direitos humanos ocorrem em escala global, Sousa Santos aduz que a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em demudar não só o conceito dos direitos humanos. De igual forma, deve-se alterar a prática, de um localismo globalizado, que significa o "processo pelo qual determinado fenômeno, entidade, condição ou conceito local é globalizado com sucesso" (2006, p. 438), para um projeto cosmopolita insurgente, sendo este a "emergência global resultante das articulações/coligações transnacionais entre lutas locais pela dignidade, inclusão sócia autónoma, auto-determinação". (2006, p. 440)

Para este intuito, muito contribui o Fórum Social Mundial, o qual é considerado por Boaventura um novo fenômeno político e a possibilidade de criação de uma política e legalidade cosmopolita subalterna, em razão de ser um espaço de diálogo da humanidade, no qual há a articulação e coordenação de vários "movimentos sociais e de organizações da sociedade civil, com a finalidade de combinar estratégias e tácticas, de definir agendas, e ainda de planear e levar a efeito acções colectivas". (2006, p. 414)

A tese de Boaventura a propósito dos direitos humanos reside em considerar que, enquanto concebidos estes como universais em abstrato, tendem a operar como localismo globalizado e, somente sendo reconceituados como interculturais é que poderão operar como forma de cosmopolitismo insurgente, considerando uma tarefa epistemológica a construção de uma concepção intercultural e pós-imperial de direitos humanos.

Concordando ou não com a tese acima esboçada, não se pode negar que os direitos humanos clamam por maior eficácia, de maneira que, independente da nomenclatura, dos caminhos ou das particularidades que possam ter quaisquer projetos de alteração desse status, o fato é que se necessita de ação social interligada globalmente, pois no mundo contemporâneo não há mais espaço para se pensar apenas no local ou regional.

Não se pode esquecer, ademais, que a evolução humana implica no surgimento de novas realidades, necessidades e, conseqüentemente, diversos direitos, devendo também se estar aberto à necessidade de transmudar a própria concepção de direitos humanos para acompanhar a evolução humana natural.

Portanto, em que pese poder ser esta proposta considerada um tanto quanto utópica, o próprio Boaventura adverte que, para aqueles que assim pensam, este projeto "é certamente, tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria" (2006, p. 470). Por derradeiro, aludindo a Sartre, relembra um pensamento que não se deve esquecer nunca, o de que uma idéia, antes de concretizada, apresenta semelhança estranha com a utopia.


REFERÊNCIAS:

ACCIOLY, Hildebrando & SILVA, G. E. do Nascimento. Manual de Direito Internacional Público. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

LAMBERT, Jean-Marie. Curso de Direito Internacional Público: parte geral. 2 ed. Goiânia: Kelps, 2000.

LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997.

MORAES, Alexandre de. Direitos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 1 ed. São Paulo, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.


Autor

  • Celice Gomes Carmo Oliveira Scoz

    Advogada. Possui bacharelado em Direito e licenciatura em Letras - Português, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande-RS; pós-graduação lato sensu em Direito Administrativo, pela Universidade Gama Filho; pós-graduação lato sensu em Direito Público, pela Universidade do Vale do Itajaí em convênio com a Associação dos Juízes Federais do Estado de Santa Catarina; e é pós-graduanda em Gestão Pública Avançada, pela ENA Brasil - Escola de Governo/SC. É assistente jurídica da Procuradoria-Geral do Estado de Santa Catarina.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA SCOZ, Celice Gomes Carmo. Direitos humanos como projeto cosmopolita insurgente na concepção de globalização contra-hegemônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1565, 14 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10532. Acesso em: 16 abr. 2024.