Bater nos filhos: direito religioso ou crime? Esta é uma discussão que perdura desde a implantação da "Lei da Palmada", e é sobre isto que falaremos neste artigo.
Os diferentes pontos de vista
Para muitos cristãos, os provérbios de Salomão sobre a "vara da disciplina" são um guia na hora de educar crianças segundo valores e princípios corretos. Mas a Lei 13.010/2014 prevê que a criança e o adolescente têm o direito de "serem educados sem o uso de castigos físicos" ou de qualquer outro tratamento cruel ou degradante". É nesse momento que inicia-se um conflito entre lei e fé.
De acordo com os cristãos, os mandamentos divinos devem ser obedecidos acima de quaisquer leis humanas. (Atos 5:28, Bíblia Sagrada) Mas, por outro lado, a mesma Bíblia prevê que os cristãos devem ser obedientes às autoridades vigentes, ressaltando que a autoridade é "concedida do alto", ou seja, de Deus, e que "toda autoridade vem do Senhor" (João 19:11; Romanos 13:1, Bíblia Sagrada).
Liberdade de culto tem limites
Conforme a Constituição Federal de 1988, vigente até hoje, o Brasil é um Estado laico, ou seja, não tem (ou, ao menos, não deveria ter) nenhum vínculo com qualquer forma de religião. Na prática, isto significa que o nosso país não deve adotar suas leis com base em princípios religiosos, mas sim na razão e no bem comum.
Assim, a crença cristã de que os pais devem punir fisicamente seus filhos em prol de uma integridade de caráter futura não deve jamais prevalecer sobre a lei do Estado, que busca proteger crianças e adolescentes contra o abuso físico.
Obs.: Os danos psicossomáticos a vítimas de castigos físicos na infância e adolescência são cientificamente comprovados, ao contrário da [suposta] correlação entre castigos corporais sofridos nesta fase da vida e a integridade do caráter, ou vice-versa.
Liberdade religiosa x crime: uma linha muito tênue
Além disto, existe uma linha muito tênue entre liberdade religiosa e crime. Liberdade religiosa é ter o direito de cultuar a(s) divindade(s) que quiser (ou mesmo nenhuma) e viver de acordo com os princípios de sua fé, desde que este modo de vida não incida no cometimento de crimes previstos em lei.
O perigo do uso desarrazoado da "liberdade de culto"
Um exemplo da linha tênue entre o direito de crença e o crime é o Estado Islâmico, que provocou vários ataques terroristas ao redor do mundo em meados da década de 2010, baseado em seu radicalismo religioso. Se fôssemos levar até às últimas consequências o "direito à liberdade religiosa", teríamos que defender o [suposto] direito dos muçulmanos radicais de terem promovido os atos terroristas que promoveram em nome de seu fervor nada saudável. Por outro lado, se tivermos uma abordagem mais equilibrada sobre a diferença entre o direito ao culto religioso e o delito, veremos que tais atos foram completamente desumanos e os responsáveis devem, de acordo com a lei, pagar pelo sofrimento que causaram a outras pessoas em razão da forma como agiram.
"Mas eu não vou bater no meu filho para espancar, eu 'só' vou dar umas palmadas para ensinar a diferença entre o certo e o errado, porque lá fora a vida vai bater mais forte do que eu, etc." (sic)
Isto será tratado mais a fundo num artigo futuro. Parte deste contexto já foi abordada neste artigo: https://jus.com.br/artigos/105381/mais-do-que-um-simples-tapinha-entenda-o-que-a-lei-da-palmada-realmente-visa-coibir-parte-4-o-estado-emocional-alterado-dos-pais-ao-aplicar-o-castigo-fisico
Neste futuro artigo, trarei uma abordagem específica sobre o ato do castigo físico em si.
Portanto, tendo em vista o texto da Constituição e a linha tênue entre liberdade de culto e crime, vemos que o ato de bater em crianças e/ou adolescentes sob sua guarda, mesmo com as "melhores" intenções, baseadas na sua fé, é crime.
Se este texto foi esclarecedor para você, mande o link deste artigo para alguém que precisa ler isto!
Créditos da imagem: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4680/