O papel da Defensoria Pública na garantia do direito ao tratamento com canabidiol no Brasil.

Um estudo sobre a judicialização da saúde

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Resumo: O artigo analisa o papel da Defensoria Pública na judicialização do canabidiol no Brasil, destacando a garantia do direito à saúde, desafios regulatórios e impactos das decisões judiciais que asseguram o acesso ao tratamento com canabidiol para pacientes vulneráveis.


1. Introdução

Nos últimos anos, o uso de canabidiol (CBD) como tratamento para diversas doenças graves, como epilepsia refratária e esclerose múltipla, ganhou destaque no Brasil. O canabidiol, um dos componentes da planta Cannabis sativa, mostrou-se eficaz em muitos casos onde tratamentos convencionais falharam, resultando em uma demanda crescente por seu uso medicinal. Contudo, o acesso ao canabidiol enfrenta obstáculos significativos, como a regulamentação restritiva e o alto custo do medicamento, que muitas vezes não está disponível pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Diante dessas dificuldades, a judicialização da saúde tornou-se uma estratégia comum para garantir o acesso ao canabidiol. Pacientes e seus familiares têm recorrido ao Poder Judiciário para assegurar o direito ao tratamento, e a Defensoria Pública desempenha um papel fundamental nesse processo. A Defensoria, uma instituição constitucionalmente garantida, tem a missão de prestar assistência jurídica gratuita à população carente, assegurando o acesso à justiça e, por extensão, ao direito à saúde.

Este artigo analisa o papel da Defensoria Pública na garantia do direito ao tratamento com canabidiol, com base em decisões judiciais recentes e na regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Além disso, o artigo aborda os desafios enfrentados pela Defensoria na judicialização da saúde e discute perspectivas para o futuro.


2. O Direito à Saúde na Constituição Brasileira

A Constituição Federal de 1988, conhecida como a "Constituição Cidadã", consagra um conjunto amplo de direitos sociais, entre os quais se destaca o direito à saúde. O artigo 196 estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", assegurando o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, promovidos por meio de políticas públicas.

Entretanto, a realidade no Brasil muitas vezes contrasta com o que está previsto na Constituição. A falta de recursos, a má gestão e as políticas públicas inadequadas resultam em lacunas no atendimento à saúde, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos de alto custo ou de tratamentos experimentais. A judicialização da saúde surge como uma resposta a essas falhas do Estado em cumprir seu dever constitucional.

Em casos que envolvem o fornecimento de medicamentos como o canabidiol, o Judiciário brasileiro tem sido um ator crucial para a concretização do direito à saúde. Decisões judiciais que determinam o fornecimento de medicamentos não disponíveis no SUS, ou ainda não regulamentados pela ANVISA, são fundamentadas em princípios constitucionais, como o direito à vida (art. 5º) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Essas decisões refletem uma interpretação robusta do direito à saúde, que coloca a vida e a saúde dos cidadãos acima de questões orçamentárias ou burocráticas.


3. O Papel Constitucional da Defensoria Pública

A Defensoria Pública é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, conforme o artigo 134 da Constituição Federal. Sua missão é prestar assistência jurídica integral e gratuita aos cidadãos que comprovarem insuficiência de recursos, assegurando, assim, o acesso à justiça para os mais vulneráveis. A Lei Complementar nº 80/1994 organiza a Defensoria Pública em nível nacional e amplia suas atribuições, destacando o papel da instituição na promoção dos direitos humanos e na defesa dos direitos coletivos e individuais homogêneos das pessoas necessitadas.

Na prática, a Defensoria Pública tem se destacado como um importante instrumento de concretização de direitos sociais, especialmente o direito à saúde. A atuação dos defensores públicos na judicialização do canabidiol evidencia a importância da instituição na defesa de direitos fundamentais. A Defensoria não apenas representa juridicamente seus assistidos, mas também contribui para a construção de precedentes judiciais que moldam a interpretação dos direitos fundamentais no Brasil.

Além disso, a Defensoria Pública desempenha um papel ativo na defesa dos direitos coletivos por meio de ações civis públicas, que buscam garantir o fornecimento de medicamentos para todos os pacientes que necessitam de tratamento, como o canabidiol. Essa atuação coletiva é crucial para ampliar o acesso ao tratamento e pressionar o Estado a aprimorar suas políticas de saúde.


4. O Canabidiol e Sua Regulamentação no Brasil

A regulamentação do canabidiol no Brasil passou por uma evolução significativa nos últimos anos, impulsionada por uma demanda crescente de pacientes e por decisões judiciais favoráveis. Em 2015, a ANVISA publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 17, que permitiu pela primeira vez a importação de produtos à base de canabidiol mediante prescrição médica. Essa regulamentação surgiu em resposta a pressões de pacientes e organizações da sociedade civil, que buscaram alternativas no uso do CBD após falhas em tratamentos convencionais.

No entanto, o processo de importação de canabidiol ainda é complexo e custoso. Para obter autorização da ANVISA, o paciente precisa apresentar uma série de documentos, incluindo prescrição médica e justificativas detalhadas que comprovem a necessidade do tratamento com CBD. Esses requisitos, embora importantes para garantir a segurança dos pacientes, acabam criando obstáculos que dificultam o acesso ao medicamento, especialmente para aqueles que enfrentam dificuldades financeiras.

Em 2019, a ANVISA publicou a RDC nº 327, que regulamentou a fabricação, importação e comercialização de produtos à base de cannabis para fins medicinais no Brasil. Essa resolução representou um avanço ao permitir que empresas brasileiras produzissem medicamentos à base de canabidiol, desde que obedecessem aos critérios rigorosos estabelecidos pela agência. Além disso, a RDC nº 327 também estabeleceu regras para a prescrição médica desses medicamentos, restringindo seu uso a situações em que os tratamentos convencionais se mostraram ineficazes.

Apesar desses avanços, o acesso ao canabidiol no Brasil ainda é limitado. O custo elevado dos medicamentos e a falta de informações claras para médicos e pacientes sobre como obter o tratamento continuam a ser barreiras significativas. A judicialização do fornecimento de canabidiol, portanto, permanece uma estratégia vital para garantir o acesso ao medicamento, especialmente para aqueles que não podem arcar com os altos custos envolvidos no processo de importação ou compra.


5. A Judicialização do Canabidiol

A judicialização do canabidiol no Brasil é um fenômeno que tem moldado o debate sobre o acesso ao medicamento no país. Diante das dificuldades impostas pela regulamentação da ANVISA e pelo alto custo dos produtos à base de cannabis, muitos pacientes têm recorrido ao Poder Judiciário para garantir o direito ao tratamento.

A Defensoria Pública desempenha um papel crucial nesse processo ao representar juridicamente os pacientes que não têm condições de arcar com as despesas de um advogado particular. Nessas ações judiciais, os defensores públicos argumentam que o direito à saúde, previsto na Constituição, inclui o acesso a medicamentos essenciais para a manutenção da vida e da saúde, como o canabidiol. Esses argumentos são frequentemente baseados em princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e o direito à vida.

Diversas decisões judiciais no Brasil têm reconhecido o direito dos pacientes de acessar o canabidiol, mesmo quando o medicamento não está disponível no SUS ou não possui registro na ANVISA. Um exemplo relevante é a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região na Ação Civil Pública nº 1010801-23.2016.4.01.3400, que determinou que a União fornecesse canabidiol a uma paciente com epilepsia refratária, mesmo sem o registro do medicamento na ANVISA. A decisão foi fundamentada no entendimento de que o direito à saúde prevalece sobre barreiras regulatórias, especialmente em casos em que a falta de tratamento representa risco de morte ou agravamento severo da condição de saúde do paciente.

Embora essas vitórias judiciais sejam importantes para garantir o acesso ao canabidiol, elas também levantam questões sobre a sustentabilidade do sistema de saúde pública. O fornecimento de medicamentos de alto custo via decisões judiciais pode gerar pressões orçamentárias no SUS, e muitos gestores de saúde argumentam que isso compromete a equidade no acesso aos tratamentos. Esse é um desafio contínuo, e a Defensoria Pública deve equilibrar a defesa dos direitos individuais dos pacientes com as implicações mais amplas de suas ações para o sistema de saúde.


6. Desafios e Perspectivas para a Defensoria Pública na Judicialização da Saúde

A judicialização da saúde no Brasil traz desafios significativos para a Defensoria Pública. O primeiro grande desafio é a sobrecarga de demandas judiciais. Com o aumento da judicialização, especialmente em casos de fornecimento de medicamentos de alto custo, como o canabidiol, os defensores públicos enfrentam um volume crescente de processos, o que pode comprometer a eficiência e agilidade no atendimento.

Além disso, a judicialização do canabidiol envolve questões técnicas e científicas complexas. Os defensores públicos precisam estar constantemente atualizados sobre os avanços científicos relacionados ao uso medicinal do CBD e as mudanças na regulamentação da ANVISA. Esse conhecimento é essencial para embasar os argumentos jurídicos de maneira eficaz e garantir que os pacientes obtenham o tratamento adequado.

Outro desafio é o conflito entre decisões judiciais e políticas públicas de saúde. A judicialização pode forçar o Estado a destinar recursos para o fornecimento de medicamentos que não estavam previstos no orçamento. Essa situação cria tensões entre o Poder Judiciário e o Executivo, com gestores de saúde argumentando que a interferência judicial compromete a alocação eficiente de recursos e pode prejudicar a equidade no acesso ao SUS.

Para enfrentar esses desafios, é crucial que a Defensoria Pública continue investindo na capacitação de seus profissionais. Além disso, a instituição pode buscar parcerias com universidades e centros de pesquisa para desenvolver estudos que ajudem a aprimorar sua atuação na judicialização da saúde. A Defensoria também pode desempenhar um papel proativo na articulação com os poderes Legislativo e Executivo, propondo mudanças regulatórias que facilitem o acesso ao canabidiol e outros medicamentos essenciais.

No campo das políticas públicas, a Defensoria Pública pode atuar como uma ponte entre o Poder Judiciário e os gestores de saúde, promovendo um diálogo construtivo que ajude a encontrar soluções mais justas e equilibradas. A judicialização deve ser vista como um último recurso, utilizado quando as políticas públicas falham em garantir o acesso aos tratamentos necessários. A longo prazo, o objetivo deve ser reduzir a dependência da judicialização, garantindo que o sistema de saúde seja capaz de atender às necessidades da população de maneira regular e equitativa.


7. Conclusão

A Defensoria Pública desempenha um papel fundamental na garantia do acesso ao canabidiol no Brasil. Através da judicialização, a instituição tem assegurado que pacientes em situações de vulnerabilidade possam obter o tratamento de que necessitam para preservar sua saúde e qualidade de vida. No entanto, a judicialização da saúde também traz desafios significativos para a Defensoria e para o sistema de saúde como um todo.

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O equilíbrio entre o direito individual à saúde e a sustentabilidade do SUS é uma questão complexa que requer uma abordagem cuidadosa e coordenada. Para o futuro, é essencial que o Estado continue avançando na regulamentação do canabidiol e na melhoria das políticas públicas de saúde, reduzindo a necessidade de intervenção judicial para garantir o acesso a tratamentos essenciais.

A Defensoria Pública, por sua vez, deve continuar a se capacitar e a buscar soluções inovadoras para aprimorar sua atuação na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Somente através de uma atuação eficaz e comprometida será possível construir um sistema de saúde mais justo e acessível para todos.


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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. (Referência fundamental para o estudo dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988).

Sobre o autor
Victor Lázaro Ulhoa Florêncio de Morais

Advogado Ex-defensor Público do Estado de Goiás Ex- Auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado de Goiás

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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