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Apontamentos sobre a perfeição e o Direito.

O caso da administração pública e dos atos discricionários

Apontamentos sobre a perfeição e o Direito. O caso da administração pública e dos atos discricionários

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A busca pela perfeição, eterna quimera humana. Desde o início dos tempos, o homem buscou e buscará, sempre, a perfeição em tudo aquilo que faz. Nas artes, nos esportes, nas ciências, no Direito. Até quando se buscou criar algo imperfeito, esperava-se que fosse perfeitamente imperfeito, da forma como a imperfeição é vista no pensamento de seu criador. [01]

Mas, como bem sabemos, o ser humano não é exato. Pelo contrário, é falho. Comete equívocos. Não importa quão bom seja naquilo que faz, ou o quanto pratique. Não importam as predisposições genéticas que coloquem certa pessoa em posição mais favorável que as outras. Somos falíveis.

E, se os homens são falhos, tudo o que eles fazem e produzem também estará sujeito a ser falho. Inclusive as leis, os regulamentos, os negócios jurídicos, os atos emanados pelo Poder Público, pela administração pública, por todos.

Contudo, o mero vislumbrar dessa idéia de "falibilidade absoluta do mundo" traz consigo uma insuportável angústia, uma sensação de que tudo está errado ou prestes a dar errado, como se o céu fosse desabar a qualquer momento, levando a uma intolerável insegurança geral e absoluta.

Cientes de tal situação, os juristas, que não poderiam quedar-se diante dessa conjuntura aterradora, muniram o Direito de mecanismos capazes de conter ou, ao menos, amenizar tal estado de "falibilidade absoluta", permitindo a satisfatória atuação do próprio sistema jurídico e, até, a harmoniosa existência humana. Para tanto, são instituídos os princípios absolutos, cláusulas pétreas, a coisa soberanamente julgada, a presunção de legalidade das leis, a presunção (iuris tantum) de legalidade dos atos administrativos, dentre outras construções. São regulamentos em que a "perfeição sistêmica" é presumida, até que se prove o contrário, ou não seja mais concedida a possibilidade de prova em contrário. Trata-se de verdadeiros axiomas que servem como base e fundamento de todo nosso sistema jurídico e social. [02]

Continuando na mesma linha de raciocínio, podem-se apontar, ainda, alguns institutos do nosso sistema constitucional que incidem nessa finalidade, de deter ou conter a falibilidade humana no mundo jurídico, tais como aquelas ações específicas que avaliam se certas leis são perfeitas (acordes com a Constituição) ou não, de modo a permitir a sua confirmação ou desaprovação, evitando-se "falhas". Em tal aparelho de julgamento, busca-se ponderar se tal lei segue ou não os preceitos estabelecidos pela Constituição, chamada por alguns de Lei Maior, uma vez que basilar de todo nosso ordenamento. Não se ousando dizer que tal lei está correta, ao passo que a Constituição estaria errada. O que faria ruir toda a sistemática legal criada.

Como lecionado pelo egrégio mestre Hans Kelsen, uma certa norma inferior tem fundamento em outra norma de hierarquia maior, que por sua vez ancora-se em outra norma superior às anteriores, que, então, tem seu fundamento de validade na Grundnorm (a grande norma, ou norma fundamental), que não se ancora em norma alguma, visto que é pressuposta, e não posta, antecedendo, pois, às outras normas. [03] No caso do Direito brasileiro, o poder que justifica todo esse sistema, inclusive a nossa "grande norma", é a soberania popular, uma vez que todo o poder emana do povo, conforme bem reconhece a própria Constituição da República (art. 1º, p.u., CR/88).

Assim sendo, com o estabelecimento de tais axiomas jurídicos, o Direito torna possível e plausível a sua própria atuação, baseando-se em certas "presunções". Não se pode, contudo, olvidar da referida "falibilidade inevitável", ou seja, não se pode esquecer que continuamos, ainda assim, sujeitos a falhas. Pelo que são instituídos, no sistema legal, mecanismos de controle e revisão dos atos jurídicos, de modo a minimizar a possibilidade de erros dentro do sistema, evitando abusos, azeitando os mecanismos do ordenamento para que se reduza a ocorrência de inconsistências.

Destarte, mesmo presumindo que certas coisas são "não-falhas", ainda assim, impõe-se a necessidade de se (re)avaliar a sua exata situação, para que, caso seja necessário, possam ser corrigidas a tempo. Para tanto é que existem as garantias constitucionais do duplo grau de jurisdição, do processo administrativo, da tripartição dos Poderes, etc.

Nessa seara, salta aos olhos, com sua extraordinária importância, o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), que tempera a tripartição dos Poderes do Estado, determinando a mútua vigilância da atuação de cada Poder.

Em tal sistema, cada Poder observa e avalia a atuação do outro. O Poder Executivo, analisando a atuação do Legislativo e do Judiciário, ao mesmo tempo em que está sob o vigilante olhar deste último, que também observa o Poder Legislativo, o qual, por sua vez, observa os dois primeiros. Todavia, sem invasões à esfera própria de cada um, ato que afrontaria diretamente o princípio da separação dos poderes. Dessa feita, garante-se o bom funcionamento do Estado, assegurando-se a independência harmoniosa entre os três Poderes, da forma como prevê o art. 2º de nossa Constituição da República. [04]

Tal aparato, dos freios e contrapesos, sistematizado pelo Barão de Montesquieu, é de capital relevância para o funcionamento democrático de nosso Estado de Direito, na medida em que impede a superposição de um Poder sobre os demais, evitando a concentração de força nas mãos de um só ente, de modo a preservar a liberdade dos homens contra abusos e erros dos governantes. [05]

No meio de toda essa sistemática de falibilidade, axiomas e mecanismos de controle, a Administração Pública [06], no sentido subjetivo da expressão, como parte do Poder Executivo, deve se manter inarredavelmente obediente aos princípios elencados pelo art. 37 da Constituição da República, sobretudo adstrita à legalidade, princípio capital, que, na definição de Celso Antonio Bandeira de Melo, é "a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, conseguinte, a atividade administrativa é sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei". [07]

Ou seja, diferentemente da esfera privada, em que impera a autonomia da vontade, liberdade de fazer tudo aquilo que não é vedado por lei, na esfera pública reina o princípio da legalidade, que obriga a administração a fazer tão-somente aquilo que a lei determina, não podendo agir livremente. A Administração só pode agir secundum legem, dando fiel execução à ordem preexistente na lei. Isso se deve ao fato de a Administração Pública se subordinar à vontade geral, submetendo-se à supremacia da lei, que, por sua vez, resulta da formulação dessa vontade geral, consubstanciada em lei através dos representantes do povo. [08]

Sendo assim, à Administração Pública cabe atender as finalidades públicas, zelar pelo interesse público. Foi para isso que ela foi concebida, competindo-lhe, pois, essa difícil tarefa de harmonizar os interesses heterogêneos da sociedade e consubstanciá-los em uma "manifestação homogênea", que é o ato administrativo, instrumento de sua atuação.

Referidos atos administrativos, por sua vez, espécie inserida dentro do gênero dos atos jurídicos (que podem ser vulgarmente definidos como ações humanas que têm efeito ou importância para o mundo do Direito, contrapondo-se aos meros fatos jurídicos), são, em sentido amplo, manifestações jurídicas da Administração Pública. Segundo bem os conceitua o Professor paulista, Celso Antônio Bandeira de Mello, são:

"(...) declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional". [09] (grifamos)

Destarte, como indicado por Celso Antônio, o Estado deve atuar sempre vinculadamente à lei, pois a lei emana da vontade do povo e o Estado atua pelo povo e para o povo. Cingindo-se às balizas legais, sempre, sem exceções, ressaltamos.

Nessa seara, quando a lei delimita a atuação estatal em sua completude, diz-se que o ato é vinculado [10]. Como acontece no caso da aposentadoria compulsória dos servidores que completam 70 anos de idade (art. 40, § 1º, II, da CR/88), episódio em que se entende que não resta ao administrador escolher se irá aposentar o servidor ou não, a conduta encontra-se vinculada a expressa disposição legal.

Contudo, em outras oportunidades, dentro da moldura fixada pela lei, resta, vez ou outra, uma certa margem de liberdade ao administrador. Abrindo-se, propositadamente, uma brecha para que "delibere" sobre qual a melhor decisão a ser tomada. A essas situações, explicadas aqui inicialmente de forma simplista, a doutrina deu o nome de discricionariedade administrativa. Levando, pois, aos chamados atos discricionários, os quais surgiram, na verdade, da preocupação do legislador, que, admitindo a impossibilidade de prever todas as situações passíveis de ocorrerem no mundo fático, abre certo espaço para que o administrador opere em prol do bem público, o que, por sua vez, deve implicar em um mecanismo mais apurado de controle, capaz de controlar essa atuação discricionária. [11]

Ora, somente um "Legislador Hércules", adaptando a expressão cunhada por Dworkin, seria capaz de prever todas as situações fáticas susceptíveis de acontecerem no mundo real, pelo que a discricionariedade administrativa se faz imprescindível em nosso sistema, assim como o seu controle, que toca, via de regra, ao Poder Judiciário. No que diz respeito a esse ponto, pode-se ter que a discricionariedade é conseqüência da inafastável impossibilidade da lei acompanhar as mudanças que acontecem na sociedade, conforme menciona a mestra cearense, Germana de Moraes. [12]

Certamente que não se pode prever em minúcias toda sorte de situações, justificando-se a existência dos atos discricionários. Igualmente certo é que o administrador não é perfeito, pelo que se faz necessário algum tipo de controle de seus atos, respeitando-se ainda, é claro, o âmbito de individualidade que o sistema de Tripartição dos Poderes lhe garante.


BIBLIOGRAFIA:

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007.

GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, FERNADEZ, Tomás-Ramon. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991. Cap. VII, item IV, n.°s 1 e 2: Potestades regradas e potestades discricionais. P. 388-399.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Ed. São Paulo: Forense, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, 1999.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das Leis. São Paulo : Saraiva,2000.


Notas

  1. Platão, pensador grego, ao desenvolver sua Teoria das Idéias, por volta de 400 anos antes do nascimento de Cristo, já contrapunha a realidade perfeita do mundo das idéias (inteligível) à realidade palpável do mutável mundo concreto (sensível), em que estamos inseridos.
  2. Contudo, devemos alertar que não se pode assumir, dentro de nosso ordenamento jurídico, que ditos ‘axiomas’ sejam supremamente absolutos, visto que muitos deles, antes tidos como inabaláveis, vem sofrendo certas flexibilizações, como, v. g., passou a ocorrer com a coisa julgada.
  3. Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Ed. São Paulo: Forense, 1998.
  4. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. (CR/1988).
  5. Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como Barão de Montesquieu, já alertava: "É uma experiência que todo homem que tem o Poder é levado a abusar do mesmo; vai até encontrar limites; para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição natural das coisas, o poder retenha o poder" (Cap. 4, L. XI). E acrescenta adiante em seu texto: "Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares" (Cap. 6, L. XI). (Do espírito das leis, São Paulo: Saraiva, 2000).
  6. Adotamos, como definição de Administração Pública, aquela dada pelo professor Hely Lopes Meirelles: "Administração Pública, portanto, é a gestão de bens e interesses qualificados da comunidade no âmbito federal, estadual ou municipal, segundo os preceitos do Direito e da Moral, visando ao bem comum.

    No Direito Público – do qual o Direito Administrativo é um dos ramos – a locução Administração Publica tanto designa pessoas e órgãos governamentais como a atividade administrativa em si mesma. Assim sendo, pode-se falar de Administração Publica aludindo aos instrumentos de governo como à gestão mesma dos interesses da coletividade.

    Como bem acentua Alessi, subjetivamente a Administração Publica é o conjunto de órgãos e serviços do Estado e objetivamente é a expressão do Estado agindo in concreto para satisfação de seus fins de conservação, de bem estar individual dos cidadãos e de progresso social". (Direito Administrativo Brasileiro. SP. Malheiros, 21ª Ed – 1996. p. 79).

  7. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 97.
  8. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 928.
  9. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 370. Gostaríamos, nesse ponto, tão-somente de reproduzir o alerta feito pelo ínclito Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, em seu Princípios Gerais de Direito Administrativo, de que não se podem confundir os atos da Administração com os atos Administrativos, vez que a Administração pratica inúmeros atos que não interessa considerar como administrativos, quer por serem regidos pelo Direito Privado, quer por serem meramente materiais ou por serem atos políticos. (Apud. Celso Antônio. p. 369).
  10. Segundo, mais uma vez, o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello: "Atos vinculados são aqueles que a Administração pratica sob a égide de disposição legal que predetermina antecipadamente e de modo completo o comportamento único a ser obrigatoriamente adotado perante situação descrita em termos de objetividade absoluta. Destarte, o administrador não dispõe de margem de liberdade alguma para interferir com qualquer espécie de subjetivismo quando da prática do ato" (Ob. Cit. Anterior. p. 360). Também de maneira excelente, Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernandes lecionam que: "O exercício das potestades reguladas - atos vinculados - reduz a Administração à constatação, (accertamento, no expressivo conceito italiano) da hipótese de fato legalmente definida de maneira completa e a aplicar em presença da mesma o que a própria lei determinou também exaustivamente. Existe aqui um processo aplicativo da lei que não deixa resquício a julgamento subjetivo algum, salvo à constatação ou verificação da hipótese mesma para contrastá-la com o tipo legal. A decisão em que consista o exercício da potestade é obrigatória em presença de tal hipótese (...). Opera a Administração aqui de uma maneira que poderia chamar-se de automática (...)". (GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução de Arnaldo Setti, São Paulo: RT, 1991, p. 389.)
  11. À frente de seu tempo e conectando a idéia de vinculação do Estado à Lei, com a questão dos atos discricionários, o saudoso mestre Miguel Seabra Fagundes, em magistral voto proferido pelo TJRN (Apelação Cível nº. 1.422 – RDA 14/52), que vem servindo de referência, há 60 anos, para aqueles que estudam a evolução do controle judicial do ato administrativo, já pregava: "A competência discricionária não se exerce acima ou além da lei, senão, como toda e qualquer atividade executória, com sujeição a ela. O que a distingue da competência vinculada é a maior mobilidade que a lei enseja ao executor no exercício, e não na liberdade da lei. Enquanto ao praticar o ato administrativo vinculado a autoridade está presa à lei em todos os seus elementos (competência, motivo, objeto, finalidade e forma), no praticar o ato discricionário é livre (dentro de opções que a própria lei prevê) – quanto à escolha dos motivos (oportunidade e conveniência) e do objeto (conteúdo). Entre praticar o ato ou dele se abster, entre praticá-lo com este ou aquele conteúdo (por exemplo: advertir apenas ou proibir), ela é discricionária. Porém, no que concerne à competência, à finalidade, à forma, o ato discricionário está sujeito aos textos legais como qualquer outro". (Apud. HELY LOPES – Direito Adm. Brasileiro, RT, 1989, p. 146).
  12. MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, 1999. p. 22.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Eloy H. S.. Apontamentos sobre a perfeição e o Direito. O caso da administração pública e dos atos discricionários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1967, 19 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11981. Acesso em: 25 abr. 2024.