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O título executivo extrajudicial e o contrato de seguro de pessoas

O título executivo extrajudicial e o contrato de seguro de pessoas

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A análise do direito material pertinente ao instituto do seguro demonstra que somente o contrato de seguro de vida detém os requisitos para o processo de execução.

BREVE RESUMO:

O artigo 585, III, do CPC arrolava como título executivo extrajudicial o contrato de seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade. Apesar da alteração introduzida pela Lei Federal nº 11.382/2006, que excluiu o contrato de seguro de acidente pessoal do inciso III do referido artigo, parte da doutrina passou a sustentar que, para o evento morte, tal contrato teria a mesma natureza do seguro de vida, tendo, por isto, força executiva. Contudo, a análise do direito material pertinente ao instituto do seguro demonstra que somente o contrato de seguro de vida detém os requisitos para o processo de execução. E o direito processual civil orienta que, para a adequação da via da execução extrajudicial, não basta a previsão legal do documento como título executivo, exigindo, ainda, os requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade.

SUMÁRIO:1. Da Introdução. 2. Do Histórico Legislativo Brasileiro. 3. Dos Títulos Executivos Extrajudiciais. 4. Dos Requisitos dos Títulos Executivos Extrajudiciais. 5. Da Desqualificação do Contrato de Seguro de Acidentes Pessoais como Título Executivo Extrajudicial. 6. Do Direito Material. 7. A Morte no Seguro de Acidentes Pessoais. 8. Da Invalidez por Acidente. 9. Da Conclusão.

PALAVRAS-CHAVE: Art. 585, III, CPC. Lei Federal nº 11.382/2006. Contrato de Seguro de Vida. Garantias. Título Executivo Extrajudicial. Contrato de Seguro de Acidentes Pessoais. Exclusão do rol de Títulos Executivos Extrajudiciais e Ausência de Requisitos para a Via Executiva.


1. DA INTRODUÇÃO

Nosso Código de Processo Civil arrolava, até recentemente, dentre os títulos executivos extrajudiciais, o seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade (artigo 585, inciso III, do CPC/73).

Mas, a partir da edição da Lei Federal nº 11.382/2006, tal inciso foi alterado, com a eliminação do contrato de seguro de acidentes pessoais do rol de títulos executivos extrajudiciais.

Por meio do presente trabalho, buscar-se-á examinar o direito material envolvido com suas várias nuances e, principalmente, os aspectos processuais que a matéria envolve.

Veremos que, apesar da inovação, parte de nossa doutrina, a nosso ver de forma equivocada, alimenta ainda a convicção de que, para o evento morte, o contrato de seguro de acidentes pessoais pode ser considerado título executivo extrajudicial.

Ademais disto, ocorreu-nos apreciar as hipóteses em que existam garantias adicionais no seguro de vida, situação em que, além do risco de morte ou de sobrevivência, há outros garantidos, como a invalidez por acidente e a morte acidental.


2. DO HISTÓRICO LEGISLATIVO BRASILEIRO

No ano de 1972, o então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid entregou ao Presidente da República projeto ao Novo Código de Processo Civil e na Exposição de Motivos do referido documento, dentre as mudanças propostas, o Capítulo IV trouxe o plano de reforma do Livro II (Do processo de Execução), que posteriormente, como sabemos, foi alvo de necessárias e importantes reformas.

No item ‘b’ deste Capítulo IV foram descritas, à época, quais seriam as inovações do processo de execução, novidades estas que, diga-se, seguiam as tendências do Direito Francês, Italiano, Português, Alemão e Austríaco.

Desta forma, seguindo as idéias dos grandes juristas internacionais, como por exemplo Liebman, houve, com a edição do Código de Processo Civil, que passou a viger a partir do dia 1º de janeiro de 1974, a reunião dos títulos executivos judiciais e extrajudiciais, em uma só seção dentro do Código de Processo, a fim de que fosse dada maior praticidade ao processo de execução.

Tal fato decorreu, pois, de acordo com a sistemática do Código de Processo Civil de 1939, os títulos executivos extrajudiciais davam ensejo à ação executiva, que era um misto de execução e processo de conhecimento, procedimento diferente da execução de sentença. Esta, dizia-se, tinha força executória; aqueles, força executiva. Com a unificação da execução, desapareceu a distinção, ambos tendo força executória, não existindo, mais, diferenciação terminológica. Cabe aqui um registro histórico, na elaboração do Código de Processo Civil de 1939 havia uma proposta para que os contratos de seguros, de qualquer espécie, fossem títulos executivos extrajudiciais. Mas, durante a tramitação, optou-se apenas pelos seguros de vida e acidentes pessoais.

No que tange ao contrato de seguro, passou a dispor o artigo 585 do CPC de 1974:

"Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:

...

III – os contratos de hipoteca, de penhor, de anticrese e de caução, bem como de seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade."

Para Vicente Greco Filho [01], a inserção destas duas modalidades de seguro no rol de títulos executivos extrajudiciais foi para "privilegiar a situação mais grave para o beneficiário, qual seja, a morte ou a incapacidade do segurado".

Conforme diz o Professor Maurício Giannico [02], em razão do problema que o Poder Judiciário enfrenta com a falta de celeridade processual, diversos projetos de leis foram aprovados na ânsia de tentar solucionar tais questões. Dentre eles está a Lei nº 11.832/2006, que alterou substancialmente a sistemática da liquidação e execução de títulos judiciais.

Assim, foi suprimido do rol de títulos executivos extrajudiciais o contrato de seguro de acidentes pessoais, ficando apenas os contratos de seguro de vida, passando o inciso III do artigo 585 a conter a seguinte redação:

"Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:

...

III – os contratos garantidos por hipoteca, penhor, anticrese e caução, bem como os de seguro de vida;"

Teria, pois, o nosso Legislador acertado ao modificar, da forma que o fez, o inciso III do artigo 585 do nosso Diploma Processual Civil?

É o que examinaremos ao longo deste trabalho.


3. DOS TÍTULOS EXECUTIVOS EXTRAJUDICIAIS

Antes de adentrarmos no estudo específico dos títulos executivos extrajudiciais e sua relação com o contrato de seguro de pessoas, torna-se necessário definir-se alguns conceitos utilizados na ciência processual.

Inicialmente, tem-se o conceito de título executivo. A maior parte da doutrina o define como sendo uma representação documental típica de crédito líquido, certo e exigível, ou seja, trata-se de um documento do qual resulta a exeqüibilidade de uma pretensão.

Dessa forma, de uma maneira bastante simplória, tem-se que, por meio do título executivo, o credor adquire o direito de executar o patrimônio do devedor, ou de um terceiro, para obter a satisfação efetiva do seu direito.

Conforme rezava o Código de Processo Civil:

"Art. 583 - Toda execução tem por base título executivo judicial ou extrajudicial"

"Art. 586 – A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título líquido, certo e exigível."

Após as alterações introduzidas pela Lei 11.382/2006, o art. 583 foi revogado e o art. 586 passou a ter a seguinte redação:

"Art. 586 – A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível. "

Dessa forma, para que se possa analisar as características de certeza, liquidez e exigibilidade, faz-se necessário tecer alguns comentários acerca da inclusão da palavra "obrigação" no artigo citado acima.

Conforme Humberto Theodoro Júnior:

"De fato, quando se encara o título como prova (documento) não tem sentido atribuir-lhe as cogitadas qualificações. O que se imagina certa e líquida é a prestação que a obrigação impõe ao devedor realizar em benefício do credor. A prova, constante do título, não é líquida, certa e exigível. Naturalmente é a obrigação nele documentada que pode ser certa ou incerta, líquida ou ilíquida, vencida ou ainda não vencida." [03]

Percebe-se, portanto, que, para que haja execução, exigem-se dois requisitos, quais sejam, o inadimplemento do devedor e o título executivo, conforme o art. 580 CPC:

"Art. 580 – A execução pode ser instaurada caso o devedor não satisfaça a obrigação certa, líquida e exigível, consubstanciada em título executivo."

Conforme reza, ainda, o Código de Processo Civil:

"Art. 585 - São títulos executivos extrajudiciais:

I - a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque;

II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas; o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores;

III - os contratos garantidos por hipoteca, penhor, anticrese e caução, bem como os de seguro de vida;

IV - o crédito decorrente de foro e laudêmio;

V - o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio;

VI - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, Estado, Distrito Federal, Território e Município, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei;

VII - todos os demais títulos, a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva."

Destaca-se que, desde a Idade Média, tornou-se necessária à concessão, para certos títulos de créditos, de eficácia autônoma e pronta exigibilidade, dispensando-se o processo de conhecimento para a demonstração de sua existência, ou seja, por meio dos títulos executivos extrajudiciais citados acima se tem a autorização imediata para instauração da execução, independentemente de prévio processo de conhecimento.

Antes de analisarmos a exclusão do seguro de acidente pessoais do inciso III do artigo 585 do CPC e a permanência do seguro de vida, relembraremos os requisitos dos títulos executivos extrajudiciais.


4. DOS REQUISITOS DOS TÍTULOS EXECUTIVOS EXTRAJUDICIAIS

Uma premissa fundamental para o nosso estudo é a de que, para ser título executivo extrajudicial, o documento deve estar arrolado como tal pela Lei Processual Civil ou legislação especial.

Conforme José Frederico Marques [04] nos ensina, em sua obra Manual de Direito Processual Civil, "título executivo é a denominação dada à prestação típica provida de força executiva, quando certa, líquida e exigível".

Diz que se trata de prestação típica, pois os títulos executivos extrajudiciais estão dispostos por lei e, assim, podem ser exigidos pelas vias processuais da execução forçada, inadmitindo discussão acerca de sua natureza.

Ao tratar "Dos Requisitos Necessários Para Realizar Qualquer Execução", Araken de Assis [05] disserta sobre a "Função dos pressupostos necessários da execução", observando que "Deve-se à enérgica influência de Liebman, tão intensa no CPC em vigor, a adoção da idéia de pressupostos necessários, que serve de título a este Cap. III do Livro II.

Leciona, ainda, que:

"Esses pressupostos são dois, organizados em ordem invertida, e correspondem àqueles requisitos prático e legal defendidos pelo processualista, também chamados de substanciais. Tratam-se do inadimplemento (arts. 580 a 582) e do título (arts. 583 a 586). É certo, do nosso ponto de vista, que tais pressupostos não condicionam, realmente, a instauração da relação processual executiva, nem constituem questões de processo. Chegou a tal conclusão Marcelo Lima Guerra, relativamente ao inadimplemento, elemento que respeita ao mérito da ação executiva. Desse modo, há que se lamentar, também neste passo, o desacerto de um Código eleger certa doutrina, a despeito de falsa ou, no mínimo, passível de intensa crítica.

Feita a lei, no entanto, cabe ao intérprete buscar a exata localização dos improváveis pressupostos na teoria geral do processo.

Ora, de acordo com Liebman, o título funciona como condição necessária e suficiente da execução, porque acumula tamanha certeza, quando é imprescindível, por si mesmo, sem o auxilio de outros meios e de outras investigações, para atuar coativamente o direito do credor. Daí, a antiga parêmia nulla executio sine titulo. Nada obstante, nem sempre é o título suficiente, pois o crédito pode se subordinar a condição, termo ou contraprestação, ou seja, à ocorrência de inadimplemento, situação de fato que a execução implica conseqüências muito graves ao patrimônio do executado, motivo por que ela se subordina a rigorosas condições de admissibilidade." (p. 117)

Nesta perspectiva, e passando ao plano da teoria geral do processo, o inadimplemento e o título constituem as condições da ação executiva. Aliás, Mandrioli já chamara o título de expressão integral das condições da tutela executiva. Como as condições são três – possibilidade do pedido, interesse e legitimidade: art. 267, VI -, o descumprimento voluntário da obrigação constante do título (art. 580, parágrafo único) corresponde à categoria do interesse; o título à da possibilidade do pedido formulado." (p. 118)

Na hipótese do contrato de seguro, pode-se afirmar que, pela redação do inciso III anterior à Lei 11.382/2006, eram considerados, em tese, títulos executivos extrajudiciais o "seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade.", sendo que, a partir da referida alteração legislativa, apenas o "seguro de vida" passou a ser tipificado como título executivo extrajudicial.

Entretanto, os títulos executivos extrajudiciais, para que tenham força executiva, têm que estar envoltos de características que, sem elas, apesar de estarem dispostos em lei, não podem ser alvo de execução forçada, conforme preconizado no artigo 618, I, do Código de Processo Civil. São elas: liquidez, certeza e exigibilidade.

De fato, o processo de execução não tem conteúdo cognitivo, motivo pelo qual não há execução sem título, ou seja, sem documento de que resulte certificada a tutela que o direito concede ao interesse do credor.

Assim, para que o título constitua ao credor o direito subjetivo à execução forçada, ou seja, o direito de ação, não basta a sua denominação legal, é indispensável que, por seu conteúdo, se revele um título certo, líquido e exigível (artigo 586, "caput", do CPC [06]).

Referidos requisitos indispensáveis do título com força executiva, são definidos por Carnelutti, em "Istituzioni del Processo Civile Italiano", v. I, 5ª ed., nº 175, p. 164:

"... é certo quando il titolo non lascia dubbio intorno alla sua esistenza; liquido quando il titolo non lascia dubbio intorno al suo oggeto; esigibile quanto il titolo non lascia dubbio intorno alla sua attualitá."

É certo que ocorre a certeza em torno de um crédito quando, em face do título, não há controvérsia sobre a sua existência; ocorre a liquidez, quando é determinada a importância da prestação, ou seja, o quantum; e ocorre a exigibilidade, quando o seu pagamento não depende de termo ou condição, nem está sujeito a outras limitações.

Comecemos pela certeza. O título executivo deve ser certo. Nele deve estar assinalada a prestação típica, tanto em seu conteúdo, quanto em sua forma.

Por essa característica, conclui-se que não deve haver dúvida quanto à existência jurídica da obrigação insatisfeita, ou seja, deve se presumir a existência do crédito.

"Esta característica refere-se à existência da prestação que se quer ver realizada. O Código Civil revogado trazia regra que determinava este elemento, dizendo considerar-se líquida a obrigação que fosse "certa, quanto à sua existência" e, determinava em relação ao seu objeto (art. 1533). Embora a regra não tenha sido repetida no Código Civil de 2002, a compreensão da característica permanece a mesma. A certeza diz respeito à ausência de dúvida quanto à existência da obrigação que se pretende exigir" [07]

Há que se destacar que essa certeza não é totalmente definitiva, pois pode acontecer, no curso do processo, que ela seja extinta ou seja declarado que ela nunca existiu. Porém, quando da sua primeira análise, o magistrado deve constatar a certeza do título, ou melhor, da obrigação.

A exigibilidade, de acordo com José Frederico Marques [08], "...se trata de elemento externo ou condição de executividade: o título líquido e certo somente adquire força executiva, quando incondicionado e, portanto, exigível".

A exigibilidade diz respeito ao fato da obrigação já estar vencida e, conseqüentemente, poder ser cobrada pelo credor. Dessa forma, diz respeito à inexistência de impedimento quanto a sua eficácia, ou seja, ausência de termo, condição ou obrigação já cumprida, podendo ser cobrada de imediato.

"É óbvio que a obrigação ainda não exigível não pode ser coativamente imposta, nem fora do processo, nem dentro dele. Se uma obrigação sujeita a termo ainda não ultrapassou a ocasião indicada, pode-se ajuizar demanda para ver reconhecida a sua existência (ação declaratória), mas jamais se conseguirá exigir a sua satisfação pela via judicial. O mesmo se dirá com relação às condições suspensivas, aos encargos ou mesmo à contraprestação devida em contratos sinalagmáticos." [09]

Por fim, temos a liquidez que, para o tema aqui proposto, é a característica mais importante, visto que a prestação exigida tem de ser determinada quanto ao valor e respectivo objeto, o que, registre-se, conforme se verá adiante, pode não se encontrar presente nos contratos de seguro em relação às coberturas por invalidez.

A característica da liquidez exige que a obrigação possa ser individualizada ou determinada, ou seja, não se pode exigir de alguém que cumpra algo que não se sabe o que é, portanto, a liquidez diz respeito à exata definição daquilo que é devido e de sua quantidade.

Nesse momento, para o foco desse trabalho, é importante mencionar um trecho do livro "Nova Sistemática da Execução do Título Extrajudicial e a Lei 11.382/06":

"O título extrajudicial, por sua vez, não pode ser ilíquido, eis que falta a característica de sua liquidez, nesse caso, comprometeria, por conseguinte, a própria certeza da existência do crédito" [10]

Dessa forma, conclui-se que o título ou a obrigação tem que revelar suficiente precisão.

Portanto, diante da imposição legal de que o título seja sempre líquido, certo e exigível, é necessário que tais requisitos resultem do exame do título e não estejam a reclamar apuração de fatos outros pelo Juízo.

Nesse sentido, posiciona-se a jurisprudência:

"Não se revestindo o título de liquidez, certeza e exigibilidade, condições basilares exigidas no processo de execução, constitui-se em nulidade, como vício fundamental; podendo a parte argüi-la, independentemente de embargos do devedor, assim como pode e cumpre ao juiz declarar, de ofício, a inexistência desses pressupostos formais contemplados na lei processual civil" (RSTJ 40/447)

"A nulidade da execução por falta de título pode e deve ser decretada de ofício" (RT 711/183)

Em suma, para ter força executiva, o título, previsto em Lei, deve conter os requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade.


5. DA DESQUALIFICAÇÃO DO SEGURO DE ACIDENTE PESSOAIS COMO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL

Mesmo a partir da exclusão do contrato de seguro de acidentes pessoais do rol de títulos executivos extrajudiciais, a doutrina diverge quanto a sua força executiva, entendendo alguns que o seguro de acidentes pessoais continua sendo tratado como título extrajudicial e outros que tal seguro foi definitivamente excluído do rol do 585 CPC, opinião com a qual compartilhamos.

Na verdade, tal limitação à força executiva dos contratos de seguro foi alvo de críticas por parte de diversos doutrinadores, que sustentam que a garantia morte na apólice de APC deveria continuar expressamente descrito em lei.

Como bem frisou Humberto Theodoro Júnior, em sua obra A Reforma da Execução do Título Extrajudicial, "O primitivo inciso III do art. 585 conferia força executiva aos contratos de seguro de vida e de acidentes pessoais de que resultasse morte ou incapacidade. Com a reforma, a força executiva ficou limitada ao contrato de seguro de vida. Perdeu tal eficácia, portanto, o contrato de acidentes pessoais. Deve-se ponderar, todavia, que se o contrato de acidente cobre o risco de morte, não pode deixar de ser tratado, para fins executivos, como um seguro de vida. Mesmo, portanto, após a supressão efetuada pela Lei nº 11.382, de 06.12.2006, continua, a meu ver, o beneficiário do seguro de acidente cujo sinistro acarretou a morte do segurado com o direito de exigir o pagamento da respectiva indenização por via de execução forçada" [11]

Não comungamos do mesmo entendimento do ilustre Mestre, pois, como sustenta grande parte da doutrina, há uma rígida taxatividade sobre os títulos executivos, de tal forma que não se pode pretender conferir tal qualidade a outros tantos documentos que não os previamente estabelecidos pela lei.

Neste sentido, Cândido Rangel Dinamarco [12] explica que "todo estudo sobre os títulos executivos em espécie deve partir da regra de taxatividade insculpida na ordem jurídica como firme dogma, sendo absoluta e inalienável a exclusiva competência do legislador para instituir títulos executivos. O elenco dos títulos executivos é obra exclusivamente sua, que aos juízes se proíbe retocar, alterar, ampliar".

Em consonância com o mesmo entendimento, Hugo Leonardo Penna Barbosa, Humberto Dalla Pinho e Márcia Garcia Duarte [13] sustentam que:

"É necessário frisar que a escolha dos títulos extrajudiciais decorre de eleição do legislador. Não se cria título extrajudicial a não ser por lei federal e compete apenas ao legislador escolher os documentos que serão dotados de eficácia executiva. Nem se admite a interpretação extensiva ou analógica do elenco posto no direito positivo.

Cumpre lembrar que, embora o nascimento dos títulos executivos esteja diretamente relacionado à vontade das partes, é preciso que o ato ou documento se enquadrem no modelo taxativamente prescrito pela lei (art. 585 CPC), sendo absolutamente ineficaz a cláusula executiva instituída voluntariamente em qualquer contrato ou negócio, se não configurar uma das situações fáticas descritas pela lei como caracterizadoras do título executivo, sendo certo ainda que apenas a lei federal pode instituir títulos executivos.

Significa dizer que um contrato de seguro de acidentes pessoais, por exemplo, não mais autoriza seu detentor a ingressar com o processo de execução, devendo submeter-se, previamente a uma fase cognitiva ou, na melhor das hipóteses, valer-se da ação monitória prevista no artigo."

Aliás, não há se como sustentar a classificação do contrato de seguro de acidente pessoal como título executivo extrajudicial se o Legislador expressamente o excluiu do referido rol. Vale dizer, se a intenção do Legislador (interpretação autêntica) foi a de excluir determinado documento do rol de títulos executivos extrajudiciais, não pode o intérprete atribuir ao excluído força executiva.

Sobre o tema, tem decidido nossa Jurisprudência:

"SEGURO DE VIDA. INVALIDEZ PERMANENTE. EXECUÇÃO. LEI NOVA. CERCEAMENTO DE DEFESA PRESCRIÇÃO.

1 – O contrato de seguro de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade, antes da reforma procedida pela L. 11.382/06, era título executivo extrajudicial (CPC, art. 585, III, redação anterior). Se ajuizada a execução antes da entrada em vigor da referida lei, tem-se como válido instruída com referido título." (TJDF - Apelação 2006.011.102152-9 - Julgamento: 05/09/2007).

"O Artigo 585 do Código de Processo Civil, com a redação que lhe foi dada pela Lei 11.382/2006, ao tratar no seu inciso III, dos títulos executivos extrajudiciais, concede força executiva apenas ao contrato de seguro de vida. Na redação anterior do referido dispositivo, além do seguro de vida, estendia-se a força executiva ao contrato de seguro de acidentes pessoais que resultasse morte ou incapacidade.

Por sua vez, o inciso VIII do citados art. 585, reprisando a redação anterior, admite outros títulos executivos judiciais desde que haja expressa disposição de lei. Em se tratando de seguros, deve-se buscar a expressa disposição legal do Decreto-Lei n.73/1966, que dispõe sobre o Sistemas Nacional de Seguros Privados. O art. 27 do aludido decreto, dispõe o seguinte:

"Art. 27. Serão processadas pela forma executiva as ações de cobrança dos prêmios dos contratos de seguro."

Portanto, na legislação específica há o reconhecimento da força executiva dos contratos de seguro apenas com relação específica à cobrança de prêmios.

Assim sendo, é possível concluir, à luz do Código de Processo Civil e da legislação, que o contrato de seguro terá força executiva apenas nas hipótese de seguro de vida – ou de acidentes pessoais com morte ou incapacidade, na redação anterior da lei – ou quando envolver a cobrança específica de prêmios devidos pelos segurados. Nenhuma dessas hipóteses está abrangida pelo caso concreto, que trata de seguro por roubo e furto de veículo.

Não obstante a existência de precedentes jurisprudenciais que admitem outras modalidades de contrato de seguro como título executivo extrajudicial, por força do que dispõe o inciso VIII (anterior inciso VII) do art. 585 do CPC, considero a melhor solução para a hipótese sob o exame a que considera títulos executivos extrajudiciais apenas aqueles expressamente contemplados pelas normas legais de caráter geral ou especial.

Por tais fundamentos, voto no sentido de negar provimento ao recurso." (TJRJ - Apelação Cível n. 2007.001.13728 – Julgado em 31.05.2007).

"Embargos à Execução – Discussão sobre a executibilidade da Apólice de seguro de Acidentes Pessoais – Efeito Suspensivo – Concessão – Necessidade"

Considerando que a nova redação dada ao art. 585 do CPC não inclui o seguro de acidentes pessoais no rol dos títulos executivos extrajudiciais e o risco de dano irreparável com o prosseguimento da execução promovida por beneficiário da justiça gratuita, presentes os requisitos necessários à outorga de efeito suspensivo da execução aos embargos

"(...) Presente, outrossim, a relevância da fundamentação, pois o seguro de acidentes pessoais não foi incluído na nova redação dada ao artigo 585, que especifica somente o seguro de vida como título extrajudicial. (...)" (TJSP – 30ª Câmara da Seção de Direito Privado - AI nº 1.116.232-0/5 – 30ª Câmara - Rel. André Neto – J. 08/08/2007)

"Agravo de instrumento – Contrato de seguro de acidentes pessoais – Execução – Contrato que foi retirado do rol dos títulos executivos extrajudiciais – Exegese do art. 585, III, do CPC com a redação dada pela Lei 11.382/06 – Ausência de liquidez, certeza e exigibilidade do título – Carência de força executiva reconhecida – Agravo provido." (TJSP – 33ª Câmara – AI nº 1.140.983-0/3 – Relator Desembargador Cristiano Ferreira Leite – j. 12.12.2007, v.u.).

"Embargos à execução. Execução de título executivo extrajudicial. Seguro de vida. Ausência de liquidez, certeza e exigibilidade. Extinção do processo.

Verificando-se a incerteza, iliquidez ou inexigibilidade, o juiz não pode permitir o desenvolvimento do processo, em virtude da ausência dos requisitos exigidos para o título executivo.

Trechos do voto do Relator do acórdão:

Observa-se dos autos que o apelante pretende receber a indenização de seguro de vida que firmou com o apelado, sob a alegação de que, em razão do acidente que lhe ocasionou fratura no joelho esquerdo, faz jus ao complemento de indenização no valor de R$ 4.610,00, pois, o que efetivamente recebeu está aquém do contratado na apólice de seguro de vida.

Apesar das razões do apelante, estas não merecem prosperar.

Dispõe o art. 586, caput, do CPC: "A execução para cobrança de crédito, fundar-se-á sempre em título líquido, certo e exigível".

É lição cediça que o título é certo quando não há controvérsia quanto à existência do crédito; líquido quando determinado o seu valor e exigível quando a dívida estiver vencida.

No caso em apreço, razão assiste ao julgador de primeiro grau, porque o título não é certo, ante a controvérsia acerca da existência do crédito; não há liquidez em razão do valor ser indeterminado, já que os fatos são controversos; e, por fim, não há exigibilidade, pois, não se sabendo o valor do crédito, não há como se afirmar o seu vencimento.

Diante dos fatos apresentados, o apelante pretendendo receber a complementação da indenização referente ao seguro de vida deverá manejar ação própria, pois o mencionado contrato firmado entre as partes, de fato, não possui eficácia adequada para a tutela executiva.

Demais disso, verificando a incerteza, iliquidez ou inexigibilidade do título, o juiz não pode permitir o desenvolvimento do processo. Ao contrário, deve extingui-lo, como procedido pelo juízo a quo." (TJRO – 2ª Câmara Cível – Relator Desembargador Miguel Mônico Neto – j. 04.07.2007, v.u.).

Dessa forma, por não estar mais previsto em lei como título executivo extrajudicial, o contrato de seguro de acidentes pessoais não pode servir de base para o ingresso de execução.

É preciso ressaltar que, sem exceção, não existe título executivo extrajudicial, que não previsto expressamente em Lei Federal.

De fato, o artigo 585 do Código de Processo Civil indica quais são os títulos executivos extrajudiciais, arrolando-os expressamente nos incisos de I a VII, à eles acrescendo "todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva" (inciso VIII do mesmo artigo).

E pode-se mencionar, apenas a título exemplificativo, algumas leis especiais que garantem força executiva aos títulos por elas instituídos, desde que atendidos os requisitos nelas estabelecidos.

É, pois, o que ocorre com a letra de câmbio e a nota promissória (Decreto nº 2.044/08, artigos 49 e 56 e Decreto nº 57.663/66 – Lei Uniforme de Genebra – artigos 43 em diante), com a duplicata (Lei nº 5.474/68, artigo 15), com o cheque (Lei nº 7.357/85, artigo 47), com os títulos de crédito comercial, industrial e à exportação (Lei nº 6.840/80, artigo 5º; Decreto-Lei n. 413/69, artigo 41; Lei n. 6.313/75, artigo 3º), com os títulos de créditos rurais (Decreto-Lei n. 167/67, artigo 41), com o contrato de câmbio (Lei n. 4.728/65, artigo 75 – Mercado de Capitais), com o prêmio de contrato de seguro (Decreto-Lei n. 70/66, artigo 27), com a certidão da dívida ativa (Lei n. 6.830/80, artigos 1º e 2º), com a hipoteca (artigo 1.501 do Código Civil/2002; artigo 826 do CC/1916); com a cédula de produto rural (Lei n. 8.929/94, artigo 4º, § 2º), com o acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, homologado no juízo competente, independentemente de termo e o acordo firmado pelas partes, por instrumento escrito, referendado pelo órgão competente do Ministério Público (Lei n. 9.099/95, artigo 57 e parágrafo único).

É interessante notar que, nos termos da Lei Federal n. 10.931/2004, em seu artigo 28, "A cédula de crédito bancário é um título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível...". Todavia, dependendo do crédito que tal título representa, poderá ele de fato ter força executiva (como no caso do mútuo e da confissão de dívida, por exemplo), ou não. É que, se ela representar uma abertura de crédito em conta corrente, não disporá o documento de todos os requisitos para a via da execução, conforme jurisprudência consolidada em duas súmulas pelo Superior Tribunal de Justiça:

Súmula 233 do STJ: "O contrato de abertura de crédito, ainda que acompanhado de extrato de conta-corrente, não é título executivo."

Súmula 247 do STJ: ‘O contrato de abertura de crédito em conta-corrente, acompanhado de demonstrativo do débito, constitui documento hábil para o ajuizamento da ação monitória."

A orientação jurisprudencial acima mencionada é útil para demonstrar que a adequação da via executiva exige não só a previsão legal do título como executivo extrajudicial, mas também o atendimento dos requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade (artigo 586 do CPC).

No caso do contrato de seguro de acidentes pessoais, o Legislador, acertadamente, de acordo com o que será melhor demonstrado ao final deste trabalho, resolveu excluí-lo do rol dos títulos executivos extrajudiciais.

Portanto, sem razão, "data maxima venia, o nobre Prof. Humberto Theodoro Júnior, quando afirma que o contrato de seguro de acidentes pessoais, para o evento morte, teria natureza de seguro de vida, sendo, por tal razão, título executivo extrajudicial.

Ora, se é preciso, antes, discutir-se a natureza jurídica de um documento, para incluí-lo ou não no rol dos títulos executivos extrajudiciais, só por isso já se evidencia a ausência de sua força executiva, pelo simples fato de carecer-lhe do requisito essencial da certeza.

Mais razoável seria sustentar-se a via monitória, para a cobrança da cobertura para o evento morte do contrato de seguro de acidentes pessoais, uma vez que, neste caso, pretenderia o titular do direito, nos termos do artigo 1.102a do Código de Processo Civil, "com base em prova escrita sem eficácia de título executivo" (contrato de seguro de acidentes pessoais), "pagamento de soma em dinheiro" (o exato valor da cobertura securitária).


6. DO DIREITO MATERIAL

Já vimos que a lei autoriza a via executiva para seguro de vida. Comecemos, então, por afirmar que o seguro de vida tem três, e apenas três, modalidades, segundo uníssona doutrina, nacional e estrangeira: o seguro de vida para o caso de morte; o seguro de vida para o caso de sobrevivência e o seguro misto, em que as duas primeiras modalidades coexistem num só contrato. Portanto, a via executiva somente se aplica a essas hipóteses, e não a outras, ainda que, dentro de um seguro de vida, sejam previstas garantias para outros seguros, prática bastante comuns no Brasil e no mundo.

Com efeito, sob a denominação de seguro de vida são comercializados produtos que, além da garantia de seguro de vida para o caso de morte, seja natural ou acidental, contêm também garantia específica para morte acidental, denominada indenização especial por acidente, e para invalidez por acidente, denominada invalidez permanente por acidente. Diga-se que a prática é autorizada, como se retira do Art. 10 da Circular 302/05 da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, e é reconhecida pela doutrina. Nesse sentido, Ernesto Tzirulnik e outros [14]:

"Como se sabe, o seguro de vida e o de acidentes pessoais são comercializados, costumeiramente, em conjunto, sendo contratados através de um único documento, o que facilita, ainda mais, a confusão. Às vezes, o seguro de acidentes pessoais é contratado como sendo uma garantia adicional do seguro de vida. Em outras ocasiões, os dois seguros vêm tratados como garantias independentes, expedindo-se apólices específicas para cada um deles."

Os mesmos autores acima referidos, em seguida ao texto transcrito, complementam que [15]:

"Qualquer que seja a forma de contratação, serão sempre dois seguros, ainda que instrumentalizados em um único documento. A propósito, a Circular SUSEP n° 17/92, em seu art. 3°, estabelece que às garantias de indenização especial por acidente (IEA) e de invalidez permanente total ou parcial por acidente (IPA) aplicam-se as "Normas de Acidentes Pessoais", numa evidente demonstração de que, embora sob a denominação de garantias adicionais, a hipótese é de seguro de acidentes pessoais."

A comercialização conjunta de diferentes seguros ocorre também no exterior, como na Espanha, e o tratamento que a questão recebe da doutrina de lá é coincidente com o que vimos aqui [16]:

"Al añadirse al contrato de seguro de vida las coberturas accesorias de invalidez y/o accidente, el mismo no pierde su identidad formal, continuando como un único contrato, con una prima global sin diferenciar por el conjunto de riesgos asumidos por el asegurador. Ahora bien, estos riesgos no se asimilan al seguro de vida, sino que tienem su própria autonomia, en la configuración del riesgo y en las consecuencias que el mismo comporta."

E, mais adiante, complementa:

"El seguro de accidentes puede contratarse de forma independiente, o bien como complementario de otros seguros.

(...)

Igualmente el riesgo de accidentes aparece como complementario de los seguros sobre la vida, hasta el puento de que la legislación de control, aun cuando limita a este ramo, considera admisible que aseguren como riesgos complementarios ‘los de invalidez permanente, invalidez temporal, muerte por accidente, muerte por accidente de circulación o cualquier modalidad que tenga por objeto cobrir los riesgos que puedan afectar a la existência o integridad corporal del asegurado`.

Em estos casos hemos de entender que em la hipótesis de que por ser el riesgo accesorio haya de estimarse que nos hallamos ante um único contrato, habrá de aplicarse al riesgo de accidentes su normativa própria."

Disto resulta que, quando num contrato denominado de seguro de vida existirem outras garantias, como de indenização especial por acidente e de invalidez permanente por acidente, não têm os beneficiários ou segurados a via executiva para pleiteá-las, por não caracterizarem seguro de vida, este que, como vimos, admite apenas três modalidades: para o caso de morte; para o caso de sobrevivência e o misto.

O fato é que andou bem o legislador ao limitar a via executiva ao seguro de vida, excluindo o seguro de acidentes pessoais, seja em relação à morte, seja em relação à invalidez.


7. A MORTE NO SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS

Vimos que Humberto Theodoro Junior defende que a morte do segurado no seguro de acidentes pessoais autorizaria a via executiva. O entendimento do eminente jurista parece estar baseado no fato de que, nesta hipótese, estariam presentes os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez, assim e tal qual como no seguro de vida.

Há diferenças, todavia, entre seguro de vida e seguro de acidentes pessoais, e elas são várias.

Ao tratar do tema, assinalam Ernesto Tzirulnik e outros que:

"Apesar das semelhanças existentes, os dois seguros não se confundem, tendo cada um deles conceitos, princípios e normas próprios, mesmo quando se trata da garantia para o caso de morte no seguro de acidentes pessoais. Assim, no seguro de vida, o risco segurado é a duração da vida humana (sobrevivência, morte), enquanto que no seguro de acidentes o risco é a lesão corporal por um acidente que tenha por consequência a morte ou invalidez do segurado. Na garantia de morte, o seguro de vida tem maior abrangência, pois a garantia independe da causa da morte. Seja ela natural ou acidental, estará garantido o segurado. Nesse aspecto, mais restrito o seguro de acidentes, vez que a morte deve ter causa violenta (...)."

Para o escopo deste trabalho, todavia, deteremo-nos em uma dessas diferenças: a diferença de amplitude de garantia do evento morte.

Como se retira do texto doutrinário acima, no seguro de vida garante-se a morte do segurado, seja ela natural ou acidental, e seja qual for o acidente. No seguro de acidentes a garantia está, como é cediço, adstrita à morte acidental. Mas, destaque-se, por importante: não é todo o acidente que está coberto, e isto, a nosso ver, retira do seguro de acidentes pessoais para o caso de morte o requisito da certeza, reclamada aos títulos executivos.

Do "Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa" colhe-se o conceito de acidente:

"1. Acontecimento casual, fortuito, imprevisto. 2. Acontecimento infeliz, casual ou não, e de que resulta ferimento, dano, estrago, prejuízo, avaria, ruína, etc."

Mas, para fins de contrato de seguro, acidente tem conceituação própria. Eis sua definição, determinada pela Resolução n° 117/04, do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP:

"Acidente pessoal: o evento com data caracterizada, exclusivo e diretamente externo, súbito, involuntário, violento, e causador de lesão física, que, por si só e independente de toda e qualquer outra causa, tenha como conseqüência direta a morte, ou a invalidez permanente, total ou parcial, do segurado, ou que torne necessário tratamento médico (...)."

Assim, somente o evento que se enquadre no conceito acima será considerado acidente para fins de contrato de seguro de acidentes pessoais.

Sobre o tema, pronuncia-se J. C. Moitinho de Almeida [17]:

"A noção de acidente para efeitos de delimitação do risco carece de formulação precisa. Na doutrina e nas apólices define-se em geral o acidente como a lesão corporal determinada pela acção violenta e súbita de uma causa externa, razão da morte ou da incapacidade permanente ou temporária do segurado. Temos, assim, como primeiro requisito do conceito de acidente que a ofensa deva ser corporal, incidir sobre o corpo humano, quer como uma lesão física, quer como uma lesão mental, quando relacionada com uma diminuição física. A lesão corporal deve ser determinada por uma causa externa, ao contrário da doença, que resulta de um processo patológico formado no interior do corpo. O que interessa é que a causa determinante ou adequada se situe externamente, merecendo cobertura do seguro os efeitos de uma infecção causada por injecção, da ingestão de um líquido corrosivo, da intoxicação por gás, de afogamento, etc.

(...)

Como princípio, atender-se-á à causalidade adequada, e subsistindo várias causas com essa natureza, atender-se-á à primeira, se foram dependentes entre si (causa causae est causa causati), ou à que imediatamente preceder a lesão, na falta de qualquer dependência. Assim, tratando-se de queda provocada por uma hemorragia cerebral, esta é a verdadeira causa, ficando, portanto, excluída a cobertura do seguro, mas no caso de uma pneumonia resultante de imobilização forçada causada por um acidente já a solução terá de ser outra.".

Vê-se, então, que a caracterização de acidente para fins de contrato de seguro demanda um processo investigativo que impede, desde logo, a certeza de sua ocorrência.

Não basta que tenha havido um acidente, sendo necessário perquirir sobre as circunstâncias em que o mesmo se deu.

Aliás, quanto ao seguro de acidentes pessoais, basta verificar que, em suas condições gerais, imputa-se ao segurado ou aos beneficiários a obrigação de provar a ocorrência do "evento e de suas circunstâncias".

Veja-se a notável diferença: para o seguro de vida, basta a prova da morte; para o seguro de acidentes pessoais, a prova da morte e a prova do acidente são insuficientes, porque necessária a demonstração de que o acidente que determinou a morte enquadra-se no conceito de acidente estabelecido no contrato.

Poder-se-ia dizer que, para determinadas hipóteses, essa prova seria de fácil produção. Assim, a prova da morte – pela certidão de óbito - e a prova de que ela decorreu de um acidente automobilístico – feita por um boletim de ocorrência policial – poderia levar à certeza de caracterização da morte acidental. Mesmo que assim fosse, necessário registrar que não se pode exigir do legislador que desça às minúcias de fixar que um determinado contrato é título executivo apenas para algumas hipóteses, não sendo para outras.

Mas, neste ponto, outra peculiaridade do seguro de acidentes pessoais merece atenção. O risco, no seguro de acidentes pessoais, é limitado não só pelo conceito de acidentes, mas por várias exclusões expressas.

Mais uma vez, socorremo-nos de Ernesto Tzirulnik e outros [18]:

"As apólices brasileiras relativas ao seguro de acidentes pessoais, elaboradas a partir da Circular SUSEP n° 29/91, apresentam extenso rol de riscos excluídos. Esse rol não é repetido nas condições gerais que regem os seguros de vida, que têm reduzidas hipóteses de riscos excluídos."

Em seguida os referidos autores citam a relação de riscos excluídos no seguro de acidentes pessoais. Dessa relação consta, por exemplo, a exclusão de acidentes ocorridos em conseqüência de competições em veículo; de acidentes decorrentes, direta ou indiretamente, de quaisquer alterações mentais conseqüentes do uso do álcool, de drogas, de entorpecentes ou de substâncias tóxicas; de acidentes decorrentes de ato reconhecidamente perigoso que não seja motivado por necessidade justificada, ou da prática de ato ilícito ou contrário à lei; o suicídio ou sua tentativa, dentre outras.

Por isto que, repita-se, nas apólices de acidentes pessoais é imposto ao segurado ou aos seus beneficiários não somente a prova do evento, mas também das circunstâncias em que o mesmo se deu, para que resulte induvidoso que o acidente ocorrido enquadra-se no conceito estabelecido no contrato e, além disso, que não decorreu de nenhum dos riscos excluídos.

São estas, pois, as especificidades do seguro de acidentes pessoais que o tornam inconciliável com a via executiva. Assim, vê-se que não foi por acaso sua exclusão, mesmo para o caso morte, do rol de títulos executivos, estes que exigem a certeza do crédito, certeza que absolutamente não se vislumbra a priori nos seguros de acidentes pessoais, mas somente ao fim de adequada instrução probatória.


8. DA INVALIDEZ POR ACIDENTE

Aplica-se, para a garantia de invalidez por acidente, tudo quanto antes dissemos sobre a garantia de morte acidental.

Quanto à invalidez, porém, outra razão bastante forte está a determinar o impedimento da via executiva: a falta de liquidez, mormente quando se trate de uma invalidez parcial.

Com efeito, o valor a ser pago ao segurado dependerá do grau de redução da capacidade física conseqüente ao acidente, e, em regra, as ações judiciais em que se discute a garantia de invalidez decorrem, exatamente, da discordância das partes sobre esse grau de redução da capacidade física. Mesmo a invalidez total reclamada, por vezes, não é total. Estas questões, enfim, somente se resolverão por via de perícia médica judicial. E a necessidade de perícia médica judicial – necessidade que se verifica com facilidade por quem se disponha a analisar o histórico forense deste tipo de ação judicial – é fator que, por si só, afasta o requisito indispensável a todo título executivo: a liquidez, como já apontamos.

Obviamente que, também quanto à garantia de invalidez, pode-se vislumbrar hipóteses em que o grau de redução de capacidade física é facilmente determinado, mas, repise-se, não poderia mesmo o legislador, antecipando-se à casuística, apontar quando, na garantia de invalidez, o segurado teria título executivo e quando não teria.

De qualquer forma, não custa repetir, aplicam-se ao risco de invalidez por acidente os argumentos lançados quanto ao risco de morte no seguro de acidentes pessoais.


9. DA CONCLUSÃO

Como dito anteriormente, para que o título constitua para o credor o direito subjetivo à execução forçada, ou seja, o direito de ação, não basta a sua denominação legal, é indispensável que, por seu conteúdo, revele-se também um título certo, líquido e exigível.

Não basta, assim, verificar se o documento está arrolado pelo artigo 585 como título executivo extrajudicial, como no caso do contrato de seguro de vida. É preciso também examinar qual de suas coberturas está sendo exigida.

No caso do contrato de seguro de vida, o beneficiário, na ocorrência de sinistro, disporá de título executivo extrajudicial (por expressa previsão do inciso III do artigo 585 do Código de Processo Civil), sendo a via adequada para o evento morte, pois que a comprovação dos requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade, estabelecidos pelo artigo 586 do mesmo Diploma, estarão suficientemente comprovados pela apólice de seguros e certidão de óbito.

Mas, para o seguro de acidentes pessoais, seja ele comercializado isoladamente, seja como garantia adicional de um seguro de vida; seja para a garantia de morte, seja para a garantia de invalidez, a via executiva não é apropriada, apenas restando a via da ação de conhecimento, ou, ainda, da monitória, para certas hipóteses, em face da exclusão de tal contrato do rol dos títulos executivos extrajudiciais pela Lei Federal nº 11.382/2006.

Neste ponto, ousamos discordar do posicionamento do Professor Humberto Theodoro Júnior, que sustenta, como indicamos linhas atrás, a força executiva do contrato de acidentes pessoais para o evento morte, sob a justificativa de possuir natureza jurídica de seguro de vida.

É que, como vimos, somente o Legislador pode definir um documento como título executivo extrajudicial, estando estes taxativamente previstos no Código de Processo Civil ou em leis especiais, não se admitindo, desta forma, interpretação extensiva.

Verificamos, pois, na hipótese, que a interpretação autêntica demonstra que o Legislador expressamente determinou a exclusão do contrato de acidentes pessoais do rol dos títulos executivos extrajudiciais, o que impossibilita o interprete de se utilizar da via executiva, para exigir a cobertura securitária.

Enfim, enquanto mantida a atual redação legislativa, não dispõe o beneficiário de seguro de acidentes pessoais da via do processo de execução, mesmo para a cobertura do evento morte, "data maxima venia" do entendimento dos que entendem em sentido contrário.


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Notas

  1. Direito Processual Civil Brasileiro. 3º volume. 15ª edição. São Paulo; Saraiva, 2002.
  2. Breves Comentários sobre a Lei nº 11.382/2006 (Processo de Execução de Título Extrajudicial).
  3. THEODORO JÚNIOR, Humberto. A Reforma da Execução do Título Extrajudicial. Rio de Janeiro; Forense, 1996. p. 23.
  4. Manual de Direito Processual Civil. Campinas; Bookseller, 1997. p. 41.
  5. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume VI. Rio de Janeiro; Forense, 2001. pp.117/118
  6. Artigo 586 do CPC: A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível.
  7. MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sergio Cruz. Curso de Processo Civil – Execução. 2ª edição. RT, 2008. p.120.
  8. Manual de Direito Processual Civil. Campinas; Bookseller, 1997. p. 43.
  9. MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sergio Cruz. Curso de Processo Civil – Execução. 2ª. RT, 2008. p.120.
  10. BARBOSA, Hugo Leonardo Penna, PINHO, Humberto Dalla, DUARTE, Márcia Garcia. Nova Sistemática da Execução de Título Extrajudicial e a Lei 11.382/06. Rio de Janeiro; Lúmen, 2007. p. 2
  11. THEODORO JÚNIOR, Humberto. A Reforma da Execução do Título Extrajudicial. Rio de Janeiro; Forense, p. 19.
  12. Execução Civil, 5ª edição. São Paulo; Malheiros, 1997. p. 496.
  13. Nova Sistemática da Execução de Título Extrajudicial e a Lei 11.382/06. Rio de Janeiro; Lúmen, 2007. p.435.
  14. TZIRULNIK, Ernesto, CAVALCANTI, Flavio de Queiroz B., PIMENTEL, Ayrton. O contrato de Seguro de Acordo com o Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo; RT, 2003. p. 159.
  15. Obra citada, p. 177
  16. SUAREZ, Francisco Javier Tirado. Revista de Derecho Privado. Tomo XXIV. Madrid; Edersa. p.113.
  17. ALMEIDA, J. C. Moitinho de. O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado. 1ª. Edição. Lisboa; Sá da Costa, 1971. p. 398-399.
  18. Ob. Cit., p. 160.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALFATTI, Marcio Alexandre; SARRO, Luís Antônio Giampaulo et al. O título executivo extrajudicial e o contrato de seguro de pessoas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2157, 28 maio 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12808. Acesso em: 16 abr. 2024.