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Apontamentos sobre a responsabilidade tributária

Apontamentos sobre a responsabilidade tributária

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§ 1º - Conceitos Básicos.

O tema da responsabilidade tributária é complexo, não apenas pelas dificuldades teóricas próprias do conceito civilista de responsabilidade, mas também pelo tratamento positivo que lhe foi dado pelo Código Tributário Nacional, cujos preceitos nem sempre privilegiaram a boa técnica, consoante pretendemos demonstrar neste ensaio. Para fixarmos bem nossa compreensão do difícil conceito, prodromicamente salientamos ser a responsabilidade tributária, em verdade, o último elo de uma corrente, que tem como primeiro momento o conceito de fato jurídico tributário. Justamente por esse motivo, e antes de entrarmos no assunto principal desta dissertação, outra não poderia ser nossa atitude senão a de refletir um pouco sobre o fenômeno da jurisdicização e suas conseqüências, embora o façamos aqui de modo bastante perfunctório.

Os homens, em sociedade, vivem em relação com os outros de sua espécie. Essas relações mútuas, contínuas e complexas possibilitam a afirmação, desenvolvimento e progresso do tecido humano social, embora, doutra parte, tragam profundos problemas, principalmente entrechoques e conflitos de interesses individuais ou de massa. Por conta disso, o Ordenamento Jurídico edita normas imperativas para tomar possível a convivência num clima de paz social, destacando do mundo fenomênico determinados fatos relevantes, adjetivando-os de jurídicos e imputando-lhes efeitos determinados. Nasce, desse fenômeno, a importante distinção entre mundo dos fatos e mundo jurídico, distinção fundamental para o desenvolvimento da análise a que nos propomos. Como salienta Lourival Vilanova (As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, p. 46), os conceitos normativos são seletores de propriedade, ou seja, a norma toma determinados fatos reputados relevantes e os descreve em conformidade com os seus aspectos considerados mais importantes, selecionando, no mundo fáctico, determinadas características. Não é por outra razão que o professor pernambucano chama essa função descritiva, constante na norma, de qualificadora normativa do fáctico (ob. et loc. cit.).

O mundo jurídico, pois, é mundo dentro do mundo do fáctico, sem qualquer distinção ontológica, mas tão só axiológica. É da valoração de determinados fatos, descritos e previstos em normas, e da incidência destas regras sobre os fatos ocorridos em concreto, que nasce o fato jurídico, e, a partir dele, são emanados efeitos jurídicos. Desse modo, indefectivelmente, nasce o mundo do direito. Temos, pois, que o mundo do direito nasce da incidência da norma sobre fatos do mundo, os quais são por ela previstos, tendo como primeiro momento a criação do fato jurídico.

Sendo a norma jurídica qualificadora do fáctico, os técnicos de direito devem conhecer, obrigatoriamente, a sua estrutura lógica, dominando assim o manuseio de todo o fenômeno resumidamente descrito acima.

Toda norma jurídica há de ter, em sua estrutura, a descrição de um fato e conseqüências a ela imputadas. Note-se que estamos a falar de conceitos postos na norma, não de fatos já ocorridos ou por ocorrerem concretamente. A norma jurídica recorta o mundo empírico por abstração, retirando dele as notas relevantes de sucessos históricos que freqüentemente ocorrem na vida em sociedade, para a esses acontecimentos prefigurados no texto normativo imputar conseqüências jurídicas.

A norma jurídica, de conseguinte, é constituída de duas partes: uma em que se descrevem os fatos selecionados (valorados) pelo Ordenamento Jurídico, a qual chamaremos descritor (hipótese de incidência, suporte fáctico ou suposto de fato); e outra em que o ordenamento prescreve efeitos jurídicos aos fatos descritos (fato jurídico, depois da incidência da norma), a qual chamaremos prescritor (preceito, conseqüente ou tese). Logo, é ínsito ao discurso normativo duas linguagens diferentes: uma tem a função meramente descritiva, narrativa, de fatos ou eventos; a outra, mais do que apenas descrever, tem por escopo a modificação da realidade. Essas duas linguagens - uma descritiva, outra prescritiva - são unidas pelo conectivo dever-ser, "o que nos leva a denominar deôntico o sistema do direito positivo" (Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, p. 86). É justamente o conectivo deôntico que define e diferencia a norma jurídica em dois tipos: regras de comportamento e regras de estrutura.

Deveras, o dever-ser não se encontra apenas neutro na norma jurídica. Diferentemente, pode ele se modalizar, ou seja, assumir modos diferentes, que são de três tipos (os três modais deônticos):permitido, obrigatório e proibido. É justamente esse critério o diferenciador entre as normas de comportamento e as de estrutura: nas primeiras o dever-ser está sempre modalizado, enquanto, nas outras, encontramo-lo sempre neutro. Portanto, e desde já salientamos, toda relação jurídico-tríbutária nasce de norma de comportamento, com modal deôntico obrigatório.

Para tornar mais claro o que até aqui tentamos expor, nos valeremos de duas definições nascidas da pena de Marcos Bernardes de Mello (Contribuição ao Estudo da Incidência da Norma Jurídica Tributária, in: Curso de Direito Tributário Moderno, p. 09), fixando os conceitos já anteriormente expostos. Para o autor, seguindo as pegadas de Pontes de Miranda, suporte fáctico (descritor) é a definição normativa do "fato ou conjunto de fatos que são considerados relevantes para o relacionamento inter-humano" e preceito (= prescritor) é a parte da norma na qual "é definida a eficácia do fato jurídico correspondente". Guardemos tais conceitos já postos.

É importante lembrar ainda, com vistas a exposição que a seguir faremos, que a incidência da norma sobre o seu suporte fáctico concreto (aquele ocorrido no mundo dos fatos) tem efeitos importantes, principalmente o de juridicizar (tornar jurídico o que era apenas fáctico), desjuridicizar (retirar o adjetivo de jurídico dos fatos jurídicos ou de seus efeitos, expulsando-os, pois, do mundo do direito), e pré-excluir da jurisdicização (uma norma incide para impedir que outra norma juridicize determinado fato ou conjunto de fatos). Por desatenção a tais efeitos da incidência, muitos foram os erros cometidos pela doutrina, ainda hoje prevalecentes.

Quanto à expressão fato gerador, largamente utilizada pela doutrina e positivada pelo CTN, deve ser evitada por sua imprecisão. O fato previsto na norma não tem o condão de, por si, gerar efeitos jurídicos. Só após a incidência da norma ao fato concretizado, tornando-o jurídico, é que emanam efeitos jurídicos. Em conseguinte, só o fato jurídico gera efeitos jurídicos. O fato, em verdade, encontrado em estado bruto, sem qualquer adjetivação jurídica, apenas enseja a incidência da norma que o prevê em seu descritor. É tão importante a precisão vocabular, que muitos equívocos na seara tributária só ocorrem por essa confusão terminológica.

Dissemos que só de fatos jurídicos emanam efeitos jurídicos. Um desses efeitos previstos no conseqüente da norma é a relação jurídica, marcada pela bilateralidade ou plurilateralidade. Pontes de Miranda, em sua extensa obra, demonstrou que a relação jurídica está estruturada em direito, dever, pretensão, obrigação, ação de direito material e exceção. Pela fenomenologia do mundo jurídico, portanto, a norma incidiria no seu suporte fáctico concreto, donde nasceria o fato jurídico, do qual surgiria a relação jurídica e demais efeitos (direito, dever, etc.)

Com tais conceitos expostos perfunctoriamente até aqui, apenas para acenar com quais instrumentos teóricos estamos trabalhando, já podemos analisar o tortuoso problema da obrigação tributária, que nos levará, enfim, ao tema da responsabilidade.


§ 2º - Crítica ao Conceito de Obrigação Tributária.

O Código Tributário Nacional procura conceituar os institutos principais sobre o qual normatiza na preocupação de delinear bem o objeto por ele regrado. Todavia, consoante notaremos no decorrer dessa exposição, o legislador trabalhou, na composição do Código, com matéria doutrinária ainda em formação, portanto sem o poder de responder às questões complexas que já então eram formuladas pela comunidade jurídica. Justamente por isso, toda a construção jurislativa aí positivada, sofre críticas muito fortes hoje, as quais, na sua maioria, com visos de razão. A norma, entretanto, imperfeita ou não está posta (legem habemus!), devendo ser estudada e criticada de tal modo que venha a ser aplicada mais corretamente. O que não pode fazer o critico é jogar pedras e, destruída a construção, nada pôr em seu lugar. Ao intérprete cabe o tornar claro o jus positum, buscando acrisolar suas contradições.

O CTN construiu sua sistematização em torno do art.3º, o qual define o tributo como: "uma prestação pecuniária compulsória, em moeda (...), que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei. .. ". Interessa-nos por agora já ter presente, pela própria dicção legal, o que não é tributo, ou seja: tributo não é sanção decorrente de ato ilícito. Em conseguinte, toda vez que o cidadão levar dinheiro aos cofres públicos por ter cometido um ilícito, tal prestação não constitui tributo, mas multa.

Ocorre, todavia, que o mesmo Código, no seu art. 113, §§ 1º e 2º, ao definir juridicamente o signo obrigação tributária, faz uma distinção entre obrigação principal e obrigação acessória. A primeira "surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária (sic) e extingue-se justamente em crédito dela decorrente". Já a segunda "decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos".

Se meditarmos bem, guardando na retentiva o disposto no art.3º do CTN, descobriremos que essas obrigações acessórias nada têm de tributária, mas são verdadeiras obrigações administrativas, que se expressam num fazer ou não fazer, ao contrário das obrigações tributárias, que se traduzem numa obrigação de dar (Paulo de Barros Carvalho, ob. cit., p. 194 e s.). Assim, enquanto as obrigações acessórias impõem ao contribuinte a realização de determinada atividade, ou a sua abstenção, com vistas a colaborar com a arrecadação levada a cabo pela Fazenda Pública, as obrigações principais expressam o dever do contribuinte em levar pecúnia aos cofres públicos, não como sanção, mas como conseqüência de fatos jurídicos que têm, à sua base, uma referência econômica.

Restaria a indagação de saber como o legislador, contrariando o art 3º do CTN, classifica a penalidade pecuniária como uma espécie de obrigação tributária. O § 3º do art. 113 sinaliza o caminho, ao dizer que "a obrigação acessória, pelo simples fato de sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária" (grifei). Ora, ressalta a impropriedade do tratamento legal dado à matéria. Primeiro, o art. 3º descarta a sanção como tributo para, ao depois, o art.113, § 3º do CTN transformar, a pena pecuniária advinda da inobservância de uma obrigação administrativa, em obrigação tributária, como se o mundo jurídico não fosse um mundo lógico, a magoar-se com tais contradições daninhas à compreensão desse importante Código.

Completando a sua confusão conceptual, esse Diploma Legal prescreve, em seu art. 121, que "sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária"; o que expressa o mesmo conteúdo equivocado do art. 113, § 3º. Os defensores dessa postura do CTN não vêem aí qualquer contradição, alegando que a obrigação tributária não se refere só ao tributo (art. 3º), mas também à penalidade pecuniária. O art. 3º só difere o tributo da penalidade pecuniária, enquanto espécies diferentes, mas ambas pertencentes ao gênero obrigação tributária. Noutros termos, na dicção de Ives Gandra da Silva Martins, "a obrigação tributária abrange tanto o tributo quanto a penalidade pecuniária. O pagamento, seja do tributo, seja da penalidade pecuniária - que são duas espécies do gênero obrigação tributária - extingue o crédito tributário. (...) A obrigação principal é efetivamente uma obrigação tributária. A obrigação acessória é uma obrigação administrativa, porque, quando ela passa a ser tributária, deixa de ser acessória e passa a ser principal" (apud. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Financeiro e Direito Tributário, p. 192).

Quer nos parecer que há, na doutrina acima citada, um lamentável equívoco. Afinal, como equiparar duas obrigações jurídicas sem se reportar à norma jurídica que as previu? Como equipará-las sem atender aos fatos originantes das relações obrigacionais? Basta observar que a obrigação tributária tem um fato jurídico lícito como seu produtor, ao passo que a penalidade pecuniária é fruto de um fato ilícito. Ora, tal diferença axiológica é bastante em si para mostrar a distância abissal entre uma e outra. Se aceitássemos a tese acima exposta, estaríamos a concordar em que o tributo é uma sanção imposta a todo cidadão, o que constituiria um dislate. Cinjamo-nos de pôr num mesmo plano o licito e o ilícito, como se uma coisa só fossem. O que houve foi um erro doutrinário do legislador, que, pensando na utilidade de se cobrar tributo e pena pecuniária juntos - o que tecnicamente é correto -, equiparou-os, desatendendo à boa doutrina. Por isso, deve o aplicador levar em conta o art. 3º e interpretar os arts. 113, 114 e 115 noutros termos, quais sejam: obrigação tributária é aquela que nasce do fato jurídico tributário, previsto em normas-matrizes de incidência, como as denomina Paulo de Barros Carvalho (ob.cit., p. 83). As obrigações acessórias, as quais denominamos obrigações administrativas procedimentais, nascem do fato jurídico administrativo, consistindo em fazer ou não fazer alguma atividade definida em lei. A sua inobservância (fato ilícito) dá origem a uma sanção. É lamentável que a esses conceitos não chegou ainda parte da doutrina.

Entendendo desse modo os artigos citados anteriormente, evitaremos de coonestar doutrinariamente o preceito estampado no art. 121, par. ún., do CTN, que preceitua: "O sujeito da obrigação principal diz-se: I - Contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador; II - Responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei". (grifei).

Ora, o art. 121 do CTN tem raiz em um erro doutrinário bastante arraigado na Ciência do Direito. E que erro é esse? Como bem demonstra Paulo de Barros Carvalho (ob. cit., p. 205/6), o texto legal deste artigo do CTN em estudo teve origem no magistério de Rubens Gomes de Souza, o qual não trabalhando com a obrigatória distinção entre mundo dos fatos e mundo jurídico, terminou vislumbrando no "sujeito passivo aquela pessoa que estava em relação econômica com o fato jurídico tributário, dele extraindo vantagens." (grifei). É dessa visão que nasce a famosa e equivocada distinção entre sujeito passivo direto e sujeito passivo indireto, em função, como foi visto, de um elemento não jurídico; qual seja, a relação econômica existente entre um determinado acontecimento e uma determinada pessoa. Basta ver que Luís Emydgio F. Rosa Jr. (Novo Manual de Direito Financeiro e Direito Tributário, p.317-8), adotando esse entendimento, como aliás a maioria da doutrina o faz, chama o contribuinte de sujeito passivo direto, pois é ele quem está "direta e pessoalmente" ligado ao fato descrito na norma; e o responsável, de sujeito passivo indireto, por estar em relação apenas indireta com o mesmo fato, como parece óbvio. A tautologia dos conceitos expostos gritam veementemente.

Como se depreende, o método utilizado para conceituar o contribuinte e o responsável ressente-se de uma boa técnica, pois, já o demonstramos, o fáctico, como fáctico, nada significa para o direito. Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito, p. 02) bem o diz: "Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos... poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível..., segundo a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito". E é essa significação jurídica que nos interessa, não a significação econômica, política ou social. Do ponto de vista de um estudo dogmático, como o que agora levamos a efeito, tais saberes ficam entre parênteses. Não podemos, conseguintemente, eleger a distância ou proximidade de um fato econômico como parâmetro para classificar o sujeito passivo de uma relação, desatendendo ao que se passa na regra jurídica de cada tributo. É esse, sim, o critério mais seguro para chegar-se a uma determinação precisa do sujeito passivo da obrigação tributária: a atenção ao plano da incidência da norma. E não nos esqueçamos que elas incidem para juridicizar, ou desjuridicizar, ou pré-excluir da jurisdicização. A esse desdobramento da norma é que devemos atentar, sob pena de cairmos em graves vícios jurídicos.

Para a má técnica adotada pelo CTN, o responsável seria o terceiro indiretamente ligado ao "fato gerador" que substitui a titularidade da sujeição à obrigação, em virtude do seu descumprimento pelo contribuinte ou no caso de infrações cometidas pelo terceiro, sem contudo haver qualquer alteração na "relação jurídica tributária". É esse, em síntese, o entendimento de Carlos Valder do Nascimento (Obrigação Tributária, p. 91).


§ 3º - Responsabilidade Tributária.

Chegamos assim ao núcleo de nosso ensaio: a responsabilidade tributária.

Refletindo sobre as conclusões expostas acima, logo ressumbra que a compreensão do conceito de responsabilidade tributária fica comprometida pelo limitado arcabouço teórico com o qual o nosso CTN trabalhou na arquitetura do sistema tributário nacional. Em verdade, o responsável tributário nada mais é do que alguém que assume a condição de contribuinte, substituindo o pólo passivo da relação jurídica tributária em virtude de algum outro fato jurídico previsto em lei. Logo, sob o signo responsabilidade tributária esconde-se, de fato, o fenômeno da substituição do pólo passivo da relação tributária, com a exclusão do contribuinte primário, que perde a condição jurídica de contribuinte. Assim, o chamado responsável nada mais é que o contribuinte substituto, excluendo do contribuinte primário em razão de determinado fato previsto pelas lei tributárias. Aqui há, como se vê, uma radical mudança de perspectiva em relação à doutrina dominante, que sustenta que o contribuinte continua sendo contribuinte, nada obstante o terceiro estranho à relação tributária (= responsável) termine por pagar o tributo.

Para demonstrarmos a propriedade do que estamos sustentando, passaremos a analisar a problemática da responsabilidade, consoante pensada pelos civilistas, para aferir de sua utilidade teórica. Com o resultado dessa breve, mas preciosa análise, teremos instrumentos para contrapor nosso pensamento à doutrina dominante, justificando nossas opções com exemplos práticos.

Carlos Valder do Nascimento, fazendo coro ao pensamento mais encontradiço nos livros que versam sobre o tema, afirmou que o responsável tributário nasce de duas situações: (a) do descumprimento, pelo contribuinte, da obrigação tributária - nos termos pelos quais definimos anteriormente; e (b) como fruto de uma sanção por ter o terceiro infringido alguma obrigação administrativa procedimental - chamada pelo código de "obrigação acessória". A letra (b) deve ser de logo descartada, pois já entendemos ter provado que sanção não é obrigação tributária, mas conseqüência de um fato ilícito. Destarde, sujeito passivo dessa relação ilícita não pode ser partícipe de uma relação tributária, como prescreve o art. 3º do CTN.

E quanto a hipótese da letra (a)? A doutrina, em peso, aceita a procedência da assertiva. Em função disso, analisaremos mais detidamente a questão, tentando mostrar os erros graves e perigosos que, em nosso sentir, aí estão entranhados.

O art. 128 do CTN afirma que "a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceiras pessoas, vinculadas ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação".

O que transmite o artigo é muito simples -- pelo menos em aparência: em determinadas situações previstas em lei, o contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária, não mais será impelido a solver seu débito, pois "uma terceira pessoa, vinculada ao fato gerador -- veja o critério fáctico adotado -- sujeitar-se-á a solvê-lo no todo ou em parte". Vem a talho aqui a lembrança do art. 121, inc.II, que diz ser o responsável indicado expressamente pela lei, ao passo que no inciso I diga-se que o contribuinte existe como tal em função da sua relação fáctica ser pessoal e direta com o sucesso descrito na norma, e não também por sua situação estar prevista no prescritor normativo como efeito jurídico. Nesse raciocínio, elide-se ou inobserva-se que o contribuinte só assume essa condição jurídica pela incidência da norma sobre seu suporte fáctico, o qual, ao tornar-se fato jurídico tributário, tem como efeito uma relação jurídica obrigacional, onde o sujeito passivo recebe esse nomen juris. Contribuinte é, pois, conceito jurídico, de significação jurídica - como nos advertiu anteriormente Hans Kelsen. Pretender colocá-lo ou encontrá-lo no mundo em geral -- contribuinte de fato! -- é aberração jurídica, que não auxilia na compreensão do instituto estudado

Queremos com isso salientar que a definição de quem seja contribuinte, tanto quanto o responsável, está no critério subjetivo do conseqüente normativo. Portanto, não é relevante diferenciador o fato de o responsável ser previsto em lei, como consta do art. 121, inc.II, pois o contribuinte há de sê-lo também. Sendo assim, e não tendo valor jurídico o critério do direto e pessoal relacionamento com o "fato gerador" para definir quem seja o contribuinte (art. 121, inc.I), que outro critério poderá ser utilizado para explicar o fenômeno descrito no art. 128 do Código? Quem é, juridicamente, o responsável tributário, que não se confunde com o contribuinte? Afinal, -- e essa é a pergunta decisiva -- existe realmente a figura do responsável tributário, como figura distinta do contribuinte?

O CTN, e é dado essencial para o problema proposto ser compreendido em suas raízes, buscou positivar a teoria dualista do vínculo obrigacional, seguindo bem de perto a lição de Amílcar de Araújo Falcão, (Introdução ao Direito Tributário, p. 78 e sgts.), que, antes da feitura do CTN, já utilizava tal teoria como suporte teórico para suas construções doutrinárias. A teoria dualista vislumbra, no vinculo obrigacional, dois elementos: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). Para Amílcar Falcão, "o débito do imposto tem como fonte a lei, e por elemento criador, a realização de um fato imponível legalmente caracterizado". Todos os sujeitos passivos, de relações jurídicas e débitos diferentes, são semelhantes; o que os faz diferir é "somente a modalidade da responsabilidade tributária (Haftung) que a cada um diz respeito". Esta responsabilidade, prossegue ele, será originária ou derivada. A originária "independe de qualquer menção expressa na lei, enquanto a última tem que ser regulada de modo inequívoco".

Observe que essa última afirmação acabou por ser positivada pelo CTN (art. 121, incs.I e II) malgrado não está expressamente nele adscrita. Amílcar Falcão, em seguida, afirma que o "sujeito passivo tributário com responsabilidade originária é contribuinte... A identificação do contribuinte, portanto, incumbe ao intérprete: independe de menção na lei". Por fim, diz-nos o saudoso tributarista: "De tudo o que ficou dito, claro está que, por vezes, pode o legislador dissociar inteiramente a relação tributária, atribuindo o debitum a uma pessoa (contribuinte) e a responsabilidade de sua solução a outra (substituto)" (grifo do autor).

Óbvio se patenteia que o CTN, sem embargos das expressões por ele utilizadas, usou largamente dos conceitos expostos por Amílcar de Araújo Falcão, os quais merecem, portanto, uma breve análise.

Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, v. II, p. 19 e 20) diz-nos que o débito (Schuld) é o "dever de prestar", que não deve ser confundido com o objeto da obrigação (a prestação), pois esse débito "mora em sua essência mesma"(?). Já a responsabilidade (Haftung) é "um estado potencial, continente de dupla função; a primeira preventiva, cria uma situação de coerção ou procede psicologicamente, e atua sobre a vontade do devedor, induzindo-o ao implemento; a segunda, no caso da primeira falhar, é a garantia que assegura efetivamente a satisfação do credor" (destaques originais). A responsabilidade seria, desse modo, "o poder do credor sobre o patrimônio". (ob. cit., p. 21).

Em tal exposição, percebe-se que o dever ou débito fica sem contornos quando posto junto ao conceito de responsabilidade. Sem a garantia, o débito é como urna caixa vazia, uma mera expectativa de cumprimento, vista do lado ativo da obrigação, como já dito por Pacchioni, (Delle Obbligazioni in Generale, p.7, apud. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v. 1, p. 155). . Ou seja, o débito, sem a responsabilidade, não passa de uma situação em que o adimplemento da obrigação devida fica ao talante do devedor, deixando o direito de crédito, mercê disso, como uma vantagem desvestida de mecanismos para torná-la efetiva. Essa impressão fica mais nítida quando observamos a lição de Serpa Lopes ("Curso de Direito Civil", v. II, p. 15): "A responsabilidade no direito germânico, é a subordinação ao poder de agressão, ou seja, ao direito de agir por parte do não satisfeito" (grifos nossos).

Assim sendo, o conceito utilizado pelo CTN, se a responsabilidade for do tipo derivada -- em que o terceiro se substitui ao devedor --, nós temos que admitir, por honestidade intelectual, que o debitum torna-se um conceito decorativo, porquanto é o responsável quem é agredido em seu patrimônio, ficando incólume o sujeito passivo da relação de crédito. E, além dessa conclusão desabonadora da teoria, é de se ver que seus séquitos apenas criaram um outro problema: confundiram o plano processual com o de direito material. Sobre isso, dada sua relevância, falaremos a seguir.

Cumpre ainda observar, que toda a teoria já exposta, e adotada pelo código, guarda em seu seio o mesmo equívoco que tanto já apontamos: prende-se ao fáctico e não atende ao fenômeno jurídico. Ao observarem apenas a agressão do patrimônio de uma terceira pessoa (A), ausente na relação existente entre outras duas (B e C), os juristas se fixaram nesta invasão (do patrimônio de A por B), desatendendo ao que juridicamente ocorria na vida, a justificar essa atitude. Tal caminho, perlustrado pela maioria dos estudiosos, levou a algumas confusões, além de perda do critério fundamental para se entender o jurídico: o plano da incidência da norma jurídica.

Por tal desatenção, surgiu todo o problema na explicação do fenômeno assinalado, ficando por aclarar o significado da expressão relação pessoal entre credor e devedor e relação patrimonial entre credor e responsável, quando sabemos que o credor se relaciona pessoalmente, quer queiramos, quer não, com o dito responsável, pois inexiste, por óbvio, relação jurídica do homem com a coisa: no direito, a relação há de ser intersubjetiva, pois seu objeto é a conduta humana. Mas até tal confusão pode ser explicada em suas bases. Ocorre que alguns juristas, ao atentarem para o fator agressão de um patrimônio, deslocaram a responsabilidade do âmbito do direito material e viram-na no campo processual, como um poder ou direito de agressão, ou, noutras palavras, um direito de ação. Ora, a colocação do problema nesses termos cria enormes complicadores: (a) mistura conceitos processuais com os de direito material, além da implícita adoção da teoria civilista da ação, já de há muito superada; (b) levanta um problema grave do ponto de vista processual: se o débito pode ser solvido apenas voluntariamente pelo devedor, sendo a responsabilidade a agressão do patrimônio para o cumprimento forçado da obrigação, onde colocar ai o conceito de condenação, tão caro aos processualistas? Pois, ao que parece, não sobraria espaço para uma sentença de condenação, quando mais uma vez, e de modo mais demorado, persistiria o credor a ter, apenas, uma expectativa de cumprimento da dívida.

Mas a mixórdia não ficou apenas entre os civilistas. José Alberto dos Reis, grande processualista lusitano, fala-nos que o "direito de garantia sobre o patrimônio, construído pelos doutrinadores do Schuld und Haftung, são fórmulas que, sobre uma capa civilista, encobrem uma realidade processual"(apud. Serpa Lopes, ob. cit., p. 19). Feito o deslocamento de uma seara para a outra, pensou-se que "ao contrário da execução nos ordenamentos primitivos, que era essencialmente execução pessoal, contra pessoa do obrigado, nos sistemas modernos, a execução é fundamentalmente real, incidindo sobre o patrimônio e não sobre a pessoa do devedor", pois o "objeto da execução, portanto, não é a pessoa do devedor e sim os seus bens" (Ovídio Baptista da Silva, Curso de Direito Processual Civil, v. II, p. 48). Quer dizer, pois, que a execução deixa de ser pessoal pelo fato de se agredir não mais o corpo físico do devedor, mas sim seu patrimônio. Ora, mas se a execução (invasão ou agressão da esfera jurídica patrimonial, garantia) ressente-se, modernamente, desse aspecto pessoal, como poderíamos encontrá-lo apenas no débito? E, por outra, se a execução é hoje apenas real, quando se executa o responsável, qual o vínculo que sobraria entre o credor, já agora satisfeito em seu crédito, e o antigo devedor, cujo patrimônio permaneceu intocado? A quem sustentar que restaria o débito, ficaria o ter de explicar qual a natureza desse Schuld destituído de Haftung, estando, ademais, o devedor liberado da dívida com o credor satisfeito, mesmo que pelo patrimônio de outrem. Tais indagações, à luz dessa teoria, parece-nos irrespondíveis.

Para pôr urna pá de cal nessa distinção irrelevante entre "execução ou relação pessoal" e "execução ou relação real", basta lembrar o conceito, já tornado clássico, de patrimônio, que "seria o complexo das relações de uma pessoa, apreciável economicamente" (Caio Mário, ob. cit., vol.I, p.263), ou, na dicção de Clóvis Beviláqua, seria a projeção econômica da personalidade civil. É dizer, não se pode abstrair o patrimônio do seu titular, pois ele só existe como um complexo de direitos atribuídos a alguém pelo Ordenamento Jurídico. Dessarte, até mesmo a responsabilidade, enquanto imissão nos bens de alguém, há de ser tida também em seu aspecto "pessoal". Ou seja, tudo que a teoria dualista pretendia resolver com a distinção entre débito e garantia, mostrou-se insolúvel pela ótica de seus postulados, somando-se o fato, relevante, da criação de inúmeros problemas graves.


          § 4º - Breve exposição sobre a nossa posição.

Até o momento de nosso ensaio, alguns pontos foram já assentados: a) a relação tributária nasce do fato jurídico tributário e, portanto, só ao tributo se refere; b) a pena pecuniária, inobstante seja cobrada em conjunto com o tributo, nasce de um fato jurídico ilícito, não tendo natureza tributária; c) o sujeito passivo da relação tributária é o contribuinte, que é determinado pelo ocorrência de um fato previsto no descritor normativo de uma regra tributária, com a conseqüente jurisdicização desse fato (fato jurídico tributário), do qual dimanam efeitos, um deles, a subjetivação passiva na relação obrigacional tributária (contribuinte); d) o critério da proximidade ou pessoalidade em relação ao "fato gerador" é imprestável para determinação do contribuinte de determinado tributo, pois é critério fáctico, desvestido de relevância jurídica; e e) o conceito de responsabilidade mostra-se insuficiente para explicar o fenômeno da satisfação do credor pela agressão do patrimônio do terceiro, o qual não fazia parte da relação obrigacional tributária.

Postas tais premissas e demonstradas as contradições teóricas que sustentam o Código Tributário, quadra tentar uma nova interpretação dos artigos iterativamente citados, já agora com supedâneo em novos conceitos (os quais inicialmente tivemos o cuidado de expor, embora em espaço angusto, dado os lindes desse ensaio). Para tanto, esqueçamo-nos definitivamente do uso da teoria dualista do vínculo obrigacional, cuja serventia resume-se na confusão de realidades distintas, com mistura inidônea de conceitos processuais com conceitos de direito material.

Para nos livrarmos desse erro, a primeira coisa que devemos fazer é observar o plano da incidência da norma. É pela incidência que os fatos do mundo ganham significação jurídica, tornando-se fatos jurídicos. No dizer preciso de Lourival Vilanova (ob. e loc. cit.), "o fato se torna fato jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a hipótese" ou descritor. Não pode esquecer dessa verdade o intérprete do direito posto, sob pena de construir uma interpretação desprovida de valor científico. Pontes de Miranda declara expressamente: "para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que as regras jurídicas - isto é, normas abstratas - incidam sobre eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os jurídicos" (Tratado de Direito Privado, t.I, p.6). Esse colorido novo, essa nova significação, deve ser o centro de nossas atenção.

Como já tivemos oportunidade de dizer, a norma jurídica é formada por dois elementos: um é o descritor ou suporte fáctico; o outro é o prescritor ou preceito. Essas duas proposições são ligadas pela invariável operacional "dever-ser" (functor deôntico), "modal específico das proposições normativas", como nos ensina Lourival Vilanova (ob. cit., p.30). O functor deôntico tem a função de conectar as duas proposições, tornando-as, as duas, linguagem prescritiva direcionada à conduta humana. Esse ponto é relevante. O conectivo "dever-ser", pois, se modaliza em obrigatório, permitido e proibido, "com o que se exaure a possibilidade normativa da conduta. Qualquer comportamento caberá sempre num dos três modais deônticos, não havendo lugar para uma quarta alternativa" (Paulo de Barros Carvalho, ob. cit., p.86).

Pois bem, uma norma jurídica prevê, em seu descritor, uma situação fáctica relevante. Pensemos, à guisa de tornar mais prática a exposição, no art. 130 do CTN, que poderia ter seu conteúdo assim reduzido: os impostos, devidos pelo proprietário de um imóvel, e não pagos, passam a ser devidos pelo seu adquirente. Cumpre avisar, desde logo, que estamos em terreno movediço, onde se torna mais agudo o problema da responsabilidade tributária. E a primeira observação a ser feita é que o devedor do imposto é o proprietário do imóvel. Não nos importa qual o imposto devido, mas apenas o fato de o débito estar ligado ao senhorio do bem. Ao vendê-lo, sem efetuar o pagamento do quantum devido, passou o adquirente a ser responsável pela solutio da dívida, sob pena de sofrer a incursão, em seus bens, da atividade executiva estatal. É de indagar-se, à luz dos questionamentos já feitos, qual a situação jurídica do antigo proprietário em relação ao fisco. Não ficou ele, pelo exarado no art. 130, fora da relação obrigacional?

O art. 128 do mesmo diploma legal parece conter alguma solução. Vem ele assim expresso: "Sem prejuízo no disposto neste Capitulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação". Portanto, para o CTN, o contribuinte, que em nada contribuiu com a fazenda pública, continua a ser contribuinte, embora outro pague sua conta ("excluindo a responsabilidade do contribuinte"). Quanto à parte final do artigo, não há propriamente o que a doutrina chama de "responsabilidade"; há, em verdade, obrigações diversas, sendo, o dito responsável, devedor de multa pecuniária, mercê do descumprimento de uma obrigação administrativa procedimental. São os casos do art.134 ("... respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis..."), os quais não cabem nos estreitos espaços deste escrito.

Sabemos, agora, que o contribuinte, mesmo nada pagando, continua como contribuinte. Mas por quê? Talvez -- e é a única resposta que nós encontramos -- deva-se ao fato de o responsável, que pagou o débito, poder ir contra o contribuinte e receber a quantia por ele despendida. Dessarte, haveria um deslocamento diferido dos bens do contribuinte para os cofres da fazenda pública, pois seria ele, em última instância, quem, de fato, contribuiria. Mas tal argumentação é sem base alguma. Suponhamos que o responsável não acione o contribuinte; certamente esse em nada seria afetado, inobstante persistisse seu débito. A artificialidade de construção ressalta. Paulo de Barros Carvalho (ob. cit., p. 220) bem o demonstra quando aponta o critério fáctico adotado pelo CTN. Diz o ilustre tributarista: "Agora, quando houver a exclusão do participante direto (contribuinte) e assumir aquele -- o terceiro -- a postura de sujeito passivo da obrigação, não se pode falar em responsável e impõem-se o abandono do nome contribuinte para o ser excluído, uma vez que tudo isso se passou no momento pré-legislativo, inteiramente fora do território especulativo do Direito" (grifei).

Cremos, depois desses argumentos, termos demonstrado a inânia da teoria dualista da obrigação, cuja utilidade, para a solução dos problemas propostos, é nenhuma. Resta-nos, então, buscar explicações mais convincentes para o fenômeno amiúde exposto neste ensaio. Outra vez nos acudimos das profundas e ricas lições de Paulo de Barros Carvalho (ob. cit., p. 220-1). Ensina o eminente juristas:

Acreditamos ser essa a fisionomia jurídica do problema da responsabilidade, sempre que o sujeito escolhido saia da compostura interna do fato tributário. Em ambas as hipóteses (refere-se o autor ao contribuinte e ao responsável) teremos uma relação obrigacional de natureza tributária, visto que os sujeitos passivos foram retirados do interior da realidade objetiva descrita no suposto da norma.

"Não sucede o mesmo quando o legislador deixa os limites factuais (grifei), indo à procura de uma pessoa estranha àquele acontecimento do mundo, para fazer dele o sujeito passivo exclusivo... A obrigação tributária só se instaura com sujeito passivo que integre a ocorrência típica, seja direta ou indiretamente unido ao núcleo objetivo da situação tributada... O legislador não pode refugir dos limites constitucionais da sua competência, que é oferecida de maneira discreta, mediante a indicação de meros eventos ou bens.

Sendo assim, como explicar o vínculo surgido que junge o terceiro, estranho à situação tributária, ao pagamento de impostos? Responde-nos o citado doutrinador: "nosso entendimento é no sentido de que as relações jurídicas integradas por sujeitos passivos alheios ao fato tributado, apresentam a natureza de sanção administrativa".

Pelo entendimento desse brilhante autor, portanto, o que levou o CTN, no art. 130, a vincular o adquirente ao pagamento do tributo, devido pelo proprietário, foi por ele "não ter curado de saber, ao tempo da aquisição, do regular pagamento dos tributos devidos pelo alienante até a data do negócio. Por descumprir esse dever, embutido na proclamação de sua responsabilidade, é que se vê posto na contingência de pagar certa quantia" (ob. e loc.cit.). E que dever seria esse descumprido pelo adquirente? "Um dever de cooperação para que as prestações tributárias venham a ser satisfeitas", responde-nos Paulo de Barros Carvalho.

Sem embargo da brilhante exposição desse tributarista de escol, ousamos dissentir da solução proposta. Parece desarrazoado falar-se em "dever de cooperação", implícito no Ordenamento Jurídico. Ademais, se aceitássemos esse raciocínio, teríamos de admitir a metamorfose da obrigação tributária, devida pelo contribuinte, em sanção administrativa, já agora devida pelo "responsável". Ora, é patente a tentativa do tributarista em salvar o critério da proximidade física ou pessoal do fato gerador como critério seguro a determinar o sujeito passivo da obrigação. O terceiro substituto, por não se enquadrar nesse pressuposto, não poderia estar obrigado tributariamente. Mas convenhamos sobre a inabilitação da teoria proposta. O adquirente ter o dever de averiguar se os impostos foram ou não pagos, forrando-se da incidência do artigo 130, é afirmação equivocada. Sendo "conversas" as relações jurídicas, intersubjetivas, (Lourival Vilanova, ob. cit., p. 36), somos forçados a descrer num dever jurídico do adquirente consigo mesmo, cujo descumprimento ensejaria as conseqüências desse artigo citado. Outra deve ser a solução procurada, ainda mais se pensamos que, sendo uma sanção administrativa a obrigação decorrente da não averiguação da existência de impostos devidos por outrem, não teríamos como explicar o porquê do contribuinte (=proprietário) livrar-se do débito existente. Há, na construção, um vício inapagável.

Volvemos, dessarte, ao ponto com o qual iniciamos essa quarta parte do nosso ensaio. Mas acrescentemos àquelas cinco conclusões iniciais, outras duas: i) a "responsabilidade" não nasce de uma sanção administrativa; e g) o contribuinte é aquele que deve aos cofres públicos; e, em não pagando o devido, se submete à imissão da atividade executiva em seu patrimônio.

Postas tais premissas, passemos ao nosso entendimento.

Muito vimos insistindo, durante todo ocorrer de nossa exposição, na utilização do conceito de incidência como o mais eficaz meio para o entendimento do mundo jurídico e, a fortiori, o problema da "responsabilidade" tributária. Marcos Bernardes de MeIlo (Teoria do Fato Jurídico, p. 54 e segts.), fazendo largo uso da doutrina de Pontes de Miranda, conceitua a incidência como o "efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte de seu suporte fáctico que o direito considerou relevante para ingressar no mundo jurídico". Lourival Vilanova (Causalidade e Relação no Direito, p. 82) toca o mesmo diapasão: "A incidência é uma técnica do direito, é seu modo de referir-se aos objetos e situações objetivas, através do pressuposto ou hipótese fáctica da norma. Se o fato que corresponde à hipótese normativa não se verificou, nenhuma relação jurídica propriamente (mesmo em sentido amplo) se deu" (grifos do autor).

Pelo que se vê, é pela incidência da norma sobre os fatos descritos nela e ocorridos no mundo, que nasce o fato jurídico. E apenas desse fato, que adquiriu significação jurídica, nascem efeitos jurídicos. Sem fato jurídico, portanto, não há falar-se em relação jurídica e demais efeitos de estilo. Libertemo-nos, pois, das teorias construídas sem a atenção devida a essa fenomenologia. Os que ainda falam em "fato gerador" e quejandos, ainda não conseguiram ultrapassar a mistura, ainda muito em moda, entre mundo fáctico e jurídico.

Dissemos que a norma incide sobre fatos. Pois bem, mas os fatos descritos em seu descritor podem ser também jurídicos, porquanto o mundo do direito não está separado do mundo em geral, senão que nele está enraizado, como especialização ou subconjunto seu. Marcos Bernardes de Mello (ob.cit., p.39) bem o diz: "O mundo jurídico é, apenas, parte do mundo geral, portanto compõe o todo. O fato jurídico, como os seus efeitos jurídicos, quando entram na composição de um suporte fáctico, são tomados como fatos jurídicos ou como efeitos jurídicos, tal qual são... A distinção entre o mundo dos fatos (geral) e o mundo do direito é puramente lógica, nunca fáctica", ou, como diríamos, nunca ontológica.

Tais conceitos, parece-nos, são essenciais para resolvermos o problema proposto, qual seja: por que o patrimônio de um terceiro é agredido para pagar a dívida de outrem (contribuinte)? Sem embargo da solução que apresentaremos, calha aqui deixar claro que não iremos apresentar toda a teoria por nós desenvolvida, pois ultrapassaria os lindes desse trabalho. Não poderíamos, nesse apertado espaço, desenvolver as considerações necessárias sobre o conceito de direito subjetivo, pretensão e ação de direito material, tão úteis - embora aqui não utilizados - para demonstrar a falácia do conceito de garantia. Tal viés nos levaria a estremar o conceito de ação material e ação processual, distinção árdua e complexa - embora necessária - cujo manuseio nos explicaria uma série de indagações feitas no transcorrer desse trabalho, principalmente no campo do processo civil, como a tentar alcançar uma conceituação precisa sobre condenação e execução (forçada e lato sensu), ainda não conseguida por boa parte da doutrina, presa ainda a classificação tripartida da sentença (sobre o assunto, vide o meu Direito Processual Eleitoral, onde fazemos a distinção referida, aplicando-a naquele ramo do Direito). Só então estaríamos realmente munidos para expor, em toda a sua extensão, a teoria que desenvolvemos. Para o momento, pois, tentaremos demonstrar alguns resultados práticos a que chegamos, os quais correspondem às conclusões anteriormente expostas.

Voltemos ao art. 130 do CTN. Por uma simples leitura dele, constatamos ser o contribuinte o proprietário do imóvel vendido, que devia o pagamento de determinado imposto relativo ao imóvel. Supondo que apenas o IPTU fosse o imposto devido -- de modo a facilitar nossa exposição --, o proprietário seria o sujeito passivo da obrigação tributária nascida desse tributo. E é de ver-se que o critério ou aspecto material constante da norma-matriz de incidência do IPTU é, justamente, a propriedade. Ora, quando o proprietário vende seu domínio, estando em débito com o fisco, o adquirente, em virtude do prescritor do art.130, passa a ser o "responsável" pelo pagamento da quantia devida. E o dado relevante desse fato é que esse artigo tem, como aspecto material, o mesmo aspecto material da regra matriz do IPTU: a propriedade.

Para o CTN, por conseguinte, não importa quem é o proprietário no momento do nascimento da relação obrigacional, mas sim quem é ele no momento do adimplemento voluntário ou forçado. Temos, pois, que o art. 130 incide com duplo efeito: desjuridiciza a relação de crédito-débito entre o proprietário inicial (contribuinte primário) e o fisco; e juridiciza a relação entre o adquirente e o fisco. Podemos dizer, portanto, que o proprietário deixa de ser contribuinte, não tendo mais relação jurídica tributária com o credor do imposto; como também devemos afirmar que o adquirente é o contribuinte, cujo patrimônio servirá para o pagamento do valor devido.

Restaria uma última indagação: qual a relação remanescente entre o adquirente e o proprietário? Só Ordenamento Jurídico poderia decidir essa questão, não havendo solução a priori. Ou seria dada ao contribuinte (adquirente) uma ação para receber o quantum pago por ele; ou não lhe caberia qualquer ação regressiva, tendo que suportar o ônus de sua desatenção.

Como se vê, é despicienda a noção de responsabilidade para resolver um problema que, aplicando corretamente conceitos como o da incidência, torna-se de fácil entendimento. Tal procedimento adotado é aplicável a todos os casos que a doutrina chama de "responsabilidade", à exceção daqueles em que inexiste modificação do pólo passivo da relação obrigacional, mas sim aplicação de uma pena pecuniária por descumprimento de uma obrigação administrativa procedimental. Em casos que tais, não há obrigação tributária, pois, consoante demonstramos, multa não tem natureza tributária.

Ao propormos uma nova explicação para o que a doutrina e o CTN convencionaram denominar de responsabilidade tributária, acabamos por chegar a algumas conclusões divergentes da doutrina dominante, as quais reproduziremos aqui: a) a relação tributária nasce do fato jurídico tributário e, portanto, só ao tributo se refere; b) a pena pecuniária, inobstante seja cobrada em conjunto com o tributo, nasce de um fato jurídico ilícito, não tendo natureza tributária; c) o sujeito passivo da relação tributária é o contribuinte, o qual é determinado pela ocorrência de um fato previsto no descritor normativo de uma regra tributaria, a qual dá ensanchas à incidência dessa norma, com a conseqüente jurisdicização desse fato (fato jurídico tributário), do qual dimanam efeitos, um deles, a subjetivação passiva na relação obrigacional tributária (contribuinte); d) o critério da proximidade ou pessoalidade em relação ao "fato gerador" é imprestável para a determinação do contribuinte de um tributo qualquer; e) o conceito de responsabilidade mostra-se insuficiente para explicar o fenômeno da satisfação do credor pela agressão do patrimônio do terceiro, o qual não fazia parte da relação obrigacional tributária; f) a responsabilidade não nasce de uma sanção administrativa; g) a responsabilidade consiste, basicamente, numa modificação do pólo passivo da relação obrigacional, em que um terceiro relativamente ao fato jurídico tributário original, substitui o devedor (contribuinte), assumindo a sua posição jurídica, graças a incidência de uma outra norma jurídica de duplo efeito juridicizante e desjuridicizante); e h) contribuinte é aquele que deve aos cofres públicos, em virtude da existência de um fato jurídico tributário, e, ao não pagar a quantia devida, se submete à imissão da atividade executiva em seu patrimônio.

Tais premissas nos levaram ao resultado apresentado, o qual poderíamos resumir assim: a norma tributária, ao modificar o sujeito passivo da relação obrigacional já existente, não o faz de modo aleatório, nem utiliza o critério da pessoal e física aproximação do fato gerador. Ao revés, utiliza-se, em seu suporte fáctico, de algum elemento do descritor da norma-matriz de incidência do tributo, desjuridicizando algum efeito, ou alguns, ou todos, ou o próprio fato jurídico tributário original, dando-lhe nova significação jurídica (jurisdicização).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares da. Apontamentos sobre a responsabilidade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1337. Acesso em: 24 abr. 2024.