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Direitos fundamentais: núcleo essencial como limite de flexibilização

Direitos fundamentais: núcleo essencial como limite de flexibilização

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1 Considerações acerca dos direitos fundamentais

Como forma de ilustrar as definições aqui apresentadas, analisaremos dois casos de aparente conflito entre direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e invioláveis, quais sejam: a) o direito à vida e o direito à pesquisa da célula-tronco embrionária (art. 5º, caput); b) o direito à liberdade (art. 5º, caput) e o direito à saúde (art. 6º, caput).

Cumpre salientar, preliminarmente, que a liberdade, a exemplo das outras garantias constitucionais, não resulta da mera ausência de proibição, mas implica a existência de uma permissão que confere, expressamente, para cada indivíduo a possibilidade de escolher agir como melhor lhe aprouver, assumindo, entretanto, a responsabilidade pelas consequências nocivas de suas ações. Então, as questões a serem solvidas pelos intérpretes da Constituição constantemente envolvem valores assegurados positivamente, ou seja, com permissões constitucionais positivas e negativas, ao passo que se confrontam direitos fundamentais.

Ora, em situação de aparente confronto entre dois direitos fundamentais, um há que ser relativizado, posto que não há direito absoluto (sequer o direito à vida, vez que a própria Carta Magna o relativiza em casos de guerra). No processo de relativização, um direito deve sobrepor-se ao outro, já que a tutela efetiva de um passa por entre o círculo de proteção do outro. Difícil é se identificar ou estabelecer o momento/local/ponto exato onde se termina ou começa determinado círculo de tutela de direito fundamental.


3 Núcleo essencial dos direitos fundamentais: limite dos limites

Caracterizar os direitos fundamentais não é tarefa fácil, quanto mais identificar neles o núcleo essencial para se definir o limite de sua flexibilização, ou seja, precisar um limite para a atividade legislativa, de forma que esta não atinja aquele conteúdo mínimo inviolável da norma constitucional, o que resultaria na extirpação do próprio direito. Assim, deve-se delimitar uma fronteira sobre a qual não pode o legislador infraconstitucional ultrapassar sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Assim, uma vez considerado o conteúdo essencial como o núcleo de um direito fundamental e, portanto, figurando este como limite dos limites, conclui-se que o conteúdo essencial veda qualquer tentativa reguladora do legislador, como uma verdadeira muralha frente ao mesmo.

Entretanto, é imperioso ressaltar que em grande parte das situações onde se tutela um direito do homem, constata-se o enfrentamento de dois direitos fundamentais como no caso em tela, ocasião em que não é possível proteger um deles sem flexibilizar o outro.

Desta forma, dada a necessidade de harmonização entre os direitos fundamentais que se confrontam nos casos em espeque, torna-se imperiosa a relativização dos mesmos.

3.1 O direito à vida e o direito à pesquisa da célula-tronco embrionária

Conforme já aduzido, a primeira questão proposta confronta o direito à vida com o direito à pesquisa com células-tronco embrionárias. A pergunta inicial que deve ser respondida diz respeito ao núcleo essencial do direito à vida. Segundo Maria Garcia, a dignidade da pessoa humana não só é o núcleo essencial do direito à vida, como de todos os direitos fundamentais, in verbis:

Nesse entendimento e seguindo a classificação de Canotilho sobre a tipologia dos princípios constitucionais, o mesmo autor, com apoio em José Afonso da Silva, adota, para o princípio da dignidade da pessoa humana, a categoria de "princípio político constitucionalmente conformador, ou seja, dentre aqueles princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais": "são princípios normativos, rectrizes e operantes", que todos devem ter em conta, "seja em atividades interpretativas, seja em actos inequivocamente conformadores (leis, actos normativos)". [03]

Assim, refere a aludida professora a José Afonso da Silva que credita à dignidade da pessoa humana um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.

Tomando por supedâneo o supra aduzido, ou seja, que a dignidade da pessoa humana constitui o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais, é necessário analisar as situações concretas, pois existem dispositivos constitucionais que expressam direitos fundamentais em choque e a solução para o aparente conflito constrói-se com base na harmonização de direitos ou na prevalência de um sobre o outro. No mesmo sentido Canotilho:

Todavia, uma eventual relação de prevalência só em face das circunstâncias concretas só poderá determinar, pois só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2)C, ou seja, um direito (D1) prefere (P) outro D2 em face das circunstâncias do caso (C). Note-se que este juízo de ponderação e esta valoração de prevalência tanto podem efectuar-se logo a nível legislativo (exemplo: o legislador exclui a ilicitude da interrupção da gravidez em caso de violação) como no momento da elaboração de uma norma de decisão para o caso concreto (exemplo: o juiz adia a discussão de julgamento perante as informações médicas da iminência de enfarte na pessoa do acusado). [04]

No que diz respeito à pesquisa com células-tronco embrionárias e o direito à vida, invocou-se este último para rechaçar aqueloutro. De acordo com o fundamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510 proposta no Supremo Tribunal Federal, o art. 5º e parágrafos da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), os quais permitem as pesquisas com células-tronco embrionárias, atacariam flagrantemente o direito à vida, bem como à dignidade da pessoa humana (repita-se, o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais), já que esta "teria início no momento da fecundação" o que daria ao embrião a condição de ser humano. No entanto, o assunto é controverso ao passo que sequer na comunidade científica existe consenso no que tange o início da vida.

Na busca da solução para a primeira questão proposta, fazendo uso da ponderação, creio que assegurar-se o direito à pesquisa com células-tronco embrionárias - as quais são retiradas de embriões humanos com poucos dias de vida e que podem produzir qualquer tipo de célula, via de consequência, com importante potencial terapêutico no auxílio à medicina no tratamento de uma gama de doenças que afetam milhões de vidas por todo o mundo - é a própria confirmação do valor supremo e constitucionalmente fundamental à vida.

Ora, as células são retiradas de embriões produzidos por fertilização in vitro, congelados há mais três anos ou que tenham se tornado inviáveis, vale dizer, não darão origem a uma nova pessoa, inclusive, têm como destino o descarte por não uso, em razão de previsão normativa. Assim, trata-se de uma etapa inicial da vida sem perspectiva de prosseguimento e muito anterior à condição de pessoa humana. Ou nos dizeres do Ministro Carlos Ayres Britto: "A vida começa na fecundação. O embrião é o embrião, o feto é o feto, e a pessoa humana é a pessoa humana. A pessoa humana não se antecipa à metamorfose do embrião. Não há pessoa humana embrionária".

Ressalte-se, a vida digna, núcleo essencial dos direitos fundamentais, deve prevalecer. Assim, as pesquisas com células-tronco, em face do seu potencial terapêutico, poderão auxiliar milhões de pessoas portadoras de diversas graves patologias como os males de Parkinson, de Alzheimer, a diabetes ou, ainda, os sequelados por traumas à coluna cervical. Dessa feita, busca-se garantir a esses indivíduos a efetivação de um direito constitucional fundamental: a vida com dignidade.

3.2 O direito à liberdade de fumar e o direito à saúde

A segunda questão proposta diz respeito ao confronto entre a liberdade de fumar e o direito à saúde.

A Constituição Federal estabelece que o tabaco, ainda que seja produto lícito, deve ter seu uso regulamentado por lei, mormente no que concerne a restrições sobre a veiculação de propaganda comercial e ao dever de advertir os usuários dos malefícios de seu uso (art. 220, §4º). Portanto, em nenhum momento é suprimida a liberdade de fumar, mas tão-somente é admitida a hipótese de disciplinamento legal dessa liberdade.

Hoje, é vedada legalmente a prática do fumo em todo e qualquer recinto coletivo, mas essa vedação legal, que encontra validade constitucional, muito embora relativize o direito à liberdade (de fumar) constitucionalmente assegurada, pondera e coloca o direito à saúde em posição preeminente. Isso, porque, leva em consideração que as pessoas não-fumantes que frequentam ou se utilizam dos recintos onde é legalmente proibido o fumo não são obrigadas à inalação de substâncias nocivas à sua saúde. Então, entram em aparente conflito não só a liberdade de fumar e o direito à saúde, como também a liberdade de fumar e a liberdade de não fumar.

Dessa forma, também nesse caso, entendo que a proibição de fumar em determinados recintos não exclui, necessariamente, a liberdade assegurada constitucionalmente, tendo em vista que as pessoas não-fumantes também são titulares do direito fundamental à liberdade, bem como aos fumantes são reservados espaços a esta prática.

Em suma: a violação desse preceito normativo (a proibição da prática do fumo em recintos públicos) implica na ofensa não só ao direito à saúde, mas também ao direito à liberdade dos indivíduos não-fumantes.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510. Origem: Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3510&processo=3510>. Acesso em: 03 mar. 2009.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Portugal: Coimbra, 1993.

GARCIA, Maria. Desobediência civil, direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

______________. Limites da ciência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

  1. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Portugal: Coimbra, 1993, p. 531.
  2. GARCIA, Maria. Desobediência civil, direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 164.
  3. GARCIA, Maria. Limites da ciência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 204.
  4. CANOTILHO, op. cit., p. 646-647.

Autor

  • Fernanda Matos

    Fernanda Matos

    Advogada. Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR)Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA); especialista em direito e processo tributário pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR); especialista em direito público com ênfase em Constitucional e Administrativo pela Escola Superior de Advocacia do Amazonas (ESA/OAB-AM). Professora de Direito Tributário na Universidade Paulista e Escola Superior Batista do Amazonas (ESBAM), Vice-Presidente da Associação Amazonense de Advocacia - ADVOGA.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS, Fernanda. Direitos fundamentais: núcleo essencial como limite de flexibilização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2437, 4 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14449. Acesso em: 24 abr. 2024.