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Juizados Especiais da Fazenda Pública.

Capacidade de ser parte

Juizados Especiais da Fazenda Pública. Capacidade de ser parte

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A Lei nº 12.153/2009, que entra em vigor no dia 23 de junho de 2010, cria os Juizados Especiais da Fazenda Pública nos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios.

Diante da diversidade de leis regulamentando os processos dos Juizados Especiais (Leis nº 9.099/95, 10.259/2001 e 12.153/2009, além do Código de Processo Civil) há uma maior possibilidade de existência de antinomias, além de controvérsia no preenchimento das lacunas legais.

Entre elas, destaca-se o problema da capacidade de ser parte, que já existe para algumas pessoas na Lei nº 10.259/2001 (dos Juizados Especiais Federais), e que se repetirá na Lei nº 12.153/2009, em virtude da similaridade de normas.

A capacidade processual é definida por José Frederico Marques como a "(...) aptidão de uma pessoa para ser parte, isto é, sujeito de direitos e obrigações, faculdades e deveres, ônus e poderes na relação processual, como autor, réu, ou interveniente" [01]. Para Humberto Theodoro Júnior é a "(...) aptidão de participar da relação processual, em nome próprio ou alheio" [02], e está relacionada com a capacidade civil, prevista nos arts. 1º/6º (pessoas naturais) e 40/52 (pessoas jurídicas), do Código Civil.

Doutrinariamente, distingue-se a capacidade de direito (ou de gozo) da capacidade de fato (ou de exercício): a capacidade de direito é aquela conferida pelo art. 1º do Código Civil, e derivada da personalidade jurídica, sendo toda pessoa capaz de direitos e deveres. Porém, por razões biológicas ou psicológicas, nem todos podem exercer pessoalmente esses direitos e deveres (os incapazes, abordados adiante), motivo pelo qual se exige a capacidade de fato. Quem possui as duas aptidões tem capacidade civil plena.

Nesse sentido, o art. 7º do CPC prevê que "toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo". Consequentemente, quem tem capacidade civil plena (de direito e de fato) também possui capacidade processual.

Com fundamento nessa classificação de direito material, alguns doutrinadores distinguem a capacidade de ser parte da capacidade processual: (a) a capacidade de ser parte está relacionada com a aptidão civil (de direito) de ser sujeito de direitos e obrigações; (b) e a capacidade processual (capacidade para agir, ou para estar em juízo) envolve a possibilidade de realizar pessoalmente os atos processuais, ou seja, decorre da capacidade civil de fato.

Destaca Fredie Didier Jr. que "a capacidade processual pressupõe a capacidade de ser parte. É possível ter capacidade de ser parte e não ter capacidade processual; a recíproca, porém, não é verdadeira" [03].

Da mesma forma que no direito civil, no direito processual civil a parte pode ter a capacidade plena de pleitear ou defender seu direito (capacidade de ser parte e capacidade processual), como pode ter aptidão para somente ser titular de direitos e deveres, não podendo pessoalmente demandar ou ser demandado judicialmente (capacidade de ser parte); nessa segunda situação estão os incapazes.

Já a capacidade postulatória (ius postulandi) é um pressuposto técnico, exigido para a prática dos atos processuais postulatórios, além da aptidão de direito material. Logo, mesmo que o titular do direito tenha capacidade de ser parte e capacidade processual, necessita, em regra, para invocar a prestação jurisdicional, ou para se defender em um processo, ser representado por advogado. Nesse sentido, o art. 36 do CPC preceitua que "a parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimento dos que houver". Excepcionalmente essa capacidade postulatória é conferida independentemente do exercício da advocacia, como nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública, no pedido de habeas corpus, nas ações trabalhistas, e na parte final do citado art. 36 do Código de Processo Civil.

A Lei nº 10.259/2001 delimita em seu art. 6º a capacidade de ser parte nos Juizados Especiais Federais:

"Art. 6º Podem ser partes no Juizado Especial Federal Cível:

I – como autores, as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, assim definidas na Lei nº 9.317, de 5 de dezembro de 1996;

II – como rés, a União, autarquias, fundações e empresas públicas federais".

A Lei nº 12.153/2009 assim regulamenta a capacidade de ser parte nos Juizados Especiais da Fazenda Pública:

"Art. 5º  Podem ser partes no Juizado Especial da Fazenda Pública:

I – como autores, as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, assim definidas na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006;

II – como réus, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os Municípios, bem como autarquias, fundações e empresas públicas a eles vinculadas".

Assim, podem atuar nos Juizados da Fazenda Pública: (a) como autores, as pessoas naturais, as microempresas e as empresas de pequeno porte; (b) e como réus as pessoas jurídicas relacionadas com os entes legalmente legitimados (Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios – Administração Pública direta –, além de autarquias, fundações e empresas públicas a eles vinculadas – Administração Pública indireta).

Ficaram excluídas as sociedades de economia mista, que têm capacidade para ser demandadas nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais (Lei nº 9.099/95).

Essa regulamentação insuficiente causará divergência na prática dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, tendo em vista que a Lei nº 9.099/95 excepciona determinadas pessoas dos Juizados Especiais Cíveis da Justiça Estadual. De um lado, o § 1º de seu art. 8º especifica quem são as pessoas quem tem capacidade ativa de ser parte:

"§ 1º Somente serão admitidas a propor ação perante o Juizado Especial:

I - as pessoas físicas capazes, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas;

II - as microempresas, assim definidas pela Lei nº 9.841, de 5 de outubro de 1999;

III - as pessoas jurídicas qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, nos termos da Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999;

IV - as sociedades de crédito ao microempreendedor, nos termos do art. 1º da Lei nº 10.194, de 14 de fevereiro de 2001".

Por outro lado, o caput do art. 8º da Lei nº 9.099/95 prevê que "não poderão ser partes, no processo instituído por esta Lei, o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil".

Evidentemente, as pessoas jurídicas de direito público são partes (no polo passivo) nos Juizados Especiais da Fazenda Pública.

Contudo, o incapaz, o preso, a massa falida e o insolvente civil podem ser autores nestes Juizados?

Conforme ressaltado, a Lei nº 12.153/2009, ao reproduzir dispositivos da Lei nº 10.259/2001, manteve a omissão acerca da aplicação subsidiária – ou não – da Lei nº 9.099/95 na regulamentação da capacidade de ser parte.

Em oportunidades anteriores, sustentei a capacidade de ser parte do incapaz [04] e do preso [05] nos Juizados Especiais Federais Cíveis, apesar da existência de vedação expressa no art. 8º da Lei nº 9.099/95.

Apesar de a Lei nº 9.099/95 ser aplicável subsidiariamente aos Juizados da Fazenda Pública, seu art. 8º não pode incidir, tendo em vista que o art. 5º da Lei nº 12.153/2009 lista expressamente quem pode demandar e ser demandado. O aproveitamento de norma da Lei dos Juizados Estaduais não pode se dar com o intuito de restringir o acesso dos incapazes e dos presos ao Judiciário. Raciocínio similar pode ser utilizado para a massa falida e o insolvente civil, com a diferença de que, sendo a primeira um sujeito de direito despersonalizado, não está abrangida pelo art. 5º, I, da Lei nº 12.153/2009 (e, portanto, não pode a massa falida ser parte nos Juizados Especiais da Fazenda Pública) [06].

Porém, independentemente de opinião, a regulamentação lacunosa certamente causará controvérsia, importando em restrição no acesso aos Juizados Especiais da Fazenda Pública, e produzindo conflitos de competência que dificultarão a efetivação dos direitos de pessoas em situação diferenciada (principalmente os incapazes e os presos).


Notas

  1. MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1997, p. 339.
  2. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 45. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 87.
  3. DIDIER JR. Fredie. Curso de direito processual civil. 6. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 207.
  4. CARDOSO, Oscar Valente. A capacidade do incapaz de ser parte nos Juizados Especiais Federais Cíveis. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, nº 65, pp. 63-74, ago. 2008.
  5. CARDOSO, Oscar Valente. O direito do preso de ser parte nos processos dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 380, pp. 87-96, jun. 2009.
  6. Essas discussões são aprofundadas em: CARDOSO, Oscar Valente. Juizados Especiais da Fazenda Pública (Comentários à Lei nº 12.153/2009). São Paulo: Dialética, 2010.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente. Juizados Especiais da Fazenda Pública. Capacidade de ser parte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2542, 17 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15047. Acesso em: 23 abr. 2024.