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A livre circulação dos trabalhadores: análise comparativa - Mercosul e União Européia

A livre circulação dos trabalhadores: análise comparativa - Mercosul e União Européia

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Sumário: Preâmbulo. 1. Mercosul: integração econômica ou mercado comum? 2. A normatividade das migrações trabalhistas. 2.1. A legislação trabalhista brasileira e o Mercosul. 3. A estrutura institucional do Mercosul e da União Européia. 4. A unificação ou harmonização das legislações? 5. Conclusões. Bibliografia


Preâmbulo

A conjuntura mundial, em razão do fenômeno da globalização da economia, vem se direcionando no sentido de construir uma grande aldeia global. Verifica-se entre os países um crescente grau de interdependência seja econômica, política, social e inevitavelmente jurídica, o que propicia a formação dos grandes blocos. A sociedade moderna presencia um processo de profundas transformações e rupturas em todos os segmentos sociais. Na prática significa um redirecionamento das tendências, ou seja, caminha-se para a primazia de um direito único, de um Direito Comunitário frente ao ordenamento jurídico interno.

É possível destacar níveis de colaboração econômica multilateral que podem ser utilizados na caracterização de integração dos Estados, quais sejam:

a)A formação de uma zona de livre comércio, que se caracteriza basicamente pela eliminação de barreiras alfandegárias e outras formas de restrição comercial.

b)A união aduaneira que além da zona de livre comércio, requer o estabelecimento de uma tarifa externa comum.

c)Mercado comum que congrega as duas etapas acima mencionadas e mais a livre circulação de pessoas, serviços e bens.


1. Mercosul: integração econômica ou mercado comum?

Feitas estas considerações iniciais vamos nos concentrar no Tratado ratificado pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai referente a constituição de um Mercado Comum do Cone Sul (Tratado Mercosul/1991). De acordo com o considerando do Tratado a integração entre os Estados-Partes constitui condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social e o Tratado em si, representa um avanço no sentido de consolidar o processo de integração da América Latina.

Ora, se o fim do Mercosul é a constituição de um Mercado Comum, nos moldes da União Européia que por sua vez tem como missão promover, em toda a Comunidade, o desenvolvimento harmonioso e equilibrado das atividades econômicas, um crescimento sustentável e não inflacionista que respeite o ambiente, um alto grau de convergência dos comportamentos das economias, um elevado nível de emprego e de proteção social, o aumento do nível e da qualidade de vida, a coesão econômica e social e a solidariedade entre os Estados-membros, bem como a formação de um mercado interno caracterizado pela abolição entre os Estados-membros, dos obstáculos à livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais,(1) então é correto afirmar que o Tratado de Assunção também prevê a livre circulação dos trabalhadores?

Este é o ponto fulcral da análise, ou seja, objetiva-se estabelecer o cotejo entre o Mercosul e a União Européia, no que tange a livre circulação dos trabalhadores.

Antes de adentrarmos no mérito da questão é necessário fazer algumas ponderações a exemplo do tempo de formação, como também das peculiaridades econômicas, sociais, jurídicas e institucionais dos dois blocos. Entretanto, insistimos, se a finalidade do Mercosul é a constituição de um mercado comum, nada mais lógico que recorrer ao paradigma europeu.


2. A normatividade das migrações trabalhistas

Iniciaremos então, com as disposições previstas no Tratado de Roma, instituidor da Comunidade Econômica Européia, acerca da livre circulação dos trabalhadores: "em primeiro lugar que a circulação deve ficar assegurada na Comunidade, implica também na abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho e por fim que a circulação ainda compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública, o direito de:

a)responder as ofertas de emprego efetivamente feitas;

b)deslocar-se livremente, para o efeito, no território dos Estados membros;

c)residir num dos Estados membros a fim de nele exercer uma atividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais;

d)permanecer no território de um Estado membro depois de nele ter exercido uma atividade laboral, nas condições que serão objeto de regulamentos de execução a serem estabelecidos pela Comissão". (2)

Diante das primeiras indagações são as seguintes: há de fato um compromisso do Mercosul com as questões sociais, precisamente, com a livre circulação dos trabalhadores? Será que este propósito fica expresso, se se levar em conta que o considerando do Tratado faz-se referência ao desenvolvimento econômico com justiça social ? E porque que ao enfatizar acerca da livre circulação faz menção expressa a bens, serviços e fatores produtivos e nada menciona sobre os trabalhadores, pode-se ampliar o entendimento?

Particularmente, consideramos muito tênue, genérico e vago as preocupações do Mercosul com a justiça social, principalmente se levarmos em conta os trechos do Tratado europeu (acima transcritos) e a Constituição Federal/1988. Essa inicia privilegiando a dignidade da pessoa humana, ao lado dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos e ainda consagra como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Mais adiante, ao dispor sobre a ordem econômica, o texto constitucional, consagra que esta é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social elencando, entre outros, os princípios da busca do pleno emprego. E por fim, ao tratar da ordem social, ratifica que essa tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.(3)

Todo este aparato legal é para consubstanciar a tese da fragilidade do Tratado do Mercosul, frente às questões sociais.

2.1. A legislação trabalhista brasileira e o Mercosul

Quanto as normas específicas de proteção ao trabalho não podemos deixar de mencionar mais uma vez a Constituição Federal, arts. 6º, 7º e 8º, (se é que ainda são direitos garantidos e respeitados) e a CLT.

Esses dois diplomas legais, por sua vez trazem à baila um outro problema.

O fenômeno da globalização traz ínsito o argumento da flexibilização das relações de trabalho, como solução para crise econômica e a redução do desemprego, bem como, o da desconstitucionalização. Os defensores dessas teses criticam veementemente a atual legislação. Argumentam que o intervencionismo estatal está na contra mão dos tempos. É necessário rever o modelo típico da relação de trabalho. É imperioso a saída do Estado para tornar as relações mais céleres e compatível com as exigências do mercado cada vez mais competitivo. Sabe-se que todos esses argumentos são oriundos de uma política neoliberal.

Os dados demonstram que mesmos nos países marcados pela ausência ou diminuta participação estatal nas relações trabalhistas, a flexibilização em nada contribuiu para minorar os efeitos nefastos do desemprego, ou da crise econômica, nem mesmo propiciou um crescimento da produção, a exemplo de alguns países asiáticos e até mesmo europeus.

Todas estas conquistas trabalhistas levaram anos para se concretizar e foi muito alto o preço. Não faz sentido no momento atual permitir um retrocesso e trazer à tona o princípio da autonomia da vontade. A imperatividade e a cogência das normas trabalhistas são limitadoras da liberdade contratual. São elas que permitem haver um "equilíbrio" na relação. Verifica-se uma incompatibilidade entre os princípios do Direito do Trabalho e a filosofia neoliberal.

A pressão é muito grande e a tendência é abstenção estatal, e como saída vislumbramos o incremento e incentivo da negociação coletiva aliada a um crescente número de ratificações das convenções internacionais do trabalho.

Nesse sentido encontramos arrimo na seguinte declaração: "se torna imperioso ratificar o maior número de convenções internacionais do trabalho. Igualmente é necessário incrementar a negociação coletiva transnacional face à internacionalização das relações de trabalho e rever e reavaliar as leis internas.

De igual sorte, a ratificação do maior número possível de Convenções Internacionais do Trabalho, que visam a criar mecanismos harmônicos de proteção ao trabalho e ao trabalhador, proporcionando-lhes melhores condições de vida, é um passo de alta significação e que deve ser buscado pelos Estados que integram o bloco".(4)

Há ainda alguns princípios consagrados na legislação trabalhistas que acabam sendo incompatíveis com a idéia de integração.

O sistema jurídico pátrio prevê um conjunto de fontes do direito. No universo das fontes estão contidos os princípios. Para estes não há uma definição única, no entanto há uma tendência generalizada de reconhecimento do papel fundamental que eles exercem, bem como a posição hierárquica que ocupam no sistema das fontes, tornando-os imprescindíveis para o sistema jurídico.

De acordo com Gomes Canotilho, o sistema jurídico é um sistema normativo, ou seja, formado por normas onde princípios e regras são espécies. O autor sugere a utilização de alguns critérios, a fim de estabelecer uma distinção, ainda que superficial, entre uma e outra espécie (devido à complexidade da questão não se pode determinar com precisão). Para tanto, menciona um entre outros, o critério da "< Proximidade > da ideia de direito: os princípios são < standards > juridicamente vinculantes radicados nas exigências de < justiça > (DWORKIN) ou na < ideia de direito > (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional".(5)

Um outro aspecto também merecedor de comentários é a possibilidade da convivência de princípios, mesmos conflituosos; enquanto que as regras antinômicas tornam-se excludentes.

Os princípios também servem de elo de ligação para aferir a concretização da Justiça, em caso de lacuna da lei. Essa é a hipótese prevista no art 4º da LICC: "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". Servem também para externar a intrínseca relação existente entre eles e a dicotomia direito privado e direito público. Em outras palavras, da mesma maneira que existem os princípios gerais de direito, há também aqueles que são específicos a determinado ramo.

Segundo Tercio Ferraz "a distinção permite uma sistematização, isto é, o estabelecimento de princípios teóricos, básicos para operar as normas de um e de outro grupo, ou seja, princípios diretores do trato com as normas, com as suas consequências com as instituições que elas referem, os elementos congregados em sua estrutura. Estes princípios decorrem, eles próprios, do modo como a dogmática concebe direito público e privado. Os princípios, como se vê, são enunciados diretores da atividade humana juridicamente considerada".(6)

O princípio da territorialidade está previsto no art. 651 da CLT e tem como elemento determinante da competência da JCJ a localidade onde o empregado, seja na condição de empregado ou empregador, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro, ou seja, prevalece o lugar da execução do trabalho e não da contratação.

Interessante é a posição contrária adotada por Reginald Felker que coordena o princípio da territorialidade com o princípio da favorabilidade, como forma de evitar a rigidez do primeiro e ao mesmo tempo favorecer a livre circulação das pessoas. Para tanto defende o seguinte argumento: Um trabalhador contratado Buenos Aires para trabalhar no Brasil pode pactuar a competência argentina para resolver os possíveis conflitos laborais e inclusive estabelecer que as condições de trabalho se rejam pela lei nacional se for mais favorável que a estrangeira, respeitadas as disposições públicas estrangeiras e inderrogáveis. (7)

Menciona-se também o princípio da proporcionalidade previsto no art 352 e seguintes da CLT, o qual estabelece uma reserva de mercado para empregados brasileiros nas empresas nacionais.

Ressalta-se também a Lei nº 7.064/82 que dispõe sobre a situação de trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior e por sua vez, preceitua no art. 3º que a empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços:

I- [...]

II- a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.

Para os mais, céticos "não há definição legal no Brasil, sobre migração trabalhista e as regras do direito interno estão previstas na legislação comum sobre Estatuto do Estrangeiro, salvo algumas resoluções administrativas. Desse modo, a movimentação de pessoas, para trabalhar ou para outros fins, é regulada através das normas aplicáveis ao estrangeiro em geral, cujas origens são antigas".(8)

Verifica-se o descompasso da legislação pátria com os ideais de uma integração. Sendo premente sofrer uma reformulação.

Um outro aspecto bastante prejudicial ao processo de integração, diz respeito ao parco conhecimento que cada país tem das legislações de seus parceiros. Aliado a isso tem-se a discrepância normativa entre os integrantes do Mercosul. "A diferença entre legislações nacionais implica quebra do princípio da igualdade de tratamento previsto no Tratado de Assunção [...]".(9)

Um exemplo elucidativo desta situação é o valor do salário mínimo:

"Argentina 250 Us$,

Brasil 112 Us$,

Paraguai 244 Us$

Uruguai 128 Us$".(10)

Cabe ainda ressaltar que ao contrário do Brasil e da Argentina no Uruguai não se verifica a presença estatal nas relações laborais.

Denota-se que os avanços referentes a livre circulação dos trabalhadores no Mercosul são muito incipientes, apesar dos esforços do Grupo Mercado Comum, através do Subgrupo de Trabalho n. 11 (atual SGT-10), da proposta de adoção de uma Carta Social de princípios e normas sociais básicas a serem observadas pelos países do Mercosul e também da proposta dos trabalhadores quanto a Carta dos Direitos Fundamentais do Mercosul, mas mesmo assim continua muito distante do objetivo almejado. Não sendo nenhum exagero afirmar que por enquanto inexiste algo de concreto no tocante a matéria.

Não se pode olvidar que outros aspectos são relevantes, além de intrinsecamente relacionados, para uma análise comparativa, a exemplo da estrutura institucional e da necessidade da harmonização das legislações, em cada um dos blocos.

E assim passaremos ao próximo item.


3.A estrutura institucional do Mercosul e da União Européia

Quanto a este item nos deteremos, tão somente, da importância e da necessidade ou não de um Tribunal de Justiça Comunitário.

O Mercosul ao contrário da União Européia não contemplou em sua estrutura institucional o Tribunal de Justiça Comunitário. Optou para a solução de controvérsias, provenientes da interpretação, aplicação ou o não cumprimento das disposições contidas no Tratado de Assunção [...],o mecanismo da negociação direta, da intervenção do Grupo Mercado Comum e por fim do procedimento arbitral.(11)

Há apenas o comprometimento dos Estados-partes de adotar as medidas necessárias para assegurar a incorporação e o cumprimento das normas ao ordenamento jurídico nacional.

Segundo Marotta Rangel "o tribunal arbitral não em condições de exercer o controle efetivo de legalidade do Mercosul e de realizar um sistema orgânico de constante exegese do sistema de integração regional. Não dando ensejo sequer à elaboração de um corpus de decisões que nos assegurem da uniformidade necessária à tarefa de interpretação".(12)

Em contraposição, a União Européia desde a sua instituição, contemplou o Tribunal de Justiça Comunitário com competências previamente estabelecidas e destinado a garantir o respeito do direito na interpretação e aplicação do Tratado perante os países-membros da comunidade, bem como entre os cidadãos. A decisão proferida pelo Tribunal é obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que ela designar.

Pela própria terminologia, ou seja, comprometimento e obrigatoriedade, fica claro a autoridade de um e de outro.

Como se percebe a solução oriunda de um Tribunal de Justiça é muito mais consistente e acaba sendo um elemento de importância fundamental no processo de integração, além de favorecer a aproximação das legislações.

Torna-se inviável, países imbuídos em um processo de integração, se portarem "como uma integração com personalidade comunitária dividida, fracionada entre objetivos comunitários e as rigidez de condutas políticas-sociais internas dos estados-membros. [...] Que significado tem uma integração que carece de capacidade de consenso para identificar-se em alguns princípios e direitos trabalhistas essenciais aos trabalhadores?[...]. Resulta de modo claro a contradição entre propósitos comunitários trabalhistas e conduta interna do estados nacionais". (13)

De um modo geral, há um consenso acerca de quanto é representativo e necessário a constituição de um Tribunal de Justiça Supranacional para criar e consolidar um ordenamento jurídico novo, indistinto e uniformemente aplicável em todo o território, bem como dotado de competência para examinar e julgar casos de violações ou lesões a direitos, de pessoas físicas e jurídicas de direito privado interno, assegurados pelas normas comuns da integração.

Mas, por outro lado se esta pretensão é real, ela deve obedecer etapas, não é possível constituir um Tribunal sem que esse seja objeto de reflexão entre os envolvidos. Afinal, o princípio da soberania interna, ao longo dos tempos, sempre foi tido como um dos mais importantes de uma nação. Então é fundamental buscar o equilíbrio entre o direito interno e o direito comunitário, até mesmo para propiciar uma harmonização das legislações mais rápida e a consequente incorporação das normas no ordenamento jurídico interno.

Que um possível Tribunal de Justiça no Mercosul demande tempo é aceitável. Inviável é a falta de compromisso dos interessados em concretizá-lo e só se apercebendo da sua falta na ocorrência de demandas concretas.

Denota-se uma correlação entre os problemas, ou seja, a ausência de um Tribunal, dificulta o compromisso da harmonização das legislações entre os países e torna mais frágil o processo de incorporação das normas no plano jurídico interno.


4. A unificação ou a harmonização das legislações?

Fazendo-se uma leitura de ambos os Tratados, o de Roma e o de Assunção verifica-se o compromisso expresso assumido pelos Estados-membros respectivamente, no sentido de aproximar e harmonizar as legislações nacionais para lograr o fortalecimento do processo de integração regional.

Para haver a consolidação de um processo de integração faz-se mister uma harmonização jurídica. Até porque os impactos oriundos de um processo de integração plena não se restringem ao âmbito econômico. Há desdobramentos institucionais, sociais, e principalmente jurídicos, os quais representam o maior desafio do processo de integração. Sendo assim para que se dê um processo de integração é necessário o cumprimento de um estágio prévio, qual seja: a harmonização das legislações.

É muito comum a utilização do termo unificação como sinonímia de harmonização das legislações, mas são situações distintas. Em geral, na unificação há a pretensão de dotar os países envolvidos de uma legislação comum, afastando o princípio da soberania interna.

Segundo Martha Jimenez ao analisar a jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Européia, observa que é reiterado o entendimento do Tribunal no sentido de que o "Tratado Comunitário criou um novo ordenamento jurídico em favor do qual os Estados têm limitados, em âmbito cada vez mais amplo, seus direitos de soberania e cujos sujeitos não são unicamente os Estados Membros, são também seus nacionais".(14)

Ao passo que na harmonização se pretende eliminar as divergências entre os ordenamentos, mas cada um permanece com a autonomia da sua legislação. Busca-se uma convergência principalmente no que diz respeito as normas gerais.

O recurso à uniformização não é o mais acatado principalmente, se for levado em conta a sua inflexibilidade.

"À rigidez da unificação, na forma de direito supranacional com vigência em vários estados, buscou-se a alternativa de uma fórmula mais leve e arejada, encontrada na harmonização que significa, corretamente, a adaptação das legislações internas a uma diretriz comum tomada externamente. A escolha entre a unificação e a harmonização está intrinsecamente ligada à questão de como se quer uma comunidade econômica: com maior ou menor perda de soberania, construindo um Superestado ou cedendo o mínimo de individualidade para a autoridade central. Essa questão, como se vê, tem fundo filosófico, político e ideológico, parecendo claro que a opção pela forma mais atenuada da harmonização é a que mais se amolda aos princípios liberais e democráticos.

Por outro lado, a tarefa gigantesca de unificação pode ser substituída pela mera adoção uniforme de princípios gerais ou de pontos essenciais de determinada relação jurídica, o que também indica o caminho da harmonização como o mais adequado para atingir-se a uniformidade, ainda que parcial mas, sem dúvida no seu aspecto fundamental.

E entre a unificação completa, instituída em todos os níveis e que deve ser evitada, e o completo isolamento dos sistemas jurídicos dos Estados, que deve ser igualmente rejeitado, há um caminho intermediário que é o da harmonização". (15)

Feitas todas essas considerações é inconteste que o Mercosul detém uma estrutura eminentemente econômica, ainda que se considere a contemplação do princípio da gradualidade como mecanismo aliado ao elemento tempo para equacionar as diferenças e peculiaridades presentes em cada integrante do bloco. Não obstante, nada que justifique a maneira lenta como vêm se dado a superação das etapas. Ratificando o que fora dito acima, a livre circulação dos trabalhadores no Mercosul está no plano teórico.

Nesta mesma linha de pensamento nos filiamos a síntese, bastante pertinente, de Osanir de Lavor ao enumerar os problemas atuais do Mercosul e a necessidade de superá-los para a plenitude de uma integração, são eles:

"a) a inexistência, até o momento, de um Estatuto do Trabalhador Migrante;

b) o desencontro ainda existente das legislações sociais dos países-membros;

c) a ausência de normas protetoras do exercício da atividade dos profissionais liberais, com harmonização de legislação de ensino e equalização de currículos acadêmicos;

d)inexistência de acordos sobre a questão da "reserva de mercado" para os trabalhadores nacionais (sobre quais campos de atividade deve incidir a "reserva");

e)a falta de uma regulamentação, não uniforme, mas, pelo menos, harmoniosa dos direitos sociais comuns dos quatro países-membros;

f)a não-existência de regras de proteção para o trabalhador estrangeiro e para sua família, no que concerne à seguridade social;

g)a carência de normas reguladoras do exercício da atividade inter-nações ou internacional dos sindicatos;

h)a indolência dos estados-membros em relação à necessidade de reforma em suas Constituições para facilitarem os processos de integração e melhor se adaptarem às exigências das relações internacionais hodiernas." (16)


5.Conclusões

Após as considerações fica claro que os parceiros do Mercosul não estão dando a importância devida ao problema da livre circulação dos trabalhadores.

Hoje, passados oito anos da constituição do Tratado de Assunção, mesmo considerando o princípio da gradualidade, vê-se um processo de integração internalizado, ou seja, cada um dos parceiros com parcimônia em relação ao outro. As diferenças não foram superadas, a começar pela ausência de harmonização das legislações que representa a base de todo processo de integração.

O contexto do Mercosul é muito mais de uma união aduaneira, significando dizer que está no estágio da integração com fins econômicos e longe de alcançar o nível de mercado comum da União Européia.

Isto ficou muito patente quando se fez o cotejo os dois blocos a partir daqueles aspectos, quais sejam: a normatividade das migrações trabalhistas, precisamente a incompatibilidade da legislação brasileira frente ao processo de integração, a ausência de um Tribunal de Justiça supranacional e a incipiente harmonização das legislações entre os parceiros. Etapas já superadas pela União Européia.

Em suma, ou se dá um cunho mais incisivo de mercado comum ao Mercosul ou ele tende a ser mais um processo frustrado de integração vivido pela América Latina.

E por fim, no tocante a análise pretendida, ou seja, a livre circulação dos trabalhadores percebeu-se que ainda é muito genérico e vago as atenções com a matéria.


NOTAS

1. Cf. Tratado de Roma alterado pelo Tratado de Maastricht, art. 2º e 3º, c.

2. Tratado de Roma, art. 48.

3. Constituição Federal, arts. 1º, III e IV , 3º, I, 170, VIII e 193.

4. Georgenor de Sousa Franco Filho. Livre circulação de trabalhadores no Mercosul. Revista Consulex, 1998, p. 64.

5. Cf. Direito constitucional, 6ª ed., 1995, p.166.

6. Cf. Introdução ao estudo do direito, 1988, p. 132.

7. Cf. Uma decisão trabalhista e o Mercosul. ST, 1997, p. 18

8. Amauri Mascaro Nascimento. Normas para a circulação de trabalhadores no Mercosul

9. Haroldo Pabst, Mercosul: direito da integração, 1997, p. XIX.

10. Armando Álvares Garcia Jr. O direito do trabalho no Mercosul, 1997, p. 89.

11. Protocolo de Brasília.

12. Citado por Paulo Borba Caselha. Mercosul: exigências e perspectiva, 1996, p. 165.

13. Helios Sarthou. Primeras reflexiones sobre trabajo, derecho, integracion Mercosul y Globalizacion ante las puertas del nuevo siglo. Suplemento trabalhista, 114, 1998, p. 121-2.

14. Cf. Mercosul seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-Membros. 1995, p.18

15. Haroldo Pabst, Mercosul: direito da integração, 1997, p. 35-6.

16. Cf. Revista Consulex, 1998, p. 59


BIBLIOGRAFIA

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1995.

CASELLA, Paulo Borba. Mercosul: exigências e perspectivas. São Paulo: LTr, 1996.

FELKER, Reginald D.H. Uma decisão trabalhista e o Mercosul, Suplemento Trabalhista, julho, 1997.

FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1988.

FRANCO Filho, Georgenor de Souza. Livre circulação de trabalhadores no mercosul. Revista Consulex, a II, nº 16, abril, 1998.

GARCIA Jr., Armando Alvares. O direito do trabalho no mercosul. São Paulo: LTr, 1997.

JIMENEZ, Martha. Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos estados-membros. Maristela Basso (org). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.

LAVOR, Francisco Osanir. Livre circulação de trabalhadores no âmbito do mercosul. Revista Consulex, a II, nº 23, novembro, 1998.

MERCOSUL: uma nova realidade jurídica. Revista do Centro de Estudos Judiciários. Brasília: Conselho da Justiça Federal, v 1, n.1, ago. 1997.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Normas para a circulação de trabalhadores no Mercosul. Suplemento Trabalhista, nº 37,1997.

PABST, Haroldo. Mercosul: direito da integração. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

SARTHOU, Helios. Primeras reflexiones sobre trabajo, derecho, integracion Mercosul y Globalizacion ante las puertas del nuevo siglo. Suplemento trabalhista, nº 114, dezembro, 1998.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. A livre circulação dos trabalhadores: análise comparativa - Mercosul e União Européia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1618. Acesso em: 25 abr. 2024.