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É possível a edição de portarias normativas pelo juiz da infância e da juventude

É possível a edição de portarias normativas pelo juiz da infância e da juventude

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Parecer elaborado em processo de pedido de providências para edição de portaria normativa, que tramitou, com base na Resolução nº 30 do Conselho da Magistratura do Rio de Janeiro, na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Teresópolis (RJ).

INTRODUÇÃO

            O trabalho que segue reproduz o parecer elaborado no processo de PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS denominado "Procedimento para edição de Portaria Normativa – Locais de Diversão, Eventos e Estabelecimentos Comerciais", que tramitou, com base na Resolução nº 30 do Conselho da Magistratura do Rio de Janeiro, na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Teresópolis (RJ).

            A Portaria nº 03/2006, da Juíza daquela Vara, Drª Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho, foi baixada por sentença, da qual recorreu o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, sem provimento. Rejeitados Embargos de Declaração, Recursos Especial e Extraordinário, a Promotoria interpôs Agravos aos Tribunais Superiores, ainda não apreciados.

            A quem se interessar pelo teor da Portaria, até agora mantida, basta consultar o andamento do processo 2006.061.006391-2, na página do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ali localizando a sentença lavrada em 18/12/2006, à qual a MMª Juíza prolatora, incorporou o parecer que segue, como base para decidir.


TEOR DO PARECER

            Cumprindo determinação de Vossa Excelência, apresento o estudo em torno da matéria focalizada nestes autos, considerando as afirmações do Comissariado, os termos da promoção do Ministério Público, no confronto com as teses que vem sendo defendidas por V. Exª. em diversos foros, bem como com idéias que constaram do meu trabalho "O Edifício da Proteção Integral precisa de Portaria – sobre a edição de portarias normativas pelo Juiz da Infância de Juventude", que mereceu a honra de ser incluído entre os anexos que instruíram a proposta dos magistrados menoristas levada ao Conselho da Magistratura [1].

            Com escusas por saber-me sem as melhores qualificações para tanto, tentarei cumprir a ordem de Vossa Excelência, no intuito de compilar o que parecem ser os principais aspectos de conflito.


SOBRE O CARÁTER EMERGENCIAL DA PORTARIA PRETENDIDA E A URGÊNCIA DE SUA EMISSÃO ANTES DE PRONUNCIAMENTO DEFINITIVO DO CONSELHO.

            Preliminarmente, registre-se a definição: Emergência é: "(...) 2. situação critica ou perigosa" (HOUAISS).

            Da experiência relatada pelos Comissários atuantes na fiscalização, e dos debates internos que Vossa Excelência tem conduzido em torno do tema, tem-se que a ausência das Portarias Judiciais, em face da Resolução 02/06 [2], pode estar sinalizando perigosa situação de anomia.

            Ainda que com, data venia, a possibilidade de eventuais incorreções formais, dentro da estratégia traçada por Vossa Excelência, as portarias cumpriram sempre relevante papel na ação deste Juízo, sempre regida pelo princípio da precaução. Lembrando-se de que tal princípio não admite sequer a mera ameaça aos direitos tutelados, tenho que as tarefas de caráter jurisdicional-administrativo ficaram dificultadas pela ausência de Portarias.

            A conjugação da dificuldade de sobrevivência num ambiente econômico desfavorável, com a necessidade de lucros crescentes, pode fazer com que muitos empresários - agora sem os freios das normas revogadas - não mais respeitem diretrizes fundamentais à proteção integral. Basta ver que os próprios cartazes dos eventos ocorridos na cidade não mais trazem (ou minoram seu destaque) os alertas sobre a vedação de ingresso conforme a faixa etária. Basta ver, ainda, o argumento recorrente nas defesas a autuações, de que não compete ao Juízo a edição de Portarias, sempre se invocando a Resolução nº 02/2006, do Conselho da Magistratura. Daí, toda a ação pedagógico-disciplinar exercitada durante anos por Vossa Excelência – à qual, se não faltam eventuais críticas, também não lhe falece a consideração e o reconhecimento geral -, poderá sofrer prejuízos, pulverizando o desrespeito. Para isso contribuirá, certamente, a alta rotatividade na atividade da pequena empresa, devida ao - na atual conjuntura - sempre reduzido tempo médio de existência das mesmas. Já hoje deve existir um relevante número de micro-empresários estabelecidos após a Resolução 02/06, e que não conheceram as cautelas recomendadas pelas Portarias.

            Assim tem sinalizado o diálogo com o Comissariado. Data venia, em nosso entendimento é possível que tal realidade pode vir a se constituir, sim, em "situação crítica e perigosa" e, portanto, em ameaça a ser inibida. Os episódios de alcoolismo, intoxicação e gravidez precoce, e os relatos da forma com que tais episódios são oportunizados, renovam as preocupações em torno das festividades e instituições da Comarca, objeto da portaria.


SOBRE A VALIDADE DA PORTARIA CONJUNTA 01/03.

            Os Juízes da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro marcaram um importante tento na tarefa protetiva e orientadora atribuída ao Judiciário pelo ECA, quando comungaram opiniões e normatizaram diversas situações referentes a estabelecimentos de lazer e diversão e atividades voltadas a crianças e adolescentes, através da Portaria Conjunta nº 01/2003.

            Registre-se que aquele esforço foi acolhido pela Corregedoria Geral da Justiça que converteu-o em seu Provimento nº 39/04. Ressalte-se, ainda, que a Resolução 02/06 do Conselho da Magistratura suspendeu atos emanados dos Juízos singulares, sem qualquer menção a atos do Corregedor. É claro que se poderá argumentar que o ato do Corregedor não vincula as Comarcas, que, em tese, deveriam cada uma de per si, promover edição própria daquele provimento, que apenas teria buscado padronização. Entretanto, a prática demonstrou o reconhecimento da Portaria Conjunta e sua aplicação a partir da publicação da Corregedoria. Ocorreram condenações com base na mesma, sustentadas na 2ª Instância.

            Como é natural que, de tal situação surjam dúvidas, sobre o tema Vossa Excelência efetuou consulta, ainda não respondida, à Corregedoria Geral de Justiça. Certamente, a resposta melhor dirá sobre a validade total ou parcial da Portaria Conjunta.

            De todo modo, parece-me que não se pode esquecer que todo o conteúdo da Portaria Conjunta 01/03 é lastreado em normas legais vigentes, após intensa pesquisa promovida pelos magistrados que a redigiram. Apenas colecionaram, naquele normativo, as diversas leis pertinentes aos temas ali tratados, chamando-os à aplicação, com adequações pertinentes.

            Tudo indica que essa postura encontra harmonia com a Resolução hoje em vigor [3], em caráter provisório, conforme ordem do Conselho da Magistratura, e a partir da qual se iniciou o presente feito. Instruiu a minuta de Resolução ofertada pelos magistrados em seu pleito junto àquele órgão superior, além da dissertação que elaborei, a proposta de Vossa Excelência que sugere estabelecimento de classificação das Portarias por tipos, dentre os quais um deles seria o que indicasse base legal já existente, apenas chamada à jurisdição, com as adequações necessárias.

            Não parece que atenderia ao princípio da precaução rejeitar a aplicação ou adequação de normativos já existentes à Comarca, sendo que eles podem configurar ações protetivas indispensáveis, como os relacionados às limitações e alertas quanto ao ilícito comércio de bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes.


SOBRE A AMPLITUDE E A COMPLEXIDADE DA PORTARIA PRETENDIDA LHE CONFERIR CARÁTER GENÉRICO, FACE À REVOGAÇÃO DO CÓDIGO DE MENORES CUJO ART 8º PERMITIA PORTARIAS GENÉRICAS.

            Conforme HOUAISS, genérico é o que se refere ao gênero, este sendo "conjunto de espécies com a mesma origem ou as mesmas particularidades".

            Data venia, talvez não pareça racional que, para eventos ou estabelecimentos cujas características se repetem, não seja possível efetuar disciplina única de hipóteses idênticas. Tal providência representa medida de racionalização, de economia processual e, mesmo, de eqüidade, já que assim se evita tratar desigualmente os iguais. Por isso é que a inteligência do Art. 149 do ECA - entendo - determina que, do geral similar cuida a Portaria Judicial, através de normas gerais, complementares e esclarecedoras da Lei. Do particular, cuida o Alvará.

            Sobre o tema, JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, comentando o § 2º do Art 149 [4] ensina:

            "Se o presente parágrafo não for bem entendido, por certo conduzirá o intérprete a uma inegável contradição com a norma disposta no caput do artigo. O que ele quer expressar, em linhas gerais, é que, afora a matéria disciplinada por meio de Portaria Judicial, os demais atos judiciais consubstanciados em alvarás judiciais não se submetem a decisões de caráter geral, antes prestam inteira vassalagem a cada caso que for endereçado à autoridade judiciária." (grifamos)

            No trabalho que tive a honra de oferecer aos magistrados menoristas em torno dessa discussão, trato do que me parece reiterado equívoco, que entende serem as atuais Portarias do Juízo da Infância e da Juventude - quando não adstritas à leitura estreita e hermenêuticamente desatualizada do Art. 149 do ECA -, arroubos saudosistas do já revogado Código de Menores. Assim alguns entendem em face do caráter genérico da Portaria Judicial como a que nestes autos Vossa Excelência estuda baixar.

            Ora, tanto a Portaria do Código revogado, como a prevista no ECA, por conta do poder de polícia determinado à jurisdição especial menorista, vinculam particulares. Entretanto, breve reflexão faz ver que não são Portarias de mesmo tipo. A Lei atual, claramente, a institui como um híbrido de mecanismo, a um só tempo, administrativo e jurisdicional, coisa que antes não existia, sendo somente administrativa. A Portaria prevista no ECA exige fundamentação, quando o modelo antigo apenas exigia do Magistrado o "prudente arbítrio". E mais. Tanto os institutos não são mesmos, que é previsto, atualmente, recurso jurisdicional regular, à luz do Art. 199, garantia inexistente na Lei revogada.


SOBRE A MINUTA PROPOSTA ESTAR EM DESACORDO COM O ART 149 DO ECA, EXTRAPOLANDO-O.

            Salvo melhor juízo, é ponto central de toda a discussão que se trava hoje no Conselho da Magistratura, exatamente, a defesa que fazem os magistrados menoristas quando à impossibilidade da leitura estrita da Lei que protege a infância e a juventude. Concordo. Assim também sustentei na modesta dissertação mencionada. Os problemas hodiernos fazem inviável, à consecução dos objetivos constitucionais da proteção integral, tal leitura estrita. Por isso se entende que, existindo previsão legal de edição de Portarias à margem do Art. 149, como as previstas no Art. 191, e presente a necessidade de romper o que costumeiramente se entende por ‘rol taxativo’ do Art. 149 – dada, inclusive, a desatualização do texto que omite, por exemplo, parques aquáticos e lan houses – é imperioso que se atualize tal entendimento. A decisão liminar concedida pelo Conselho de Magistratura nos autos em que o tema é examinado - que adotou, ainda que provisoriamente, o entendimento ampliado! - é um indício da possibilidade de tal atualização hermenêutica.

            Parece-me que também não se deve desprezar a análise sistêmica da Lei 8.069/90, pela qual se verifica que o rol do referido art. 149, ao contrário do que muitos entendem, data venia, é exemplificativo. A seu texto falta – como salientado por Vossa Excelência nas razões apresentadas ao Conselho de Magistratura - a partícula que determinaria exclusividade daquelas opções, como optou o legislador por fazer ocorrer no Art. 122.

            "A medida de internação SÓ poderá ser aplicada (...)"

            Se a lei é, ela própria, um sistema, não há como se entender que as indicações taxativas ora se escrevam de um modo, ora de outro.


SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA E OS FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA

            A questão democrática é sempre um tema tão empolgante quanto árduo. Permita-me, Vossa Excelência, sobre ele refletir brevemente.

            No preâmbulo da Constituição Federal inscreveram os Constituintes:

            "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, DESTINADO A assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacifica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil". (grifamos)

            Bem se vê de tão inspirada e luminosa declaração que a Democracia não é um fim em si mesmo. É um mecanismo em face de um objetivo. Evidente que ela é também um valor. Mas tal valor só ganha concretude pelo método. Assim, a democracia, antes de tudo, é um modus operandi com instâncias, instituições e mecanismos que a viabilizam. Entretanto só encontra sentido no momento em que os objetivos para os quais foi instituída, são efetivamente alcançados, ou, ao menos, quando em sua direção se caminha com honestidade de propósitos.

            O zelo apenas pelo ‘mecanismo’ pode tornar inócuo o ‘valor’, já que não tem sido difícil a aparência democrática embutir retrocessos. Basta que uma força organizada aparelhe as instâncias e foros. Por isso, conhecido estudo organizado pelo eminente sociólogo Boaventura Santos intitulou-se "Democratizar a Democracia" [5], exemplificadas, ali, várias experiências de combate ao aparelhamento do mecanismo democrático.

            O perigo de tal raciocínio é que ele pode servir para que alguém suponha defensável a supressão do mecanismo democrático em face do objetivo não alcançado. Não é o que defendo! A democracia é um processo, uma construção contínua, e a manutenção, a melhor compreensão e o incremento de seus mecanismos é o que pode, também, corrigir distorções. Mas para tanto, é necessário visão ampla da estrutura democrática, eis que, nela própria se contém as soluções. Uma dos imperativos primários neste particular é que nenhum órgão se ausente da tarefa constitucional que lhe é cometida.

            Portanto, cabe a cada instituição em que se constitui o poder do Estado, cumprir o seu papel. Ao Juiz da Infância e da Juventude, segmento do Poder Judiciário, são cometidas tarefas institucionais de natureza jurisdicional e administrativa. Como defendi no estudo mencionado, muitas destas tarefas expressam poder de polícia de natureza especial que lhe foi outorgado.

            Ora, se o exercício do poder de polícia é a garantia do cumprimento das normas estabelecidas, e se – como entendo - a todo poder de polícia corresponde poder normativo subsidiário, ao exercê-lo está o Juiz Menorista cumprindo tarefa democrática.

            O poder do Juiz Menorista é legítimo, a diretriz que aplica é constitucional, e o mecanismo que utiliza tem amparo legal. Ademais, seu exercício atende ao princípio da precaução.

            Talvez caiba uma citação que bem delimita os contornos do que aqui se defende. John Stuart Mill, importante teórico da democracia e do liberalismo, ao discutir na Inglaterra do século XIX a tortuosa questão dos limites de interferência do poder estatal sobre o indivíduo, em seu ‘Ensaio Sobre a Liberdade’, assim disse:

            "Que o único propósito para qual o poder possa ser legalmente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, seja evitar dano a outros. (...) Aqueles que ainda se encontram em um estado em que necessitem dos cuidados de outros, devem ser protegidos contra suas próprias ações, assim como contra dano externo". [6]

            Evitar danos aos menores de 18 anos é tudo o que deve perseguir não só o Juiz Menorista, mas sim, todos os membros da rede de proteção estabelecida na Lei Especial. Data venia, seja como valor (o direito fundamental representado pela proteção integral), seja como método (a assunção de responsabilidades em busca daquele objetivo), não há nada mais democrático.

            Na verdade, o sistema democrático possui mecanismos que buscam garantir sua efetividade. Assim ocorre com os ‘freios e contrapesos’, com os ‘remédios constitucionais’, e, ousaria afirmar, também na atividade subsidiária do Juiz Menorista no exercício do seu poder de polícia. Tais mecanismos são uma espécie de reserva que pretende impedir a falência do organismo pela inoperância ou ação errática de um de seus membros.

            Não à toa, o Dr. GUARACI DE CAMPOS VIANNA, Juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital, destaca tais atividades como sendo ‘anômalas’.

            "São funções que não dizem respeito às atividades jurisdicional ou não-jurisdicional do Poder Judiciário, mas que o legislador preferiu deixar nas mãos do Juiz. Não são atividades típicas do Judiciário e podem ser, então, denominadas anômalas". [7] (grifamos)

            A anomalia apenas realça a importância da missão. O ideal é que famílias, sociedade, governos e conselhos executem bem, cada um, seu papel na rede protetiva. Mas, sendo inevitáveis as lacunas de ação, entendo que ‘o legislador preferiu’ que as normas de prevenção relativas a direitos menoristas não ficassem a descoberto. É quando o Juiz atua. E, creio que, respeitados procedimentos como os que nestes autos se observa, o faz dentro de preceitos que respeitam o princípio democrático.


SOBRE A EDIÇÃO DA PORTARIA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

            Um dos pressupostos da proposta encaminhada pelos Juizes da Infância e da Juventude ao Conselho da Magistratura – proposta esta adotada como liminar – é exatamente melhor clarificar o caráter híbrido de procedimento administrativo e de prestação jurisdicional de que se reveste a Portaria de que trata.

            Entendo que a primeira fase da edição de Portaria Judicial constitui-se em medida administrativa que exterioriza o poder de polícia de natureza peculiar cometido ao Magistrado. Portanto, nesta altura a mesma é sempre dotada de auto-executoriedade. Em meu entendimento, inclusive, por coerência teórica, dispensar-se-ia – nesta fase - a oitiva do Ministério Público.

            Entretanto, entenderam os Juízes proponentes - ainda que atipicamente, em se tratando de ordem administrativa - que, dados os reflexos futuros da ordem, mais transparente e eficaz se faria o procedimento de sua edição, oportunizando-se ao Promotor de Justiça mecanismo que lhe garantisse melhor entendimento das propostas em jogo, melhores condições de fiscalização e possibilidade de sugestões. Fosse totalmente jurisdicional esta fase, os pleitos e recursos pertinentes poderiam inviabilizar fosse a ordem baixada, o que não condiz com o seu, nesta fase, caráter administrativo.

            Baixada a Portaria, passa ela a ter, automaticamente, caráter de prestação jurisdicional especial, à luz do Art. 153 do ECA. De seu teor devem ser intimados os destinatários da ordem, individualmente, ou, quando pertinente, as entidades de classe, sindicatos de categoria profissional e assemelhados, sem prejuízo da publicação oficial. Das intimações assim efetuadas, abre-se o prazo para recurso jurisdicional regular, à luz do Art. 199 do ECA. Recebido o recurso, como lhe faculta a Lei, decidirá o Magistrado sob seu eventual efeito suspensivo, encaminhando o apelo à instância superior.

            Tal elaboração permite inibir teratologias na fase administrativa, bem como garantir que estejam plenamente contemplados na fase jurisdicional os princípios do contraditório e da ampla defesa. Portanto, data venia, não há contrariedade aos princípios elencados, parecendo estar atendidos os requisitos pleiteados, cada qual na fase adequada.

            Demais exigências formais e procedimentais também parecem ponderadamente cumpridas. Por exemplo, com a devida licença, ousaria dizer que não parece ser razoável impor como regra monolítica a necessidade de sindicâncias prévias ao que é de conhecimento notório. Medidas liminares são concedidas desde que presentes o fumus bonus iuris e o periculum in mora. Considerando que a decisão, após baixada, vai ao contraditório, não é razoável que, presentes aqueles dois fatores essenciais à prestação cautelar, se impeça a possibilidade de ordem necessária, pela exigência de prévia sindicância.

            Quanto à individualização dos destinatários da ordem, parece que o rito sugerido permitirá que tal se aplique, dentro de critérios de racionalidade e razoabilidade. Sendo número restrito, serão individualmente intimados. Compondo ramo de atividade, de individualização penosa, dado o número de integrantes, serão intimadas suas entidades representativas, sem prejuízo da ampla divulgação pela imprensa. Não se deve esquecer a recomendação de que sejam promovidas reuniões de esclarecimento. Lembre-se que já as realizou esse Juízo, em Teresópolis, com sucesso, quando da edição anterior de portarias relativas aos festejos do Carnaval e à regulação de academias de ginástica, dança, lutas, fisiculturismo, etc.

            Aliás, vale aqui a menção à posição do Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, BRUNO HERINGER JÚNIOR, em artigo intitulado "Algumas questões controvertidas do ECA", no seu capítulo 11, "A fundamentação das Portarias Judiciais" [8]. Ao comentar decisão da 8ª Câmara Cível do TJRS no MS 595051771-RS, de 25.05.95 que entendeu que a edição de portaria exigiria a prévia sindicância, afirma:

            "A prevalecer este entendimento, estaria praticamente obstaculizado qualquer regramento, por parte do Juiz, daqueles casos que demandassem a edição de Portaria. Imagine-se se, para regulamentar o ingresso de crianças e adolescentes em bares, boates, fliperamas, entre outros, tivesse o julgador de investigar cada estabelecimento, para então regrá-lo. Em cidades grandes é absolutamente inviável. (...) De qualquer sorte, o importante é que a decisão da 8ª Câmara Cível do TJRS,antes indicada, não vingue, sob pena de impedir o uso de um importante instrumento de proteção de jovens e infantes." (grifamos)


SOBRE A PORTARIA COMO EXPRESSÃO DE ANSEIOS COMUNITÁRIOS

            Quanto a este item, data maxima venia, Excelência, permitir-me-ei registrar entendimento diferente. Se os anseios unânimes "da comunidade, do Ministério Público, do Conselho Tutelar e mesmo das crianças e adolescentes", de determinada localidade afrontarem ditames constitucionais especificados em diretrizes de Lei Federal como é o caso da Lei 8.069/90, eles não poderão ser atendidos.

            A Portaria Judicial, portanto, deve respeitar e referir peculiaridades locais [9], podendo até atender a anseios municipais, mas sempre e tão somente quando estes não contraditarem as diretrizes maiores mencionadas. Data venia, Excelência, entendo, inclusive, que o Magistrado não deve vocalizar apenas seus próprios anseios, em sentido estrito. Embora consulte sua consciência, sendo inevitável o subjetivismo inerente à sua formação – tema espinhoso na doutrina -, reporta-se à Lei Maior e aos usos e costumes em sentido mais amplo que o desejo da sua comunidade. Seu cargo não é político ou representativo, neste sentido. Na hipótese de uma comunidade em desajuste, em situação de anomia ou dominada pela emergência de lideranças em desvario, poderá tantas vezes ser necessário ao Magistrado atuar contra aqueles interesses anômalos.


SOBRE O DIREITO AO LAZER E A PROTEÇÃO INTEGRAL

            É sabido que o ordenamento jurídico estrutura-se como um sistema. Só assim examinando se o compreende, em visão panorâmica que identifica relações e parentescos necessários. Por evidente, também as normas componentes do ordenamento, quando individualmente tomadas, só podem ser bem compreendidas dentro de visão sistêmica. Tal deve ser a leitura de artigos, itens e parágrafos da própria Lei. Tal deve ser o entendimento da norma, a partir da relação de conexão, subordinação ou complementaridade que mantém com outras normas.

            Nenhuma norma ou artigo reina absoluta. Ela se inter-relaciona. Por isso é que, como reiteradamente têm se pronunciado os Tribunais superiores, "não existem direitos absolutos". Por isso é que o direito ao lazer, constitucionalmente garantido, na oportuna menção que faz o douto parquet, do Art. 227 da Carta Maior, somente subsistirá se atendidos seus iguais direitos à dignidade, vida, saúde, respeito, bem como se estiverem a salvo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

            Não por outra razão, atribuiu o legislador ao Juiz da Infância e da Juventude a missão de disciplinar o ingresso de menores de 18 anos em estabelecimentos de lazer e diversões. Pretende-se que crianças e adolescentes tenham lazer, mesmo que indicado à sua faixa etária, desde que haja segurança, respeito e ausência de negligência em relação a sua proteção integral.


SOBRE A ATUAÇÃO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA DIANTE DE ESPETÁCULO RECOMENDADO A MENORES

            Sob novas venias, parece-me que a proteção integral exigiria mais que a mera verificação quanto à adequação do espetáculo à sua faixa etária. Ao classificar um filme, o Ministério da Justiça não se pronuncia sobre as condições das salas de exibição. Estas demandam outras verificações, do Corpo de Bombeiros, da municipalidade, bem como do Poder Judiciário. Logo, se vê que a recomendação do conteúdo do espetáculo é apenas um dos itens ligados ao tema. Não se pode dispensar a atuação subsidiária de outros órgãos.

            Para exemplificar, digamos que um filme infantil seja exibido em cinema situado em prédio sabidamente condenado, sem que tenha havido providência da autoridade municipal. Ou pensemos em show infantil realizado em ginásio no qual que sejam duvidosas as condições de segurança. Outro exemplo é o de cinema que esteja recebendo adolescentes uniformizados, em horário escolar. É óbvio que, nestes casos, a Autoridade Judiciária precisará atuar. E, isso, embora muitas vezes até aconteça a partir de provocação paterna, poderá ocorrer independente dos genitores, estejam ou não acompanhados os adolescentes.


SOBRE A POSSÍVEL NECESSIDADE DE ALVARÁ SEMANAL PARA CINEMAS E TEATROS

            Tentando consolidar o raciocínio de ser absurda a Portaria, diz o parquet que, da forma em que se colocam tais questões na Portaria, cinemas e teatros demandariam Alvará semanal do Juízo. Escuso-me pela assertiva mas, a ilação não é razoável.

            Cinemas são estabelecimentos regidos por normas próprias, instalados em caráter de permanência e sujeitos a rígida fiscalização municipal, exibindo filmes indicados conforme faixa etária da clientela, através de norma federal de reconhecida seriedade. Tal realidade não impede, entretanto, que os cinemas estejam sujeitos às fiscalizações do Juízo da Infância. Como anteriormente explicitamos, a classificação indicativa não exclui a atuação do Poder Judiciário, em prol dos direitos infanto-juvenis, inclusive com a possibilidade de exigência de Alvará Judicial.

            Entretanto, por analogia, não parece aplicável a hipótese de necessidade de Alvará semanal, data venia. Também merecem classificação indicativa por faixa etária jogos de computador e diversões eletrônicas. São produtos industriais, como o é o espetáculo cinematográfico. Tal característica, que impede improvisos e alterações sobre o produto acabado, torna confiável, a princípio, a classificação indicativa, dispensando-se, portanto, a necessidade, neste particular, de Alvará para cada produto.

            A intervenção do Juízo para inibir o acesso de menores aos produtos de que aqui se trata, quando houver eventual divergência quanto à classificação do Ministério da Justiça, não se fará, portanto, pela via do Alvará. Deverá ser instaurado procedimento próprio.

            Logo, o Alvará aqui referido apenas poderá tratar de aspectos complementares, como por exemplo, vedação de ingresso com uniformes escolares, verificações de segurança, manutenção dos arquivos necessários em face da recente Portaria do Ministério da Justiça (autorizações dos responsáveis), etc. Sendo assim, não seria necessário ‘Alvará semanal’.


SOBRE O PODER FAMILIAR

            Entende, o Ministério Público, que o Poder familiar está sendo vilipendiado, diminuído ou invadido pelas determinações da Portaria.

            Data maxima venia, não parece existir plenitude no exercício do poder familiar. Há temperos. Por exemplo, a classificação de filmes do Ministério da Justiça permite o acesso de adolescentes acompanhados de genitores ou responsáveis formalmente autorizados a filmes indicados a faixa superior à sua idade. Exclui da prerrogativa, entretanto, a faixa de filmes indicados para maiores de 18 anos. Ou seja, impõe um limite claro à discricionariedade do poder familiar.

            Isso porque trata-se de um poder CONDICIONADO AO EXERCÍCIO DE UM DEVER. Ou, como afirma a Promotora da Infância e da Juventude, Dr. PATRÍCIA PIMENTEL DE OLIVEIRA CHAMBERS RAMOS, é "muito mais do que um bônus, a autoridade parental é um ônus". [10] Por isso é que pode ser destituído ou suspenso o poder familiar. É evidente que tal medida extrema e radical só ocorre em casos clamorosos. Pais, em princípio, amam e tratam bem e direcionam corretamente sua prole.

            Entretanto, com o segundo pós-guerra, e mais acentuadamente a partir dos anos 60, erodiu-se o modelo de família nuclear, fundado na autoridade paterna. Acelerou-se a revolução nos costumes, com o novo papel da mulher, acrescido da maior aceitação social de novas formas de relacionamento sexual e familiar, com a relativização da predominância masculina.

            Nos países latinos tal experiência defrontou-se com um estreitamento dos horizontes políticos, estrangulando as liberdades democráticas. Aquelas demandas sociais represadas confundiram-se com os movimentos de redemocratização. Vitoriosos estes, encontram aquelas espaço de crescimento, agora potencializado pelos efeitos da globalização e pela revolução midiática.

            Logo, aqueles anseios sociais, potencializados, multiplicaram-se exponencialmente. Tais pleitos não eram reprimidos, pois qualquer reparo era inibido, como manifestação antidemocrática. Na verdade, ressalvados os excessos, cautelas honestas e precauções fundadas foram injustamente taxadas de reacionárias. Neste contexto, jovens de ontem, reprimidos pelo autoritarismo político e familiar, freqüentemente tornaram-se os pais de hoje, em dúvida sobre os reais limites dos seus deveres, tornando-se permissivos.

            O comovente depoimento da atriz Irene Ravache em recente edição da revista feminina Marie Claire, confirma o que aqui se diz. Conhecida por seu engajamento político e militância feminista, no contexto em que examinava à repórter sobre o drama da dependência química do seu filho, a atriz relembra criticamente a educação que proporcionou, em que a liberaridade e mitigação da autoridade se confundiram com avançada pedagogia democrática. Disse a artista:

            "Primeiro, eu era muito insegura. Em vez de seguir a intuição, eu seguia o modelo vigente, que era o de não avançar muito no espaço. A gente não queria ouvir a palavra disciplina. Essa palavra soava horrorosa aos ouvidos de quem viveu o regime militar. A intuição mostrava outra coisa, mas eu queria ser o máximo como mãe, amiga dos filhos, avançada. Eu não fiz bem esse papel, fui mal escalada, vou ficar devendo." [11]

            Ressalve-se, no caso, a retomada de consciência e a coragem para enfrentar a batalha da recuperação do filho. Mas bem se vê que, em muitos casos, "devolveu-se a plenitude do poder familiar", a genitores já agora carentes de referências. O modelo patriarcal antigo não mais se mostra adequado. Da situação de uma espécie de anomia neste campo, posições como a da mencionada atriz fazem ver a possibilidade de um novo modelo que privilegie não o autoritarismo, mas a indispensável autoridade.

            Não é tarefa fácil, já que as escolas padecem da mesma falta de parâmetros, que, no limite, levam a que professores sejam agredidos por alunos em sala de aula. A educação dos jovens, com acesso irrestrito - para bem e para mal - às intermináveis opções de informação dadas pela internet e outras mídias, demanda novos paradigmas.

            Por oportuno, reivindicarei aqui novo trecho esclarecedor do já citado estudo de Stuart Mill sobre a liberdade. Em capítulo memorável combate a então vigente supremacia do pátrio poder sobre os direitos de educação devidos aos filhos. Faz ali a defesa da relativização do pátrio poder e da liberdade de seu exercício em face dos direitos maiores do infante, aos quais devia o Estado proteger. Daí parte para a incandescente defesa de que aos pais se obrigue a matrícula escolar de seus filhos. Nesse contexto prepara o terreno para o seu discurso com a seguinte frase:

            "É no caso de filhos que noções de liberdade mal aplicadas são um verdadeiro obstáculo ao cumprimento pelo Estado de suas obrigações". [12]

            Portanto, a defesa da plenitude irrestrita do poder familiar pode, muitas vezes, acabar sendo a mera apologia da tirania que subtrai direitos.

            Se permitir a ousadia, Excelência, qual deveria ser o papel do Juiz da Infância e da Juventude neste contexto? Substituir-se aos genitores? Parece evidente que não. Entretanto, como tenho aprendido acompanhando a jurisdição de Vossa Excelência, por muito penosa que seja a dificuldade de tal missão, deveria, orientado pelas diretrizes constitucionais, pelo princípio da precaução e pela impossibilidade de consentir nas lacunas, normativas ou institucionais, atuar firmemente em suporte ao poder familiar legítimo e consciente.

            E tal atuação, muitas vezes se configurará na forma da edição de Portarias Normativas.


SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA JUDICIAL E O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL.

            Para garantia da eficácia da lei, permitindo um ambiente de segurança jurídica, respeita-se no direito pátrio, o princípio da presunção de conhecimento universal da norma posta. Tal conhecimento ficto, entretanto, não dispensa a necessidade da máxima publicidade da lei.

            Dentre os vários papéis que a Portaria Judicial pode cumprir, um dos mais importantes é o de divulgação de lei existente, cujo conhecimento amplo se considera relevante naquela jurisdição. Maior eficácia alcançará a norma, quanto maior for a sua publicidade. Melhor a compreensão pública a seu respeito, certamente maior o grau de adesão à sua teleologia.

            Data venia, ao dizer que "a não observância do disposto nesta Portaria sujeita o infrator às sanções previstas na Lei nº 8.069/90 e demais leis aqui citadas" não cremos que Vossa Excelência estará incorrendo em inconstitucionalidade ou excesso. Além do alerta conseqüente, em beneficio dos destinatários da ordem, quanto às sanções das leis mencionadas, deixa-se evidenciada a possibilidade de punição à luz do Art. 249 do ECA.

            Por sinal, embora haja divergência doutrinária na interpretação do referido artigo, somo no entendimento da corrente que verifica existirem, na verdade, duas determinações. A primeira parte do Art. 249 é endereçada aos detentores do poder familiar, quando descumprem os deveres que lhes são pertinentes. A parte final é endereçada à coletividade, quando desatende determinação da autoridade judiciária ou do Conselho Tutelar.

            Tal é o entendimento de TARCÍSIO JOSE MARTINS COSTA e de VALTER KENJI ISHIDA [13]

            Dada a relevância dos direitos tutelados, parece não só correto, como indispensável, que prevaleça tal lúcida interpretação. Trazer os deveres impostos pelas entidades mencionadas ao mesmo patamar de gravidade que se atribui ao poder familiar é garantia da eficácia necessária de tais deveres.

            Não seria razoável que, atribuindo o legislador responsabilidades ao Conselho Tutelar, e mesmo à Autoridade Judiciária, não estipulasse a sanção por descumprimento de suas determinações, fazendo necessário o recurso a outro diploma do ordenamento, inclusive, no ilustrado entendimento do Promotor de Justiça, criminalizando tal conduta. Que, entretanto, parece-me que melhor se resolve administrativamente. Ora, onde, em todo o Estatuto, tratou o legislador de tal tema, a não ser exatamente no Art. 249?

            Logo, data venia, não descumprirá Vossa Excelência qualquer princípio de direito, nem incorrerá em inconstitucionalidade ao editar a portaria em questão. Reitere-se que a portaria, via de regra, não se limita a reproduzir a lei, mas a dar-lhe a minúcia necessária à sua aplicação. Relembremos o constitucionalista italiano MASSIMO SEVERO GIANNINI:

            "Não é necessário que a norma de lei contenha todo o procedimento e regule todos os elementos do provimento, pois, para alguns atos do procedimento estatuído e para alguns elementos do provimento pode subsistir discricionariedade". [14]

            Desta citação o eminente constitucionalista José Afonso da Silva conclui que "isso quer dizer que os elementos essenciais da providência impositiva ao de constar da lei", ou seja, a lei será sucinta, vindo a minúcia por norma própria.

            Notar que, sendo diferentes os conceitos de ‘legalidade’ e ‘reserva de lei’, temos que o Juiz Menorista edita portaria normativa amparado na legalidade, e também por não ser obstado por reserva de lei. Nos temas da infância, a combinação do Art. 72 [15] do ECA com o Art. 3º, excluem a reserva de lei, admitindo ‘outras obrigações’, além das previstas no ECA, bem como a asseguração ‘por lei ou por outros meios’ na garantia dos direitos em questão.

            E tudo o que aqui se diz é harmônico com a diretriz dada por mandamento constitucional (Art. 227), instituidor de direito fundamental, portanto, de aplicação imediata.


SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DO CADASTRO DETERMINADO NO ARTIGO 15 DA PORTARIA

            O direito à prática desportiva, que se confunde ou complementa, tanto com o direito ao lazer, quanto com o direito à saúde, não é excludente dos demais direitos a que fazem jus os menores de 18 anos.

            O culto à beleza física, tantas vezes confundido com zelo pela saúde, tem direcionado nossos jovens às academias de lutas, musculação e ginástica, não raro, em detrimento de seus deveres escolares. A falta destes, pouco sentida no presente, se tornará fatal para o sucesso na vida adulta. Por isso é que não se pode permitir ao atleta juvenil que não estude. Por isso é que aquele que zela pela prática desportiva deve, também, construindo a consciência da integralidade dos direitos infanto-juvenis, zelar para que seu desenvolvimento seja completo, nele não podendo faltar a freqüência à escola. Proteção integral – repito - pressupõe a visão de conjunto dos direitos envolvidos.

            Portanto, sendo providência rotineira que academias, clubes, associações, federações e congêneres tenham cadastros de seus associados ou freqüentadores, não se exorbita no artigo mencionado, ao apenas acrescer aos dados de praxe, os dados escolares. Tal providência tem o caráter de perseguir a garantia do direito à educação, servindo, ainda, para promover conscientização necessária em torno do tema.

            Assim, cria-se instrumento auxiliar de aferição do cumprimento das obrigações parentais no concernente a educação dos filhos. Data venia, disso não resulta intervenção abusiva ou prejuízo a quem quer que seja. Antes, produz-se ferramenta auxiliar que não parece merecer desprezo.


SOBRE PRINCÍPIOS DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES E LEGALIDADE

            A edição da Portaria não é exercício legislativo, mas necessária prática regulamentar. O mestre JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que "o princípio da legalidade (...) não exclui atuação secundária de outros poderes". [16]

            Por óbvio, nenhuma lei obterá um grau de minúcia tão grande que permita excluir a atuação interpretativa do aplicador da lei. Tanto os representantes do Executivo e seus administradores, quanto os integrantes do Judiciário e os aplicadores do direito, obrigatoriamente despenderão esforço interpretativo que se organizará na forma de julgados, provimentos administrativos, Ordens de Serviço e Portarias. O que resta observar é se o exercício de tal interpretação se expressa de forma legalmente sustentável. Evidentemente não poderá o intérprete-administrador impor o resultado de sua análise a quem não esteja submetido à sua autoridade.

            Como já dissemos em outro ponto, o Juiz da Infância e da Juventude detém poder de polícia de natureza especial. De todo poder de polícia, em nosso entendimento, depreende-se a existência de poder normativo subsidiário e restrito às tarefas legalmente cometidas.

            Logo, não labora em ilegalidade o Juiz menorista, quando exercendo a parcela interpretativa que JOSÉ AFONSO DA SILVA atribui aos demais poderes, no exercício do seu poder de polícia, interpreta a Lei à luz da Constituição, disso resultando a edição de Portarias Normativas.

            Não há invasão da esfera de outro poder. Data venia, não há ilegalidade. A Portaria busca dar eficácia à lei emanada de outro poder. Harmonia é, também, um poder – aplicador e intérprete - fazer valer os objetivos perseguidos pelo outro poder – legislador. Como já externado em outro ponto deste trabalho, assim se reforça a democracia.


CONCLUSÃO

            Concluindo, gostaria de transcrever o sentimento geral dado pelo exame da Portaria proposta. E o resultado é o de que se conecta em plenitude com as necessidades da proteção integral. A PORTARIA É VIÁVEL E NECESSÁRIA. Por oportuno, menciono estudo do ilustre Promotor da Infância e da Juventude da Comarca de Duque de Caxias, Dr. GALDINO AUGUSTO COELHO BORDALLO. Dissertando sobre o papel do Juiz da Infância, aborda a questão da edição de portarias. Embora tenha expressado inconformismo com a manutenção de tal possibilidade, reconhece:

            "Mesmo que seja estranha esta possibilidade de expedição de portarias, ela se adequa à Doutrina da Proteção Integral, pois o Juiz assim agindo está visando evitar que direitos das crianças e adolescentes sejam violados e que se exponham elas a riscos". [17]

            Pedindo desculpas por qualquer excesso ou impropriedade, concluo aqui o estudo requisitado, com este humilde entendimento, a ser melhor apreciado por Vossa Excelência.


Notas

             [1] Dessa proposta, editou o Conselho da Magistratura do TJ-RJ a Resolução nº 30/06, autorizando a expedição de Portarias Normativas pelos Juízes da Infância e da Juventude, dentro dos procedimentos que estabelece, propostos pelos próprios magistrados.

             [2] O Conselho da Magistratura do TJ-RJ, em 2006 revogou, por sua Resolução nº 02, todas as Portarias baixadas por Juízes menoristas, alegando que muitas feriam o princípio da legalidade, e extrapolavam o rol estrito do art. 149 do ECA, ocorrendo ainda imposições abusivas.

             [3] Em caráter provisório, enquanto examinava mais profundamente o mérito da proposta, Conselho da Magistratura decidiu, por unanimidade, autorizar a expedição de Portarias sob os novos ritos propostos pelos Juízes, no que viria a ser o embrião da Resolução 30.

             [4] em seu Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado – SP, RT, 1994.

             [5] Editora Civilização Brasileira, 2002.

             [6] STUAR MILL, Ensaio Sobre a Liberdade – Editora Escala, 2006, pp 27/28.

             [7] GUARACI DE CAMPOS VIANNA, Teoria e Crítica do Direito da Infância e da Juventude – Editora Univer Cidade, 2004, pp 145.

             [8] (disponível na página do Ministério Público do RS – www -mp.rs.gov.Br/infância/doutrina/id.199,htm)

             [9] Inclusive a ditame do Art. 149, I, 1º, b

             [10] "Muito mais do que bônus, a autoridade parental é um ônus, um dever jurídico imposto aos pais na criação dos filhos, visando à plena formação espiritual, educacional e moral destes". – Em Curso de Direito da Criança e do Adolescente - Aspectos Teórico e Práticos.Lúmen Juris Editora. 2006. Pp 454.

             [11] Marie Claire, pp 114, abril 2006, Editora Globo.

             [12] "O Estado, enquanto respeita a liberdade de cada um naquilo que especialmente diz respeito à própria pessoa, é obrigado a manter um controle vigilante sobre o exercício de qualquer poder que permita a ela possuir sobre outros. Esta obrigação é quase inteiramente desconsiderada no caso das relações familiares, um caso, em sua influência direta na felicidade humana, mais importante do que todos os outros juntos. O poder quase despótico dos maridos sobre as esposas não precisa estender-se aqui, porque nada mais é necessário para a completa remoção do mal do que as esposas terem os mesmos direitos e receberem a proteção da lei da mesma maneira como todas as outras peoas; isso porque, nesse assunto, os defensores da justiça estabelecida não se beneficiam do pretexto da liberdade, mas se mostram abertamente como defensores do poder. É no caso de filhos que noções de liberdade mal aplicadas são um verdadeiro obstáculo ao cumprimento pelo Estado de suas obrigações. Alguém poderia pensar que os filhos de um homem deveriam ser literalmente, e não metaforicamente, uma parte dele própria, tão zelosa é a opinião da menor interferência da lei em seu absoluto e exclusivo controle sobre eles; mais zelosa do que quase qualquer interferência em sua própria liberdade de ação: tanto menos valor a generalidade da humanidade dá à liberdade do que ao poder". Obra citada, pp. 144/145.

             [13] Conforme nota 91 do capitulo Infrações Administrativas de autoria de Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers Ramos no Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Lumen Juris, 2006.

             [14] Conforme citado por SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Curso de Direito Constitucional Positivo. Pp. 424, 19ª edição, Malheiros, 2001.

            [15] "Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade" e ‘Art. 72. As obrigações previstas nesta lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados" – Lei 8.069/90.

             [16] Curso de Direito Constitucional Positivo. Pág. 424. 19ª edição. Malheiros, 2001.

             [17] Em "O Poder Judiciário", constante de Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos. Lúmen Júris Editora. 2006. Pp 394.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso de. É possível a edição de portarias normativas pelo juiz da infância e da juventude. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1864, 8 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16864. Acesso em: 19 abr. 2024.