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Apreensão e remoção de veículos: o entendimento equivocado do STJ

Apreensão e remoção de veículos: o entendimento equivocado do STJ

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Não é de hoje que os tribunais vêm enfrentando a questão, sempre com dificuldade, de conceituação e de distinção entre Apreensão e Remoção de Veículos, disciplinadas nos artigos 262 e 271 do Código de Trânsito Brasileiro, respectivamente.

Recentemente, em 24 de junho de 2009, a Primeira Seção do STJ apreciou o Recurso Especial nº 1.104.775, de relatoria do Ministro Castro Meira, sob o regime do artigo 543-C do Código de Processo Civil, tornando-o representativo da controvérsia e represando os demais recursos repetitivos sobre a matéria.

Do julgamento unânime, restou lavrada a seguinte ementa:

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N.º 08/2008. ADMINISTRATIVO. VEÍCULO. AUSÊNCIA DE REGISTRO E LICENCIAMENTO. ART. 230, V, DO CTB. PENAS DE MULTA E APREENSÃO. MEDIDA ADMINISTRATIVA DE REMOÇÃO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO PAGAMENTO DE MULTAS JÁ VENCIDAS E DAS DESPESAS COM REMOÇÃO E DEPÓSITO, ESTAS LIMITADAS AOS PRIMEIROS TRINTA DIAS. ART. 262 DO CTB. PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS DE DIREITO PÚBLICO.

Para uma melhor compreensão do leitor, nem sempre afeito às distinções conceituais do Código de Trânsito Brasileiro, mister trazer à baila as diferenças entre apreensão e remoção.

A apreensão do veículo está prevista no artigo 262 do CTB que assim estatui:

Art. 262. O veículo apreendido em decorrência de penalidade aplicada será recolhido ao depósito e nele permanecerá sob custódia e responsabilidade do órgão ou entidade apreendedora, com ônus para o seu proprietário, pelo prazo de até trinta dias, conforme critério a ser estabelecido pelo CONTRAN.

§ 1º No caso de infração em que seja aplicável a penalidade de apreensão do veículo, o agente de trânsito deverá, desde logo, adotar a medida administrativa de recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual.

§ 2º A restituição dos veículos apreendidos só ocorrerá mediante o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica.

§ 3º A retirada dos veículos apreendidos é condicionada, ainda, ao reparo de qualquer componente ou equipamento obrigatório que não esteja em perfeito estado de funcionamento.

§ 4º Se o reparo referido no parágrafo anterior demandar providência que não possa ser tomada no depósito, a autoridade responsável pela apreensão liberará o veículo para reparo, mediante autorização, assinando prazo para a sua reapresentação e vistoria.

Vê-se, da simples leitura do caput, que a apreensão do veículo é penalidade. Será aplicada, portanto, em situações de cometimento de algumas infrações de trânsito que prevêem tal punição. É o caso, por exemplo, daquele que promove racha (art. 173 do CTB) ou que transpõe, sem autorização, bloqueio policial (art. 210 do CTB). Em tais casos (e nos demais previstos no Código) a apreensão é penalidade e, como tal, obedecerá o devido processo legal para sua aplicação. São para estes casos a previsão de apreensão de até 30 dias. Em outras palavras, caso o condutor cometa alguma infração que prevê a penalidade de apreensão do veículo, será instaurado processo administrativo, assegurada a ampla defesa em que, ao final, caso seja considerado culpado pela infração, será sancionado pelo Estado com a apreensão do veículo por prazo não superior a 30 dias.

Já a remoção é diferente. Tem outro objetivo e natureza jurídica diversa.

A remoção vai regulamentada pelo artigo 271 do CTB, in verbis:

Art. 271. O veículo será removido, nos casos previstos neste Código, para o depósito fixado pelo órgão ou entidade competente, com circunscrição sobre a via.

Parágrafo único. A restituição dos veículos removidos só ocorrerá mediante o pagamento das multas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica

Aqui não se fala em penalidade ou prazo. Trata-se de medida administrativa. Isso não é sem razão. A remoção de veículos visa, tão somente, retirar de circulação o veículo que, por razões instituídas pelo legislador (em ultima ratio pela vontade popular), não possui condições de trafegar em via pública ou, de alguma forma, prejudica o bom andamento do trânsito pela situação em que se encontra. A ausência de prazo se justifica no fato de que, sanada a irregularidade, o veículo é devolvido ao proprietário. O exemplo mais corriqueiro é o veículo mal estacionado (art. 181 e incisos, do CTB). Neste caso, basta que o proprietário se dirija ao depósito para o qual o veículo foi removido, efetue o pagamento das despesas de remoção e diárias de depósito, e o veículo lhe será devolvido (se outra razão não impedir a circulação em via pública). O tempo de permanência em depósito dependerá da iniciativa do proprietário. Em outras palavras, se o proprietário procurar o depósito no dia seguinte, arcará com apenas 1 (uma) diária e poderá retirar o veículo prontamente. Caso leve 90 (noventa) deveria arcar com 90 (noventa) diárias, já que, por sua exclusiva inércia o veículo se encontra sob a guarda do Estado.

No caso específico de veículos que trafegam sem estarem devidamente licenciados, o Código, em seu artigo 230, V, prevê a remoção administrativa do veículo. Neste caso, tão logo o veículo seja licenciado e esteja novamente apto a trafegar poderá ser retirado do depósito. Não há prazo mínimo. Nem máximo, já que depende da regularização a ser realizada pelo proprietário.

No julgamento paradigma, o Superior Tribunal de Justiça demonstra conhecer esta distinção. Tanto é assim que no voto condutor do acórdão menciona:

Como já explicitado, trafegar sem o registro e licenciamento do veículo é infração de trânsito considerada gravíssima e que impõe ao condutor - ou proprietário - as penas de multa e de apreensão do veículo, além da medida administrativa de remoção.

Eis, uma vez mais, o art. 230, V, do CTB:

[...]

A pena de apreensão, nos termos do art. 262 do CTB já citado, impõe o recolhimento do veículo ao depósito "pelo prazo de até trinta dias, conforme critério a ser estabelecido pelo CONTRAN". Assim, por se tratar de penalidade, não pode ser ultrapassado o prazo a que alude o dispositivo.

Nada obstante, a retenção do veículo como medida administrativa, que não se confunde com a pena de apreensão, deve ser aplicada até que o proprietário regularize a situação do veículo, o que poderá se prolongar por mais de 30 dias, pois a regra legal não estabelece qualquer limitação.

De maneira que a Corte Especial, em análise do microssistema legal que é o Código de Trânsito Brasileiro, constatou excesso de tributação instituído pelo Legislador Infraconstitucional com a ausência de limite para a cobrança de diárias de depósito. E concluiu, com o telos de abrandar a dita demasia, que somente poderão ser arrecadadas as taxas relativas aos primeiros 30 dias de permanência no depósito, ainda que, pela inércia do proprietário, permaneça o bem por período superior.

O argumento trazido pelo venerando acórdão é de que, por possuir natureza de taxa, a diária de depósito deve possuir um limite para sua cobrança no intuito de atender ao princípio tributário do não-confisco.

Tal posicionamento coloca a Administração Pública em situação teratológica. Em uma admissão ad argumentandum tantum, caso realmente haja a necessidade de limitação na cobrança de diárias, pergunta-se: quem paga as diárias excedentes?

Ao teor do que determina o art. 328 do Código Brasileiro de Trânsito, somente após o nonagésimo dia a Administração Pública poderá se desfazer do veículo mediante leilão. Veja-se:

Art. 328. Os veículos apreendidos ou removidos a qualquer título e os animais não reclamados por seus proprietários, dentro do prazo de noventa dias, serão levados à hasta pública, deduzindo-se, do valor arrecadado, o montante da dívida relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se houver, depositado à conta do ex-proprietário, na forma da lei.

Ora, parece evidente que a decisão do STJ premia a inércia do condutor-infrator em prejuízo de toda a sociedade, às custas do contribuinte. A situação, da forma como está posta, acarreta no seguinte:

- O veículo poderá ficar retido pelo tempo que for necessário, até que seja regularizada a sua condição de trafegabilidade;

- Caso permaneça em depósito, somente após 90 dias a Administração Pública poderá realizar a venda do bem;

- O proprietário, por sua vez, ainda que em virtude de sua inércia o veículo tenha ficado no depósito, somente será onerado pelos primeiros 30 dias.

E os outros 60 até a realização do leilão?

Quem paga?

A resposta é óbvia: o pagamento sairá dos cofres do Estado e, portanto, do bolso dos signatários, do bolso do leitor e de todos os contribuintes!

Em cumprimento da boa exegese da Lei, prestigiam-se as normativas e os princípios que emanam deste microcosmos jurídico que é o CTB. Afinal, a resposta à eventual questão que exsurge do Código de Trânsito Brasileiro deve ser refletida e apurada à luz dos próprios dispositivos do mesmo Código de Trânsito Brasileiro, sob pena de o Interprete, ignorando o bloco normativo que são os microssistemas, buscar elementos alienígenas e contraditórios ao direito posto. E, deste modo, suplantando e, até, contrariando o Legislador, quebrantar a coerência e harmonia de que se presume o CTB possui.

Se, ad argumentandum tantum, o proprietário não pode ser punido pela inércia da Administração, então que esta arque com as despesas de depósito a partir do nonagésimo dia. Poderia ter leiloado e não o fez, manteve-se inerte. Pois bem, então este ônus será seu.

Na outra ponta, o proprietário poderia ter retirado o veículo a qualquer tempo e, por razões de foro íntimo, não o fez. Que responda, então, pela sua inércia, pagando até o nonagésimo dia. Inadmissível é que toda a sociedade seja onerada em nome da inércia de alguns poucos. É bom sempre lembrar o brocardo latino: Dormientibus non succurrit jus, o direito não socorre a quem dorme.

Assim, se for mantido o entendimento de que a cobrança de diárias está limitada a 30, a alteração da lei é medida que se impõe, autorizando a Administração a leiloar o bem nos mesmos 30 dias.

O que não se pode tolerar é a situação impossível em que a Administração foi colocada: não pode cobrar as diárias e tampouco leiloar o bem, arcando com 60 estadas gratuitas.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WASCHBURGER, Luis Augusto; ZENON, Augusto. Apreensão e remoção de veículos: o entendimento equivocado do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2618, 1 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17316. Acesso em: 19 abr. 2024.