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O Tribunal Penal Internacional e o Direito brasileiro.

Perda da soberania?

O Tribunal Penal Internacional e o Direito brasileiro. Perda da soberania?

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RESUMO: A prática criminosa não tem conhecido fronteiras. Não raro, se constata que criminosos atuam em organização em diversas partes do mundo, inclusive com prática de crimes contra a humanidade. Dentro desse contexto, alguns criminosos procuram se esquivar da correspondente responsabilidade criminal escondendo-se no seu país de origem, diante da regra geral de que o nacional não seria extraditado. Essas reprováveis condutas ilícitas geraram a necessidade de criação do Tribunal Penal Internacional, objetivando a criação de uma corte imparcial de justiça no âmbito internacional. Nesse sentido, o presente trabalho examina o aparente conflito entre as sanções previstas no referido Tribunal e o ordenamento jurídico brasileiro, diante da eventual perda de soberania.

PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Penal Internacional. Conflito. Soberania.

ABSTRACT: Practicing criminal has known no borders. Not unusual if notes that criminals act organizing in diverse parts world inclusive with crimes against humanity. Within this context some criminals seek dodging the corresponding criminal responsibility hiding in your home country before General Rule that National not would extradited. These reproachable unlawful conducts generated a need creation ICC, objectifying creating one cutting impartial justice under international. Accordingly, this work examines apparent conflict between penalties under referred Court and Brazilian legal before the eventual loss sovereignty.

KEIWORDS: International Criminal Court. Conflict. Sovereignty.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. 3. Conclusões. Referências.


1. INTRODUÇÃO

A criminalidade atual não respeita fronteiras territoriais. Notadamente em períodos de conflitos bélicos, muitas atrocidades são cometidas pelos combatentes, procurando-se se esquivar da correspondente responsabilidade criminal permanecendo em seu território de origem, com amparo numa aposta arriscada de que, regra geral, o nacional não seria entregue para julgamento em tribunal alienígena.

Desde a Segunda Guerra Mundial, verificou-se a necessidade de instituição de um Tribunal internacional para processamento e julgamento, em caráter permanente, dos crimes de guerra, afastando-se eventuais arguições de ilegitimidade, diante da criação pelos próprios vencedores do conflito, como no caso dos Tribunais de Nurembergue e Tóquio, de acordo com LIMA e BRINA (2006, pgs. 32/33). Adicione-se á discussão, o argumento de que a criação de tais tribunais poderia configurar agressão ao princípio nulla poena sine lege.

Além disso, há discussão relativa à natureza ex post facto de tribunais específicos, como a criação dos Tribunais ad-hoc para a antiga Ioguslávia e Ruanda, circunstância que igualmente afastaria a legitimidade para julgamento, até mesmo pelo fato de terem sido criados pelo Conselho de Segurança da Organizações das Nações Unidas, sofrendo forte influência dos interesses dos membros permanentes do referido Conselho.

Essa influência histórica provocou a criação de um tribunal permanente para o julgamento de crimes contra a humanidade, aí incluídos os crimes de guerra, genocídio e de agressão, concretizado com o Tribunal Penal Internacional, por meio do Tratado de Roma, de 17 de julho de 1998, que entrou em vigor em 11 de abril de 2002, estando sediado em Haia, na Holanda.

Dentro desse contexto, o objetivo do presente trabalho é investigar, em caráter não exaustivo, a possibilidade de aplicação de sanções no âmbito do Tribunal Penal Internacional (TPI) em relação aos brasileiros natos, examinando o posicionamento adotado pela doutrina pátria.


2. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O DIREITO BRASILEIRO

Para TAQQUARY (2008, p. 48), "a guerra foi e continua sendo o fundamento para criação de um Tribunal Penal Internacional ou que julgue os crimes de guerra". A natureza das atrocidades cometidas nos conflitos bélicos é que foi, assim, a justificativa para a criação de um Tribunal Penal Internacional permanente.

Merece registro, todavia, o entendimento de GARCIA (2005, p. 146), no sentido de que "a existência de um conflito armado não chega a ser propriamente um pressuposto lógico e indispensável á existência de crimes contra o direito Internacional". Para o autor fluminense, períodos anti democráticos também poderiam configurar crimes contra a humanidade.

Registre-se, por oportuno, que o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, posterior, portanto, à promulgação da Constituição da República de 1988.

Em função dessa inovação legislativa infraconstitucional, instalou-se fundada divergência em relação à previsão contida no Estatuto do TPI, em relação à prisão perpétua, em possível conflito com a previsão constitucional que veda a aplicação desse tipo de pena, nos termos do art. 5º, inciso XLVII, alínea "b", da Constituição da República de 1988.

De fato, o art. 77.1, alínea "b", do Estatuto de Roma possui a seguinte redação:

"Artigo 77

Penas Aplicáveis

1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5° do presente Estatuto uma das seguintes penas:

a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou

b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem."

Por outro lado, o art. 5º, inciso XLVII, alínea "b", da Constituição da República de 1988:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XLVII - não haverá penas:

(...)

b) de caráter perpétuo;"

Haveria, assim, possível conflito entre o disposto no art. 5º, XLVII, "b" da Constituição de 1988 e art. 77.1, "b", do Estatuto de Roma.

Realmente, poder-se-ia argumentar que a entrega de um nacional (art. 89 do Estatuto do TPI) agrediria o princípio da soberania nacional, fundamento do Estado democrático de direito brasileiro, conforme disposto no art. 1º, inciso I, da Constituição de 1988.

Contudo, uma análise mais aprofundada no assunto permite concluir que se revela possível a entrega de nacional ao Tribunal Penal Internacional sem que haja prejuízo à soberania estatal.

De início, ressalta-se que o instituto da entrega, previsto no art. 89 do Estatuto do TPI difere da extradição. Neste, há o encaminhamento de pessoa para julgamento por outro Estado soberano; naquele, o julgamento é realizado por Tribunal Internacional, não integrante de outra ordem jurídica diversa. Não há, portanto, qualquer afronta ao art. 5º, inciso LI, da Constituição da República de 1988, que veda a extradição de brasileiros natos.

Além disso, não se vislumbra qualquer violação á soberania estatal. Com efeito, a respeito do tema, verifica-se que, conforme lição de TAQUARY (2008, p 210), a soberania pode ser classificada como interna e externa (ou internacional). A primeira, interna, seria o poder do Estado "em estabelecer, com monopólio as suas regras que compõem o seu sistema jurídico e torná-las efetivas independentemente de fundamentação em outras normas jurídicas". Já a soberania, para a citada autora, estaria vinculada "á independência e autonomia do Estado"

De acordo com o lúcido entendimento de Stephen Krasner, por sua vez, a soberania estatal pode ser classificada em 4 (quatro) tipos: a) doméstica; b) soberania de interdependência; c) westfaliana e d) legal internacional.

Nesse sentido, tem-se lição de PIOVESAN (2003, p. 177):

"Stephen Krasner aponta a existência de quatro espécies de soberania: a soberania doméstica, tangente à organização interna do Estado; a soberania interdependente, tocante à regulamentação dos fluxos de bens, pessoas, poluentes, doenças e idéias através das fronteiras territoriais; a soberania de Westphalia, concernente à organização política pautada nos princípios da territorialidade e na exclusão de atores externos capazes de influenciar a autoridade interna; e a soberania legal internacional, referente ao reconhecimento do Estado como igual na esfera internacional."

E prossegue a renomada internacionalista:

"A soberania legal internacional não está, todavia, prevista de forma expressa na Constituição brasileira. O artigo 86 da Constituição trata, ao conceder imunidade relativa ao Presidente da República no que toca aos crimes comuns, da soberania doméstica, na classificação esboçada por Krasner, que busca a distribuição, o equilíbrio entre poderes no ordenamento interno e não no internacional. A soberania legal internacional estaria prevista genericamente, no art. 1º, inciso I, e, mais especificamente, no artigo 4º, inciso IV, da Constituição, tange ao princípio da não intervenção."

Já para GARCIA (2005, p. 148), há um "realinhamento" da soberania "em prol dos direitos humanos".

Agregue-se à discussão, que o próprio texto constitucional é expresso ao consignar que "o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão" (§4º do art. 5º da Constituição da República de 1988.

Se o Estado expressamente decidiu que se submeterá à jurisdição do TPI, é porque abriu mão, parcialmente, de sua soberania legal internacional com relação aos crimes definidos no respectivo Estatuto. Registre-se, ainda, que referido Estatuto não admite reservas (art. 120), de modo que a sanção estabelecida na norma não pode ser descumprida pelo Estado que a ele aderiu.

Para LIMA e BRINA (2006, pgs. 171/172), a submissão do Brasil ao TPI, prevista no §4º do art. 5º da Constituição "tem como respaldo a realização do princípio constitucional de prevalência dos direitos humanos".

De fato, não se pode negar que a ordem jurídica internacional caminha para uma cooperação mútua na busca da paz, como forma de alcançar a plenitude dos direitos humanos. Sob essa perspectiva, a entrega de pessoas ao TPI atende a esse objetivo, na medida em que responsabiliza aqueles que violam os crimes definidos no respectivo Estatuto. O Estado Constitucional passa a ser um Estado Constitucional Cooperativo, como ensina HÄRBELE (2007, p. 7).

Sob outro ângulo, colhe-se lição de COMPARATO (2006, p. 61), no sentido de que

"Seja como for, vai-se firmando hoje, na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável à dignidade humana no caso concreto"

Por derradeiro, destaca-se que o art. 27 da Convenção de Viena de 1969, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio com a edição do Decreto nº 7030, de 14 de dezembro de 2003, não admite a alegação de norma interna para justificar o descumprimento de um tratado, não importando, portanto, as disposições internas relativamente .


3. CONCLUSÕES

A criação do Tribunal Penal Internacional derivou da necessidade da existência de uma Corte permanente para o julgamento dos crimes de guerra, genocídio e agressão a grupos étnicos, procurando afastar as arguições de ilegitimidade de outros tribunais anteriormente criados.

Nesse sentido, observa-se que o Estatuto de Roma, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, previu pena de prisão perpétua, circunstância que apresenta um conflito aparente com a norma constitucional vigente que impede a aplicação desse tipo de pena de no âmbito interno.

O posicionamento que se mostra mais adequado ao princípio da cooperação internacional no campo penal se direciona no sentido de que não há afronta à soberania, na medida em que o próprio ordenamento constitucional previu a submissão a um Tribunal Penal Internacional, cuja adesão já manifestou.

Além disso, com amparo em abalizada doutrina, a soberania legal internacional não se encontra expressamente prevista no ordenamento constitucional, até mesmo diante do princípio maior da busca da paz.

Nessa perspectiva, não há que se confundir os conceitos de extradição e entrega. Apenas no que toca ao primeiro, haveria proibição de sua concretização. Já na segunda hipótese, não há obstáculo constitucional a sua efetivação.

Conclui-se, portanto, que a entrega de brasileiros, natos ou naturalizados ao Tribunal Penal internacional não implica perda da soberania estatal.


4. REFERÊNCIAS

1. BRASIL. Constituição da República de 1988. Diário Oficial da União, 05.10.1988.

2. ______. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional Diário Oficial da União, 26.09.2002.

3. ______. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2003. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Diário Oficial da União, 15.12.2009.

4. COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

5. GARCIA, Emerson. Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

6. HÄRBELE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. São Paulo: Renovar, 2007.

7. LIMA, Mantovani, BRINA, Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

8. MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001

9. PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003.

10. TAQUARY, Eneida Orbage de Britto. Tribunal Penal Internacional e a Emenda Constitucional 45/04. Curitiba: Juruá, 2008.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Adrian Soares Amorim de. O Tribunal Penal Internacional e o Direito brasileiro. Perda da soberania?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2677, 30 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17724. Acesso em: 23 abr. 2024.