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Breves reflexões sobre a Justiça Penal Restaurativa

Breves reflexões sobre a Justiça Penal Restaurativa

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Por muito tempo a racionalidade penal esteve associada à lógica conflitual. Diz-se que a Justiça Punitiva (espaço do conflito) contenta-se em condenar ou absolver alguém, mas não almeja resolver o problema criminal, sendo-lhe indiferente aspectos de extremo relevo, como a situação da vítima, e a do próprio infrator, além de não atender às expectativas da comunidade.

Conforme anotado por Raffaella da Porciuncula Pallamolla, este sistema de justiça conflitiva se submete ao postulado simplista segundo o qual se alguém comete um crime, merece ser punido. Desconsidera-se, portanto, o contexto e a complexidade do crime enquanto fato social, socorrendo-se de um "dualismo fundamental", que dicotomiza culpa/inocência, bem/mal, sociedade/deliquente [01]. Na feliz expressão de Luiz Flávio Gomes, o modelo clássico "atua guiado mais por critérios de eficiência administrativa do que de justiça e equidade" [02].

Embora os problemas da Justiça Punitiva possam ser largamente apontados, ainda mais ante a constatação prática da falência do sistema prisional, o elemento psicológico de atemorização ante a possível sanção penal não pode ser desconsiderado. Ademais, a própria noção de devido processo legal (com os postulados que dela decorrem) é, ao que me parece, melhor trabalhada no contexto da Justiça Conflitiva, até mesmo porque cunhada sob essa perspectiva de resolução dos litígios.

Como uma alternativa – ou um complemento – a este sistema, tem ganhado força o modelo consensual de Justiça Penal (espaço do consenso – conciliação, transação, acordo, mediação ou negociação), em que se destacam dois sub-modelos, quais sejam o modelo pacificador ou restaurativo e o modelo da Justiça Criminal negociada (plea bargaining) [03].

No modelo restaurativo, as principais formas de resolução dos conflitos são a conciliação, típica dos Juizados Criminais (Lei 9.099/1995) e apropriadas aos crimes de menor potencial ofensivo, e a mediação, a ser conduzida por mediadores profissionais (terceiros imparciais) e que se destina, normalmente, a delitos de média gravidade, visando à integração social de todos os envolvidos no fato [04].

Neste modelo, avulta de importância o diálogo (e não a intimidação), o qual, conforme sustentam Raye e Roberts, é tão ou mais importante que o próprio resultado da intervenção, favorecendo soluções não violentas ou não adversariais [05].

Já no modelo da plea bargaining, de inspiração norte-americana, a pedra de toque é a negociação direta entre acusação e defesa, a ser homologada judicialmente, e que "permite acordo sobre todos os aspectos penais (sobre pena, sobre a definição do delito, perda de bens, forma de execução da pena etc)." [06]. Este sub-modelo é duramente criticado por parte da doutrina, em razão de incentivar a assunção da culpa pelo acusado, violando, assim, o princípio da presunção da inocência, já que se impõe pena sem um devido processo penal da forma como concebido modernamente, com todas as garantias e ele inerentes. Além do mais, "somente o promotor dispõe de poder real de negociar e estabelecer as condições e o preço do negócio. Não existe, pois, contradição nem igualdade de armas" [07].

De referência às vantagens do modelo restaurativo, cabe trazer à baila a percuciente observação de Luiz Flávio Gomes, para quem

"os sistemas de mediação-conciliação (como ainda pondera Garcia-Pablos) são mais exigentes com o infrator, de quem reclamam uma sincera mudança de atitudes, mediante o processo de comunicação e interação com sua vítima. Não basta, pois, o cumprimento do castigo, nem a reparação do dano causado: pretende-se uma mudança qualitativa no infrator, de tal modo a implicá-lo ativamente na solução do conflito que ele ocasionou" [08]

Acrescente-se também a dinamização do papel da vítima, que passa a ter suas necessidade levadas em consideração, ao contrário do que acontece na Justiça Penal clássica, em que, no final das contas, a vítima é tragada pelo pernicioso sistema penal, sendo caracterizada por sua passividade. Como bem notou Lode Walgrave, no modelo pacificador, "o ofendido está envolvido não porque alguma coisa deve ser feita com ele, mas porque isto promoverá restauração" [09].

Ressalte-se, contudo, que o próprio modelo consensual de solução dos conflitos penais não é indene de críticas. A precipitação dos operadores do direito pode descambar num quadro de privatização total da justiça criminal e de mercantilização do conflito. É preciso cautela.

A esse respeito, e para finalizar, vale a pena trazer à baila a observação de Luiz Flávio Gomes, para quem

"Mediação e conciliação oferecem um balanço positivo quando, sem pretensões utópicas de universalidade, circunscrevem seu objeto a conflitos concretos (ex. de jovens e menores, infrações de escassa importância etc.), que envolvem infratores primários. Mas correm o risco de se transformar em perversas e nocivas expressões de um tratamento privatizador inadmissível do conflito criminal, quando aspiram a operar como alternativa global do sistema - leia-se: da resposta pública e institucional ao delito -, alternativa externa, iludindo o controle jurisdicional e as garantias do cidadão que as instâncias do controle social devem respeitar."


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GOMES, Luiz Flávio. Justiça Conciliatória, restaurativa e negociada. Material da 1ª aula da Disciplina Novos Temas do Direito Processual Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtutal em Direito Processual – Anhanguera - UNIDERP/REDE LFG.

GOMES, Luiz Flávio. Justiça Penal Restaurativa: Perspectivas e Críticas. Disponível em: http://www.blogdolfg.com.br. 27 junho. 2007. Material da 1ª aula da Disciplina Novos Temas do Direito Processual Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtutal em Direito Processual – Anhanguera - UNIDERP/REDE LFG.

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009 (Monografias/IBCCRIM; n. 52).


Notas

  1. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009 (Monografias/IBCCRIM; n. 52), p. 70.
  2. GOMES, Luiz Flávio. Justiça Conciliatória, restaurativa e negociada. Material da 1ª aula da Disciplina Novos Temas do Direito Processual Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtutal em Direito Processual – Anhanguera - UNIDERP/REDE LFG, p. 14.
  3. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit., p. 13.
  4. Anote-se, por oportuno, que a mediação, enquanto modalidade de resolução dos conflitos penais, não encontra guarida no ordenamento brasileiro, embora não faltem opiniões pela sua implementação, de lege ferenda.
  5. RAYE, B. E.; ROBERTS. A. W. apud PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Ob. Cit., p. 106.
  6. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit. p. 14.
  7. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit. p. 16.
  8. GOMES, Luiz Flávio. Ob. Cit. p. 13.
  9. WALGRAVE, Lode apud PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Ob. Cit., p. 74.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Paulo Rubens Carvalho. Breves reflexões sobre a Justiça Penal Restaurativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2816, 18 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18709. Acesso em: 19 abr. 2024.