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A Democracia no pensamento de Hans Kelsen

A Democracia no pensamento de Hans Kelsen

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1. Em cinco textos selecionados, publicados entre 1924 e 1955 [01], Hans Kelsen apresenta uma teoria da democracia que se enquadra em sua obra de forma coerente com sua epistemologia e com sua teoria do direito e do Estado. No prefácio de "Essência e Valor da Democracia", o autor reconhece, simultaneamente, a hegemonia do ideal democrático na gramática política que sucede ao ciclo das revoluções burguesas e, fruto do cruzamento desse fenômeno com distintas percepções e linhagens políticas, o uso da idéia geral de democracia, tomada a partir da clássica divisão das formas de governo, como elemento presente no diferentes discursos políticos. Sua pretensão é, diante desse quadro, demarcar uma dada compreensão de democracia e assinalar a que tipo de experiência ela se presta, além de confrontá-la com distintas correntes que podem lhe ser contrapostas. Trata-se de uma obra que, a par de assumir como premissa a identidade entre Estado e ordem jurídica, forjada pelo normativismo, assenta-se também na tensão entre ordem social e liberdade individual. Democracia se apresenta, assim, como procedimento, fórmula constitutiva da ordem jurídica estatal, despida de valores éticos e conteúdos pré-definidos. Em uma perspectiva realista, a reconhecer o monismo jurídico-político sintetizado pelo Estado moderno e a inevitabilidade do relativismo moral, fixa um modelo instrumental e minimalista de democracia, que, não obstante, alicerça uma pretensão de maximização da liberdade e, corolário necessário, da igualdade entre os indivíduos.


2. Kelsen, nesse conjunto harmônico, oferece obra caracterizada por uma concepção procedimental de democracia, cujo fundamento principal é uma idéia de liberdade assinalada como atributo humano e ponto de tensão entre o indivíduo e a ordem social. O autor assume pressupostos caros à modernidade iluminista, como o contratualismo e o individualismo. Assim é que compreende a sociedade como ordem jurídica e estatal, na qual o indivíduo, despido de uma pretensa liberdade natural, vive sob a coerção normativa heterônoma, emanada do poder político. É a relação entre liberdade individual e coerção que conduz seu percurso.

No bojo dessa concepção, Kelsen assimila a perspectiva sociológica, tanto a reconhecer essa ordem jurídico-política como decorrência de uma racionalidade instrumental, quanto a verificar na organização do Estado um movimento de especialização funcional, via diferenciação e divisão do trabalho. Ao confrontar o ideal presente na teoria com a realidade, assume um tom pragmático e defende o abandono de pretensões transcendentais a justificar a democracia, que deveria ser vista apenas como técnica de organização da sociedade, por meio da ordem jurídico-estatal.

Consoante a base epistemológica positivista e relativista adotada [02], sua teoria democrática possui contorno formal, mediante o qual democracia não será a "melhor forma de governo" [03], mas tão-somente procedimento, técnica, maneira de ordenação estatal. Não há pretensão de uma justificação absoluta da democracia, pois não seria possível o reconhecimento absoluto de um valor social em oposição a outros, a não ser que se apelasse a argumentos sobrenaturais. Liberdade aparece como fundamento democrático, desde que haja acordo a esse respeito. Verifica-se, na obra, um assumido relativismo moral, segundo o qual o conteúdo produzido pela organização estatal democrática não importa para a realização da democracia, pois sua relevância reside em funcionar como parâmetro de aferição de liberdade, tendente a assegurar igualdade. Obra merecedora de atenção, típica de um dado momento de transição no pensamento moderno, a teoria da democracia de Kelsen influenciou gerações que se lhe sucederam, a debater seus limites e possibilidades. A seguir, realizar-se-á uma exposição sobre os principais pontos dessa teoria, acompanhada de análise e apresentação de elementos de um diálogo teórico com a obra de outros pensadores que trataram do tema.


3. A democracia kelseniana é, fundamentalmente, procedimentalista e relativista, e funcionará tão melhor quanto mais pessoas dela participarem, a permitir a formação da vontade estatal, supondo esteja assegurada, constitucionalmente, a proteção das minorias. Kelsen expõe a democracia como ideal fundante das organizações políticas modernas [04]. Em oposição à noção herdada dos gregos, de governo dos cidadãos (isonomia) [05] e dissociado da pretensão herdada do Estado iluminista, de representação como elemento democrático [06], firma democracia como forma e procedimento [07], estatuindo a possibilidade de uma democracia relativa. Observe-se a passagem seguinte:

"A democracia é uma forma de regime justa, pois assegura a liberdade individual. Isso significa que a democracia é um regime justo somente sob a premissa de a preservação da liberdade individual ser o fim maior. Se, em vez de liberdade individual, a segurança econômica for presumida como o fim maior, e se for possível comprovar que ela não pode ser garantida sob um regime democrático, então outra forma de regime, não mais a democracia, deverá ser aceita como justa. Outros fins exigem outros meios. Portanto, a democracia só é justificável como forma de regime relativa e não absolutamente boa. [08]"

Kelsen afirma a democracia nos marcos de um pensamento aberto [09], que, no entanto, não prescinde de uma "ordem estatal preexistente" [10]. Um Estado definido como "ordem normativa específica que regula o comportamento mútuo dos homens" [11], a evidenciar seu monismo jurídico, sua compreensão da questão da soberania e seu relativismo em matéria de valores e, por conseguinte, sua defesa de uma democracia que, como tal, deve ser desprovida de qualquer ideologia. As posições doutrinárias e ideológicas cabem nos partidos políticos, cuja importância Kelsen enfatiza [12], na condição de elo a vincular o interesse geral, preso ao Estado, ainda que de forma fictícia [13], e os interesses parciais a cargo de grupos [14].


4. Na visão de Kelsen, democracia decorre de dois postulados da razão prática [15]: a liberdade, que exige o mínimo de coerção sobre o indivíduo ("é a própria natureza, que, exigindo liberdade, se rebela contra a sociedade" [16]); a igualdade, que decorre da liberdade e da identidade da condição humana ("ninguém deve mandar em ninguém") [17]. Democracia é, portanto, modelo procedimental que possibilita à política sintetizar juridicamente esses dois princípios (liberdade e igualdade) [18]. Nas palavras do autor:

"É a própria natureza que, exigindo liberdade, se rebela contra a sociedade. O peso da vontade alheia, imposto pela vida em sociedade, parece tanto mais opressivo quanto mais diretamente se exprime no homem o sentimento primitivo do próprio valor (...) Da idéia de que somos – idealmente – iguais, pode-se deduzir que ninguém deve mandar em ninguém. Mas a experiência ensina que, se quisermos ser realmente todos iguais, deveremos deixar-nos comandar. Por isso a ideologia política não renuncia a unir liberdade com igualdade. A síntese destes dois princípios é justamente a característica da democracia [19]."

Observe-se que sociedade e Estado decorrem, na obra kelseniana, de uma percepção contratualista e jurídica do fenômeno social. Tem-se, assim, o poder político como comando jurídico a ser imposto a todos; a transformação da liberdade natural em liberdade política; a liberdade como legalidade político-jurídica e social, a solucionar a contradição entre o sentido da liberdade original e o constrangimento imposto pela ordem social, que se resolve "apenas quando a liberdade se torna expressão de uma legalidade específica" [20].

Para Kelsen, "a liberdade natural transforma-se em liberdade social ou política. É politicamente livre aquele que está submetido, sim, mas à vontade própria e não alheia" [21]. O autor absorve a discussão moderna da democracia, que remonta a Rousseau [22], estabelecendo-a balizada pelo conflito entre liberdade individual e ordem social [23]. A institucionalização da democracia assenta-se, nesses termos, na busca da maior aproximação possível do ideal de um processo político dotado de participação geral e direta e decisões unânimes [24]. Muda a idéia de liberdade, que passa a se relacionar com uma ordem jurídica dotada de valor objetivo [25].

Kelsen enuncia possibilidades de se tentar garantir mais ou menos aproximação entre vontade e decisão do indivíduo e as decisões socialmente vinculantes oriundas do Estado e formadas pela vontade momentânea da maioria [26]. Há a defesa do princípio majoritário e sua vinculação não só com o ideal de igualdade, mas com o princípio da liberdade [27]. Nessa acepção, somente igualdade seria a defesa da ditadura da maioria [28]. A equação democrática se forma ao se admitir que, nesse modelo de democracia, "se nem todos os indivíduos são livres, pelo menos o seu maior número o é, o que vale dizer que há necessidade de uma ordem social que contrarie o menor número deles" [29]. Relaciona-se, nesse passo, Estado a liberdade individual, democracia a liberalismo. Afinal, "no regime democrático é o próprio Estado que aparece como sujeito de poder", personalizado e contratualmente fundado, impondo concluir que "com o sujeito do domínio muda, ao mesmo tempo, o sujeito da liberdade". "O indivíduo, que cria a ordem do Estado, organicamente unido a outros indivíduos, é livre justamente nos laços dessa união" [30].

Ao conferir centralidade a liberdade e igualdade como questões fundamentais para a moldagem estatal, o autor pretende uma justificação da democracia fundada em postulados da razão prática [31]. A autonomia da razão é posta em confronto com a heteronomia do Estado, compondo uma síntese democrática: "se vamos ser mandados, devemos sê-lo por nós mesmos". Democracia, aqui, é o vínculo que assegura a liberdade, a tolerância, e o compromisso do indivíduo com um dado contrato social. Apesar de verificar a liberdade do indivíduo na coletividade, mediante o poder hipostasiado [32], o "deslocamento do sujeito de domínio" para a "pessoa anônima do Estado", Kelsen associa Estado e democracia, cidadania e organicidade social [33], em perspectiva moderna, ocidental e liberal, descartando tanto a "liberdade dos antigos", quanto a "liberdade dos germanos", as quais, em alguma medida, impõem diferentes relações entre indivíduo, sociedade e Estado.


5. Kelsen procura alicerçar sua teoria da democracia na tensão verificada entre idéia e realidade. Se democracia relaciona povo e governo, sujeito e objeto do poder, impõe-se identificar que seja o povo. O autor rejeita concepções sociológicas e culturalistas que afirmam povo como unidade, e indaga que tipo de relação pode consolidar, no plano da realidade, a idéia de povo [34]. Para ele, povo só pode ser visto, como unidade, em sentido "normativo". "O povo só parece uno, em sentido mais ou menos preciso, do ponto de vista jurídico", com todos os seus membros submetidos ao Estado [35]. Note-se, nesse ponto, que Kelsen reconhece, na sociedade moderna, o direito como peculiar instrumento de mediação e o Estado como ordenamento nuclear. Povo, nessa circunstância, não é referência a um conjunto, a um grupo uno, mas a um sistema de atos individuais, vinculado pelo direito estatal [36].

No curso da discussão sobre o papel do povo como sujeito e objeto da ordem estatal, Kelsen assinala que se o povo, como sujeito, se resume à fundação da sociedade política, não haverá democracia, que necessita da titularidade dos direitos políticos, no processo decisório [37]. Tem-se, pois, o problema da passagem de uma noção ideal para outra, real, de povo, atrelada à questão de quantos efetivamente exercem o poder [38]. Tendo como pano de fundo a racionalização do poder que caracteriza a vida na sociedade moderna, é colocado em causa o exercício do poder e sua relação com o processo de democratização do Estado [39].

Kelsen enfatiza a necessidade de partidos políticos nessa democratização, afirma seu caráter estatal, e acentua sua natureza democrática vinculada aos interesses diversos por eles representados [40]. Para ele, os partidos também comparecem como mecanismos de racionalização do exercício do poder, eis que são instrumentais e se justificam pela necessidade da realização de acordos, "a fim de que a vontade geral possa mover-se ao longo de uma linha média" [41]. Há a defesa dos partidos, na medida em que se verifica serem correlatos à pluralidade de interesses visíveis na sociedade. Vê-se que a democracia partidarizada se harmoniza com o relativismo kelseniano, que denuncia, em quem se opõe à existência dos partidos, a busca de uma hegemonia total, que não leva em consideração a existência de interesses opostos em qualquer sociedade. Assim, a vontade "relativa" resultante dos acordos entre os partidos é uma vontade "geral" superior, da perspectiva democrática, a uma vontade geral "orgânica", "absoluta", superior aos partidos e aos interesses individuais [42]. Neste sentido, o ideal de povo fica distante do real, e a democracia possível será a democracia indireta, parlamentar e partidarizada, com indivíduos exercendo o direito de votar [43].

Na medida em que admite apenas o indivíduo como categoria social, duvidando da possibilidade sociológica de abordagem da sociedade com uma unidade diversa do conjunto de indivíduos que nela existe, Kelsen associa, por identidade, o elemento povo, tal como por ele conotado, à democracia parlamentar [44]. É somente um tal sentido de povo que permitirá sua defesa de liberdade e igualdade [45], assim como da prevalência de um princípio de tolerância [46], conquanto admita situações de exclusão [47]. Seu conceito de povo liga-se ao Estado, a constituir vínculo jurídico e individualizado, não se confundindo com o conceito de nação [48]. É o estado que atribuirá ao indivíduo a qualidade de pertencente ao povo, ordem jurídica, a partir do que define a sua Constituição, dotada de posição privilegiada na esfera normativa [49].


6. Em se tratando de uma obra que reflete décadas de participação no debate público, nela fica evidenciada a importância histórica atribuída por Kelsen à luta contra o autoritarismo [50]. Sua reflexão sobre a chamada crise do parlamento serve-lhe de mote para reforçar a defesa da associação entre democracia e parlamentarismo, designando a inexatidão dos juízos existentes a esse respeito. Em sua ótica, o sistema parlamentar é o que melhor se ajusta às idéias de autonomia democrática e de liberdade [51].

O parlamento é fruto da modernidade racionalizada e aparece como uma "conciliação entre a exigência democrática de liberdade e o princípio da distribuição do trabalho" (diferenciação social). Forma a vontade estatal, em lugar do próprio povo [52]. Trata-se de representação como ficção, que implica a impossibilidade de mandatos imperativos. Com efeito, a pretensão de representação absoluta no parlamento acarretaria a perda de sua legitimidade, já que improvável a representação parlamentar como plena identidade popular, salvo em teorias metafísicas. Para Kelsen, não se deve pretender essa perfeita identificação, mas só, e exclusivamente como técnica, deve-se admiti-la como instrumento para a efetivação da ordem do Estado [53].

Kelsen, com influência da sociologia, reconhece a diferenciação social como marca da contemporaneidade, associando-a ao que denomina lei estrutural dos corpos sociais [54]. O parlamento é, sob essa ótica, uma necessidade orgânica do Estado [55], já que na sociedade contemporânea deve haver um órgão encarregado da tarefa de produzir normatização, ao lado do órgão governativo, ambos estabelecidos em virtude de uma necessidade social [56]. Tais órgãos produzem a "ordem estatal", que o autor percebe como mera expressão antropomórfica que, na realidade, se refere a mera procedimentalização da criação da ordem estatal.

Às críticas ao parlamento, entre as quais a de pouca participação "democrática" no trabalho parlamentar [57], Kelsen reage apontando a necessidade de controles, partidário e jurídico, e de responsabilização [58]. Isso não implicaria, contudo, a criação de instâncias de representação de natureza diversa da política, como as que agregassem categorias econômicas ou corporações. Tais organizações não apenas tornariam difíceis os acordos parlamentares [59], como negariam certa autonomização da política [60] (e do direito), percebida por Kelsen no Estado moderno. Em sua percepção, nenhuma representação fundada em interesses parciais e restritos poderia substituir com vantagem a política democrático-parlamentar.


7. Questão democrática fundamental, para Kelsen, é a relacionada ao raio de ação da maioria e a possibilidade do domínio de classe. Sua concepção de democracia se assenta, tanto quanto no princípio majoritário, na reserva de um núcleo de direitos das minorias. Comparecem, nessa seara, os direitos fundamentais, cuja função é proteger as minorias ou, mais especificamente, a "proteção do indivíduo" [61]. Por essa razão merecem previsão e garantia constitucional [62]:

"Se a minoria não for eliminada do procedimento no qual é criada a ordem social, sempre existe uma possibilidade de que minoria influencie a vontade da maioria. Assim, é possível impedir, até certo ponto, que o conteúdo da ordem social venha a estar em oposição absoluta aos interesses da minoria. Esse é o elemento característico da democracia. [63]"

A maioria permite a formação da vontade geral e sua fórmula de aferição se prende ao objetivo de máxima liberdade possível [64]. Kelsen admite, contudo, que nas relações entre maiorias e minorias ocorrem inúmeros jogos ocultos, relações reais de domínio político, que obrigam tanto a relativizar o critério quantitativo, quanto a equacionar os procedimentos democráticos no tempo. Tal constatação sobreleva a necessidade da técnica dialético-contraditória na arena parlamentar, bem como de haver compromisso com a regra do jogo [65]. Assim estatuído, o funcionamento democrático-parlamentar tenderá à produção da vontade geral estatal, a sintetizar "um meio-termo entre os interesses opostos" [66].

Igualmente importante, em Kelsen, é a adoção do sistema eleitoral proporcional, para assegurar a presença no parlamento do maior número de tendências e interesses possível [67]. Também o sistema eleitoral responde à racionalização da sociedade moderna [68] e, em uma democracia, deve haver a melhor relação entre composição das representações partidárias e tendências políticas presentes na sociedade [69].

Neste aspecto, salienta Kelsen, pode-se estabelecer um claro ponto distintivo entre autocracia e democracia. Naquela, não há possibilidade do contraditório, de interesses divergentes em confronto, das diversas posições existentes na sociedade se expressarem politicamente [70]. Fixa-se, pois, uma relação entre o princípio majoritário, proporcionalidade, e liberdade política [71].

O autor, neste ponto, não apenas reforça seu relativismo moral, quanto sua crença no pluralismo político, que o levam à incompatibilidade com idéias de uma sociedade fundada na absoluta identidade entre seus membros, na "plena comunhão de interesses" [72]. Há o contraponto expresso à concepção de democracia presente na ortodoxia marxista, mas, também, à versão schmittiana, centrada no princípio da identidade. E como se trata de uma concepção procedimental de democracia, essa distinção permite-lhe resolver a crítica de Rousseau ao Parlamento, a elidir a possível antinomia existente entre as noções de identidade, substituição e representação [73].

Kelsen assimila a divisão de classes que ocorre na sociedade e percebe como seu espelho a divisão no parlamento, o qual se converte no lugar mais adequado para expressar verdadeiramente essa divisão real [74]. Em suas palavras:

"Se, como sustenta a crítica feroz que o marxismo fez à democracia burguesa, o elemento decisivo é representado pelas relações reais das forças sociais, então a forma democrática parlamentar, com seu princípio majoritário-minoritário que constitui uma divisão essencial em dois campos, será expressão ‘verdadeira’ da sociedade hoje dividida em duas classes essenciais. E, se há uma forma política que ofereça possibilidade de resolver pacificamente esse conflito de classes, deplorável, mas inegável, sem levá-lo a uma catástrofe pela via cruenta da revolução, essa forma só pode ser a democracia parlamentar, cuja ideologia é sim, a liberdade, não alcançável na realidade social, mas cuja realidade é a paz" [75].

A disputa com o marxismo empreendida por Kelsen é, todavia, possível apenas nos termos de suas premissas. Nuanças contidas em certo marxismo, a explorar temas como ideologia, alienação e relações entre estruturas políticas, jurídicas e culturais com o modo de produção hegemônico lhe escapam, eis que sua discussão percorre apenas o problema da divisão de classes e, ainda assim, sob fundamento kantiano, a conferir primazia ao indivíduo [76].

Nos termos kelsenianos, a cidadania é compreendida apenas em seus aspectos civil e político, excluída a dimensão marshalliana da cidadania social. É esse sentido de igualdade, "negativo, formal e secundário" [77], vinculado à liberdade individual, não como justiça, de impreciso significado [78], que define a democracia para Kelsen. Neste ponto, o autor não enfrenta realmente o debate, abrigando-se sob o argumento da precedência da forma e a defesa da liberdade [79], embora assinale limites insertos na democracia eleitoral, como os níveis assimétricos de educação e a manipulação realizada pela imprensa capitalista.

Ainda assim, em termos condizentes com seus pressupostos, Kelsen é consistente na defesa do princípio majoritário [80], associado à defesa da liberdade individual e da igualdade formal, que é deduzido, justamente, da impossibilidade da igualdade absoluta como fundamento democrático [81]. Kelsen se aprofunda na questão, ao abranger a relação qualitativa entre maiorias, simples, absoluta ou qualificada, assim como os princípios da tolerância e da discussão ampla, importantes para um procedimento democrático [82] apto a possibilitar o exercício da liberdade pelo maior número de indivíduos.


8. A democracia em Kelsen remete a administração estatal à idéia de legalidade [83]. Liberdade, no plano teórico, é tida como ausência de domínio e inexistência do lugar do "chefe". Na realidade social, contudo, os chefes existem e Kelsen afirma a superioridade do sistema parlamentar no controle dos chefes [84]. Relaciona a separação dos poderes a democracia, mas acolhe a possibilidade de o sistema servir a Estados autocráticos [85], embora anteveja em si uma vocação democrática, já que pela "divisão do poder" a concentração autoritária pode ser impedida.

Kelsen realça que, na democracia, o (um) chefe do Executivo fica subordinado à vontade do parlamento (plural), o que torna fundamental a eleição, para garantir a composição do parlamento [86]. Essa eleição deve ser vista não como escolha de delegação, mas "método" de formação de órgãos estatais, superior à mera nomeação [87]. E, aqui, não há um chefe com natureza transcendental, mas um que decorre de racionalização organizacional, dotado não de valor absoluto, mas relativo. Na democracia substitui-se uma situação de irresponsabilidade pela possibilidade da responsabilização de um chefe que não é sobrenatural, porque "qualquer um pode ser eleito chefe" [88], já que a democracia induz uma crescente possibilidade do governado ascender às chefias [89].

O problema central é a questão dos chefes, que existem de fato [90], e que devem ser limitados pela adoção de eleições, que funcionam como seleção eficaz de chefes estatais. O método deve ser competitivo [91] e possibilitar a qualquer um pleitear a chefia [92], assegurados direitos de liberdade e igualdade formal, comprometendo-se todos com a regra do jogo, de maneira que a minoria eventualmente chegue a ser maioria [93].

Para o autor, se "o problema político-social é apenas saber de que modo o melhor ou os melhores podem chegar ao poder e mantê-lo", na democracia esse problema se resolve com ampla vantagem sobre a autocracia e sem a necessidade de se recorrer a argumento transcendental [94], porque vige o princípio de que qualquer um pode chegar a chefe [95].


9. Perceba-se que a teoria da democracia se insere no pensamento de Kelsen unida às demais áreas abrangidas pelo autor. Com efeito, sua composição é dependente de uma concepção peculiar do direito, do Estado e da moral, de corte positivista. Deriva dessa base sua concepção de democracia como técnica de produção do ordenamento jurídico, caracterizada pela divisão de trabalho racionalizada, com a entrega da produção normativa para um órgão especializado, que delibera, em geral, por maioria simples, e é composto mediante eleição pelo sistema proporcional, na qual votam o maior número de eleitores possível.

Conquanto enfatize a instrumentalidade da via parlamentar, centrada no princípio da maioria simples, acentua a importância da deliberação, o que o aproxima da teoria deliberacionista mais recente [96], ainda que sua ênfase seja no problema da liberdade e na conseqüente possibilidade de síntese entre a posição do Estado e a do cidadão, que deve ser reduzida a um nível aproximativo, motivo pelo qual o que distinguirá a democracia da autocracia não será a natureza ou a justificativa da representação, mas a sua forma de instituição.

Trata-se de uma democracia radicada na impossibilidade da participação direta e da unanimidade entre os cidadãos, razão da defesa dos métodos eleitoral e parlamentar, semelhantemente tanto à versão madisoniana quanto às teorias, por exemplo, de Schumpeter [97], Downs [98] ou Arrow [99], que, todavia, tendem a esgotar a questão democrática no processo eleitoral.

Há que se considerar a relação desse modelo minimalista de democracia com o relativismo de valores assumido pelo autor e com sua definição de liberdade e igualdade. A tensão entre autonomia da consciência individual e heteronomia oriunda da ordem jurídica estatal se assenta em um sentido de liberdade que se afirma tão-somente no indivíduo racional, e no relativismo extremo que decorre da suposição de uma verdade absoluta inacessível, a partir da qual valores a identificar o bom, o bem, e o certo, serão, necessariamente, contextualizados. Nessa democracia inorgânica a visão da minoria nem sempre é má, ruim, errada, já que não há valores fixos e independentes. Exige-se, pois, a possibilidade de decisões serem revertidas e valores serem trocados, embora o valor liberdade individual, típico da tradição liberal, permaneça como premissa inafastável, a condicionar qualquer conclusão.

Justifica-se, assim, uma noção fraca e formal de povo, apenas normativa, dada a impossibilidade, para o autor, de uma visão sociológica de cunho orgânico. Povo é um conjunto de pessoas subordinadas a uma mesma ordem estatal, e, ao contrário da posição de Schmitt, não exatamente um conjunto dos titulares de direitos políticos, de maneira que o exercício das funções de governo não se realiza exatamente pelo cidadão, por delegação ou representação, mas pela subordinação de cada indivíduo à ordem jurídica.

Nesse diapasão, o Estado será realidade jurídica, supostamente válida, que atua como sintetizador dos múltiplos atos individuais [100]. Vale a idéia de que "se devemos ser comandados, queremos sê-lo por nós mesmos" [101], na qual se inserem a precedência do parlamentarismo, como forma de organizar o trabalho jurídico-estatal, o princípio da legalidade, a guiar a ação do Estado que administra e do Estado que julga, e o controle de constitucionalidade, instrumento securitário.


10. Em Kelsen, direito, Estado e democracia se vinculam estreitamente. O autor afirma que o Direito é um sistema normativo, dotado de normas válidas e coercitivas, que compõem um "esquema de interpretação", a conferir sentido jurídico aos diversos atos [102]. Direito e Estado se fundem, levando à afirmação de que "o Estado é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta" [103]. Assim, "o poder do estado é o poder organizado pelo direito positivo – é o poder do direito, ou seja, a eficácia do direito positivo. [104]"

O arranjo democrático kelseniano tem, todavia, importante suporte em sua noção de Constituição e no papel atribuído à Jurisdição Constitucional. Verificam-se relações de oposição e complementaridade entre o princípio majoritário e a jurisdição constitucional, a implicar uma tensão entre constitucionalismo e democracia. Essa tensão, porém, deve funcionar como garantia dos procedimentos democráticos e, por consequência, da liberdade individual e dos direitos da minoria [105].

A noção kelseniana de controle de constitucionalidade dialoga com a posição clássica de Sieyés [106], implicando ênfase nas relações entre eficácia da Constituição e controles estatais [107], e entre poder constituinte e poder legiferante, exercido pelo parlamento [108]. Introduz-se, aqui, uma democracia a exigir procedimentos, que devem ser realizados por órgãos determinados, no seio do Estado [109], objeto de controles [110]. É um Estado dotado de certa racionalidade [111], que orbita em torno da noção de lei como expressão da vontade geral [112]. Afirma-se a supremacia da Constituição [113], assim como as dimensões oponíveis de democracia da legislação e democracia da administração [114].

À jurisdição constitucional compete racionalizar a relação entre Constituição e política [115], considerando-se Constituição não apenas expressão das forças políticas de uma sociedade, mas, essencialmente, norma jurídica primordial de um Estado que equivale à ordem jurídica. Kelsen destaca a questão da submissão dos poderes constituídos à Constituição e a necessidade lógica da existência de condições de controle [116], admitida a existência de limites para a representação parlamentar em face da Constituição [117].

A Constituição, admite Kelsen, possui princípios que provêm de fonte político-ideológica, mas isso não compromete seu caráter jurídico, inclusive porque sua abertura deixa os poderes constituídos "autorizados a preencher de forma discricionária" [118] a aplicação da regra. Tais princípios funcionam como limite jurídico, na condição de diretivas, sujeitas, entretanto, aos riscos de sua interpretação a cargo da jurisdição [119]. O autor se preocupa com a possibilidade do excesso de poder em um órgão [120], seja administrativo ou judiciário, embora deva-se considerar que a Constituição pré-define não somente procedimento na atividade legiferante, mas o próprio conteúdo das leis [121]. Adota, bem assim, a teoria do gradualismo [122], afirmando a semelhança entre lei e jurisdição, decisões que difeririam entre si pelo aspecto quantitativo apenas. Essa acepção cobriria, também, aspectos principiológicos e, especialmente, às diretivas constitucionais no campo de políticas estatais.

Observe-se, nessa seara, que Kelsen, na defesa da jurisdição constitucional como componente democrático, tangencia o problema de um tribunal, que deve emitir decisões de caráter jurídico, imiscuir-se na política, realizando, juridicamente, o controle da constitucionalidade de atos políticos [123]. Na identidade entre Estado e ordem jurídica, o autor funde direito e política ou, antes, permite uma absoluta tradução jurídica da política. Por isso, por exemplo, sua completa antinomia com a gramática schmittiana, que, ao contrário, tende a resolver a questão apenas sob o ângulo político, mantendo o direito em relação de subserviência ante a política, nos termos de esquemas próprios da organização estatal precedentes à noção de Estado de Direito. Poder-se-ia, com Luhmann, discutir o mesmo problema a partir de aspectos estruturais e funcionais, verificando o caráter da Constituição, e também da produção legislativa, como derivado de uma relação de acoplamento estrutural entre direito e política, que não perdem sua identidade (código-função), mas operam um pressupondo a ação do outro [124]. Em Kelsen, no entanto, democracia parlamentar, legalidade administrativa e jurisdição constitucional são os pilares possíveis a uma ordem jurídico-estatal que, de fato, deve conviver com o problema da discricionariedade conferida ao juiz ou ao administrador [125]. Nos termos do relativismo que abraça, essa é a versão mais consistente de Estado democrático concebível.


11. O relativismo de Kelsen em matéria de valores fica evidente ao considerar a democracia como forma de governo mais apta à realização da liberdade e, em termos, da igualdade [126]. O autor dialoga com vertentes teóricas que, a seu juízo, induzem o autoritarismo, que aparece conjugado à absolutização de valores. Opõe positivismo a jusnaturalismo, Estado a religião, democracia a autoritarismo. Em seu quadro de referência alinham-se, consoante a perspectiva positivista, um Estado como ordem jurídica, aberto a valores relativos, estabelecidos de forma jurídico-normativa em termos democráticos, observada a barreira contra-majoritária constitucional. Um tal enquadramento não alberga perspectivas de fundo religioso ou derivadas do direito natural.

Kelsen rechaça o argumento jusnaturalista de autores como Emil Bruner, Reinhold Niebuhr e Jacques Maritain, que defendem uma concepção cristã e absoluta de democracia. Para Kelsen, a justificação cristã é falha e não haveria, na realidade, uma relação necessária entre democracia e cristianismo [127]. O autor debate com essas posições político-teológicas, acentuando que o problema do autoritarismo não está no relativismo positivista, sujeito a toda sorte de utilizações, mas na metafísica própria da religião como do totalitarismo [128]. Em bases positivistas, afirma que fundar uma justiça na revelação divina não permite o estabelecimento de quaisquer princípios pois "envolve a falácia lógica que consiste em concluir, daquilo que é, aquilo que deve ser ou não deve ser".

Evidentemente que a sua própria argumentação, ao supor uma sociedade inicial composta por indivíduos livres e iguais, que realizam certas escolhas a partir de determinados valores, padece de mal assemelhado. Em sua teoria democrática, liberdade e igualdade são pressupostos para a escolha fundamental dos valores liberdade e igualdade. Há uma circularidade e nela o individualismo alcança valor absoluto, permitindo que se constate que o relativismo kelseniano, neste ponto, resta contaminado por um pressuposto absoluto [129]. Zagrebelsky nota o problema e o circunscreve na discussão sobre três modelos de democracia, que designa como sendo o dogmático, relativo à defesa filosófica do absolutismo; o cético, próprio do relativismo; e o crítico, de caráter reflexivo. Para o autor, Kelsen acerta na crítica à justificação metafísica da democracia, mas falha no diagnóstico, por desconsiderar a perspectiva crítica [130].

A perspectiva individualista de Kelsen é próxima à abordagem de Schumpeter, que também pretendeu uma teoria descritiva e neutra, despida de conteúdo ideológico. De certa forma, a perspectiva dos dois se encaixa, já que o mesmo indivíduo kantiano, realizando escolhas racionais, está presente. No plano da psicologia, Kelsen reforça suas posições ao dialogar com o pensamento de seu contemporâneo, Freud, ou com a psicologia social de Gustave Le Bon [131].


12. A contribuição de Kelsen para a teoria democrática compõe o amplo mosaico formado em torno do tema nos dois últimos séculos. Não por acaso, relaciona-se com o pensamento de outros autores e correntes doutrinárias, sejam antecessores, que desde o iluminismo tangenciam a questão, sejam os teóricos do século XX. Nessa gama de posições e perspectivas, verificamos modelos de democracia ora mais próximos, ora mais distantes, de Kelsen. Em alguma medida, vertentes como a elitista, a pluralista, a legalista, a participativa e a deliberacionista [132], com ela dialogam. Há, por exemplo, semelhanças sensíveis com Hayek e o pensamento liberal, em vista da defesa da liberdade e da instrumentalidade da democracia, ou com o modelo schumpeteriano, pelo patrocínio da competição eleitoral. Percebe-se, ainda, ecos do realismo de Weber e Schumpeter, e da racionalidade individual e elitismo presentes, por exemplo, em Downs. Distancia-se, porém da racionalidade societária e do procedimentalismo Habermasiano [133].

A discussão que promove sobre a democracia contém ponto de contato com o pensamento político produzido desde o séc. XVII. Entre outros aspectos, merecem realce a recepção kelseniana da base contratualista, assim como a problematização da representação parlamentar, da relação entre democracia, liberdade e igualdade, e da operacionalização de um sistema democrático fundado na disputa eleitoral.

Kelsen desenvolve, por exemplo, a questão do contrato social, dialogando com a perspectiva de Rousseau, na qual estão presentes também os temas da democracia, da liberdade e da igualdade [134]. Trata, ainda, dos fundamentos da representação [135], discutindo-os sob o prisma da unidade de interesses em oposição ao multilateralismo que adota.

O alicerce eleitoral da democracia, visto em Kelsen, já está presente na obra dos federalistas. Madison aborda a questão da multiplicidade de interesses existentes na sociedade, forjando a idéia de uma república de interesses [136], que tornaria menos provável uma combinação de interesses em favor de uma determinada facção [137]. O argumento se aproxima do kelseniano, conquanto esteja em estrutura epistemológica diversa. Há, também, semelhanças na técnica democrático-eleitoral minimalista que propõe, a revelar, igualmente, preocupação com a ação das maiorias contra as minorias [138]. Tem-se, neste caso, um conceito de democracia como "sociedade congregando um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente", análogo à representação democrática organizada sob um princípio de divisão social do trabalho, verificada em Kelsen. Este último, contudo, demarca clara diferença quanto ao alcance da representação e à importância das facções partidárias para induzir uma democracia como diversidade.

Como já observado, a concepção de democracia em Kelsen assume alguns pressupostos da sociologia clássica, ainda que divirja em aspecto essencial, qual seja o caráter orgânico da sociedade [139]. Ainda assim, pode-se observar que a teoria absorve uma visão da modernidade racionalizada em termos weberianos [140], derivando da mesma um funcionalismo [141] assentado na divisão do trabalho social [142]. Note-se que, explicita ou implicitamente, de modo especial ao relatar aspectos da organização do Estado democrático, Kelsen admite a presença de estruturas, instituições e funções sociais que adquirem ação pelo menos parcialmente autônoma.

Como em Kelsen, autores como Hayek [143], Schumpeter [144], Downs [145] ou Arrow [146] defenderão modelos minimalistas de democracia, ora focados na instrumentalidade e eficiência da relação entre representação e sistema eleitoral, ora a enfatizar a defesa da liberdade individual. Em comum, verifica-se a perspectiva da racionalidade individual a escalonar preferências e realizar escolhas, todavia Kelsen apresenta-se mais relativista em termos de valores e tende a dissociar economia e política, o que não ocorre nos demais. Destaque-se, ainda em Arrow, em termos bastante sofisticados, o desenvolvimento da intuição presente em Kelsen acerca da impossibilidade de composição da vontade geral, e mesmo da vontade da maioria.

Acentue-se, ainda, que, no Kelsen de "Essência e Valor da Democracia" a proximidade com Schumpeter é significativa, já que em ambos prevalece a concepção de democracia como técnica, posteriormente, contudo, o autor conferirá mais realce à base popular da competição eleitoral [147] e criticará o modelo schumpeteriano [148], em especial seu traço mais formalista e sua afirmação de dúvida quanto à garantia de mais liberdade na democracia que em outros sistemas. Neste aspecto, mantém proximidade com Kelsen a concepção democrática de Bobbio [149], que, nomeadamente [150], absorve a base kelseniana, a assumir não somente o princípio da concorrência político-eleitoral, mas sobretudo sua fundamentação na defesa da liberdade e dos direitos fundamentais [151].

Autores de base jurídica positivista, como Bobbio, que expõe uma idéia de democracia procedimental, dotada de regras para assegurar a livre e pacífica convivência de indivíduos em sociedade [152], ou Carré de Malberg, que evidencia em sua obra o mesmo viés jurídico e a concepção da ordem democrática estatal como meio de organização [153], bem expressam a presença do formalismo positivista a associar concepções de direito e política análogas e regê-los como tendência que perpassou o século XX a justificar melhor o Estado, como ordem jurídica, que a democracia, procedimento enlaçado à defesa da liberdade.

Ante a obra de Kelsen, especialmente sua defesa da democracia como técnica, centrada no parlamento e resguardada pela Constituição, Schmitt se esmerou em denunciar a ausência de elementos substantivos na versão kelseniana de Estado democrático, ao opor seu individualismo contra uma noção orgânica de povo, tendo como base uma política hipostasiada no Estado e a adoção de um princípio de identidade, a amalgamar a relação entre Estado, governante e soberania popular [154]. Note-se que, apesar do debate enfrentado por Kelsen contra Schmitt, na defesa de suas posições, a crítica schmittiana à democracia parlamentar foi apropriada por importantes autores nas últimas décadas, entre os quais podem ser citados Paul Hirst [155], Chantal Mouffe [156] e Giorgio Agamben [157], os quais, em certa medida, atualizam o debate em termos contemporâneos.

Em campo próximo, a crítica marxista a modelos democráticos como o kelseniano remanesce em autores diversos, como Poulantzas e Jessop, os quais, discutindo democracia sobre pressupostos mais complexos [158], percebem no espaço estatal redes de interesses [159], alocadas não apenas na representação, e objeto de disputas [160] que a competição eleitoral, por si só, não alcança. Boaventura Santos, por seu turno, crítica o modelo kelseniano, a impugnar seus principais elementos, o formalismo, o individualismo, o monismo, com uma perspectiva que associa pluralismo jurídico, multiculturalismo e uma concepção de substantiva de democracia e direito como meios de emancipação social [161].

De concepções deliberativistas de democracia, percebida em autores como Habermas [162] ou Höffe [163], que, via de regra, fundamentam as relações político-jurídicas pressupondo a possibilidade da construção de um discurso intersubjetivo, a obra de Kelsen encontra pontos de atrito e de contato. A par da fundamental divergência epistemológica, tem-se, aqui, por exemplo, democracia como organização para a execução das decisões do poder, operando segundo a regra da maioria, admitindo-se a funcionalidade do parlamento, assim como o papel dos direitos humanos, da divisão de poderes [164], e da Constituição como aparato contramajoritário oponível às decisões tomadas por procedimentos democráticos [165].

A concepção de democracia em Kelsen, como visto, se abre a diálogo variado e apropriações diversas. Embora, em alguma medida, suas especificidades estejam sendo superadas pelas contingências que os novos contextos impõem, seu núcleo remanesce apto a contribuir com o debate político contemporâneo, notadamente nos pontos em que valoriza o procedimento, a liberdade e a prevalência do jurídico como mediação social, assim como em seu realismo e sua abertura a uma pluralidade de valores e interesses.


13. Kelsen desenvolve uma teoria da democracia que, simultaneamente, conecta-se a seu corpo teórico geral, e permite sua inserção no debate político contemporâneo. O autor estabelece um modelo de democracia como procedimento, de caráter formal e instrumental, sobre uma base que conjuga relativismo moral, realismo político, positivismo jurídico e individualismo metodológico. Nele, a principal questão a ser resolvida pela democracia remete à relação entre um Estado, que equivale à ordem jurídica, e a liberdade individual, exigência da razão prática.

A oposição inerente a diferentes fontes de decisão, a individual e a estatal, tornam a democracia, sob essa perspectiva, o regime mais desejável, já que o único a conciliar maximização da liberdade com prevalência da ordem social. Nesse ambiente, que, em termos liberais, pressupõe tanto um indivíduo atomizado, quanto uma sociedade contratualizada [166], nega-se a idéia de povo como unidade, admitindo-a apenas como sistema de atos individuais, ligado à ordem social por um liame jurídico. Esse vínculo se expressa, especialmente, por meio da Constituição [167], que possui sentido igualmente jurídico e deve normatizar a própria democracia, a definir procedimentos e conteúdos para a formação de acordos em torno da vontade geral estatal [168].

Trata-se de uma obra que ocupa espaço relevante na construção das idéias democráticas que ocorreu no século XX e perdura hoje. Embora identificada com a tradição liberal [169], a teoria democrática kelseniana, como ele próprio a percebia nos debates que travou [170], é passível de apropriação por qualquer Estado, quaisquer que sejam os conteúdos de seus compromissos políticos. Talvez insuficiente, se confrontada com modelos que aprofundam a perspectiva democrática, é uma teoria que, contudo, cumpre o importante papel de fundamentar, em bases pragmáticas, relações jurídicas e políticas em harmonia com ideais de liberdade, igualdade e pluralismo político, legado das tradições liberal e republicana que marcam a experiência das sociedades contemporâneas. É, nesse sentido, obra ainda dotada de certa atualidade e interesse.


NOTAS:

  1. Der Begriff des Staates und die Sozialpsychologie. Mit besonderer Berücksichtigung von Freuds Theorie der Masse (1922); Das Problem des Parlamentarismus (1924); Wesen und Wert der Demokrati (1929); Absolutism and Relativism in Philosophy and Politics (1948); Foundations of Democracy (1955).
  2. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 209.
  3. Idem, p. 205.
  4. Idem, p. 25.
  5. FINLEY, Moses I. Os Gregos Antigos. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 48-49.
  6. MANIN, Bernard. The principles of representative government. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
  7. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 144-146.
  8. KELSEN, Hans. O que é justiça? A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 10.
  9. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 195.
  10. Idem, p. 32.
  11. Idem, p. 193.
  12. Idem, p. 39.
  13. Idem, p. 42.
  14. Idem, p. 40.
  15. Idem, p. 27.
  16. Idem, p. 27.
  17. Idem, p. 27.
  18. Idem, p. 27-28.
  19. Idem, p. 27.
  20. Idem, p. 28.
  21. Idem, p. 134.
  22. Idem, p. 29.
  23. Idem, p. 30.
  24. Idem, p. 30.
  25. Idem, p. 30-31.
  26. Idem, p. 31.
  27. Idem, p. 31.
  28. Idem, p. 31-32.
  29. Idem, p. 32.
  30. Idem, p. 33.
  31. Idem, p. 27.
  32. Idem, p. 33.
  33. Idem, p. 33-34.
  34. Idem, p. 35.
  35. Idem, p. 36.
  36. Idem, p. 36.
  37. Idem, p. 37.
  38. Idem, p. 38.
  39. Idem, p. 39.
  40. Idem, p. 40.
  41. Idem, p. 41.
  42. Idem, p. 41.
  43. Idem, p. 42-43.
  44. Idem, p. 182.
  45. Idem, p. 180-181.
  46. Idem, p. 182-183.
  47. Idem, p. 37.
  48. Idem, p. 38.
  49. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p., p. 18.
  50. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 45.
  51. Idem, p. 46.
  52. Idem, p. 47.
  53. Idem, p. 49.
  54. Idem, p. 47 e 50.
  55. Idem, p. 52.
  56. Idem, p. 50-51.
  57. Idem, p. 53.
  58. Idem, p. 54.
  59. Idem, p. 58-59.
  60. Idem, p. 64-65.
  61. Idem, p. 68.
  62. Idem, p. 68-69.
  63. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 411.
  64. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 69.
  65. Idem, p. 70.
  66. Idem, p. 70.
  67. Idem, p. 71.
  68. Idem, p. 73.
  69. Idem, p. 73.
  70. Idem, p. 75.
  71. Idem, p. 77.
  72. Idem, p. 77.
  73. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p., p. 201.
  74. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 78.
  75. Idem, p. 78.
  76. Idem, p. 101.
  77. Idem, p. 99.
  78. Idem, p. 100.
  79. Idem, p. 100.
  80. Idem, p. 178.
  81. Idem, p. 32.
  82. Idem , p. 178-182.
  83. Idem, p. 83.
  84. Idem, p. 88.
  85. Idem, p. 90.
  86. Idem, p. 91.
  87. Idem, p. 92.
  88. Idem, p. 94.
  89. Idem, p. 94 e 96.
  90. Idem, p. 88-91.
  91. Idem, p. 279.
  92. Idem, p. 96.
  93. Idem, p. 106.
  94. Idem, p. 95.
  95. Idem, p. 96.
  96. Entre outros, podem ser relacionados, nessa linha, autores como Jürgen Habermas, James Bohman, Joshua Cohen, Íris Marion Young, Amy Gutmann, John Rawls e Cass Sustein. Ver a respeito em MIGUEL, L. F. "Representação política em 3-D". In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 51. São Paulo, 2003; DRYZEK, John S.. Deliberative democracy and beyond: liberals, critics, contestations. Oxford, Oxford University Press, 2000.
  97. SCHUMPETER, J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
  98. DOWNS, Anthony, Uma teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999.
  99. ARROW, Kenneth J. Social Choice and Individual Values. New Haven: Yale University Press, 1963.
  100. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 305-306.
  101. Idem, p. 28.
  102. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.4.
  103. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 190.
  104. Idem, p. 192.
  105. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 201-202.
  106. Idem, p. 203.
  107. Idem, p. 22.
  108. Idem, p. 207.
  109. Idem, p. 165.
  110. Idem p. 14-15.
  111. Idem.
  112. Idem, p. 200.
  113. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 24-27.
  114. Idem, p. 37.
  115. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 213.
  116. MALBERG, Carré de. A sanção jurisdicional dos princípios constitucionais. In: Idem, p. 207-209.
  117. Idem, p. 201-202.
  118. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 168.
  119. Idem, p. 169.
  120. Idem, ibidem.
  121. Idem, p. 261.
  122. Idem, p. 260.
  123. Idem, p. 262.
  124. LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo (coord.). et alli. Il Futuro Della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996.
  125. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 262.
  126. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 205.
  127. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 206 e ss.
  128. Idem, p. 209-211.
  129. OLIVEIRA, Júlio A. de. Os Fundamentos da democracia: análise crítica da justificação funcional da democracia por Hans Kelsen.
  130. ZAGREBELSKY, Gustavo. La Crucifixión y la democracia. Barcelona: Ariel, 1996, p. 8 e ss.
  131. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 301 e ss.
  132. Citem-se, por exemplo, na elitista, J. A. Schumpeter; na pluralista, R. Dahl; na legalista, F. Hayek; na participativa, C. Pateman, N. Poulantzas e C. B. Macpherson; na deliberacionista, B. Manin e J. Habermas.
  133. Para uma exposição dos modelos de democracia, ver em: AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia. São Paulo:Perspectiva, 1996, capítulo 5.
  134. ROUSSEAU, J. J. Do contrato social e outros escritos. São. Paulo: Nova cultural, 1999.
  135. Ver, por exemplo, em MILL, John Stuart. Considerações sobre o governo representativo. São Paulo: IBRASA, 1964. Também, a obra de Edmund Burke em HOFFMAN, J. S. e LEVACK, P. (orgs.). Burke’s Politics. New York: Knopf, 1967 HOFFMAN, J. S. e LEVACK, P. (orgs.). Burke’s Politics. New York: Knopf, HOFFMAN, J. S. e LEVACK, P. (orgs.). Burke’s Politics. New York: Knopf, HOFFMAN, J. S. e LEVACK, P. (orgs.). Burke’s Politics. New York: Knopf,.
  136. PITKIN, Hanna Fenichel. El Concepto de Representación. Madrid: CEC, 1985.
  137. MADISON, J., HAMILTON, A. e JAY, J. O Federalista. Campinas: Russel, 2003, artigo nº 10.
  138. Op. cit., artigo nº 51.
  139. GIDDENS, Anthony. Las Nuevas Reglas del Método Sociológico. Buenos Aires: Amorrortu, 1993.
  140. WEBER, M. C. E. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1969.
  141. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Madrid: Alianza, 2000.
  142. DURKHEIM, Emile. Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1955; La División del Trabajo Social. Madrid: Akal, 1995.
  143. HAYEK, F. Os fundamentos da liberdade. Brasília: UnB, 1983; O caminho da servidão. Rio de Janeiro: IL, 1990.
  144. SCHUMPETER, J. A. Op. cit.
  145. DOWNS, Anthony. Op. cit.
  146. ARROW, Kenneth. Op. cit.
  147. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 279.
  148. Idem, p. 142-143.
  149. BRANDÃO, Assis. "Bobbio na história das idéias democráticas". In: Lua Nova, n° 68, 2006, p. 135 e ss.
  150. BOBBIO, Norberto. Politica e Cultura. Turim: Einaudi, 2005; Rappresentanza e interessi. Rappresentanza e democrazia (org. Gianfranco Pasquino). Bari: Gius, Laterza & Figli, 1988, pp. 1-27;
  151. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  152. Diário de Um Século. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 82.
  153. CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Contribution a la Théorie Générale de l’État. V. I. Paris: Recueil Sirey, 1922.
  154. SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992; Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007; Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
  155. HIRST, Paul Q. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Zahar. 1992.
  156. MOUFFE, Chantal. The Return of the Political. Londres: Verso, 2005, p. 128-130.
  157. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
  158. JESSOP, Bob. State Theory. Putting the Capitalist State in its Place. Cambridge: Polity Press, 1990
  159. Idem, p. 96..
  160. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
  161. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.
  162. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997
  163. HÖFFE, Otfried. A Democracia no Mundo de Hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 123-125.
  164. Idem, p. 129.
  165. ELSTER, Jon e SLAGSTAD, Rune. Constitutionalism and Democracy. Cambridge: Cambridge UP, 1997.
  166. KELSEN, HANS. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 31.
  167. KELSEN, HANS. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 260-261.
  168. Como reconhece, embora ressaltando sua insuficiência, Chantal Mouffe, por exemplo. Op. cit., p. 129.
  169. KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 32.
  170. Idem, p. 254.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Wladimir Rodrigues. A Democracia no pensamento de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2930, 10 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19522. Acesso em: 18 abr. 2024.