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Aspectos históricos da tutela coletiva dos interesses metaindividuais

Aspectos históricos da tutela coletiva dos interesses metaindividuais

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Não há dúvidas de que os interesses metaindividuais sempre existiram. Sua revelação deu seus primeiros sinais com a Revolução Industrial, quando os valores tradicionais e individualistas do século XIX foram mitigados pela chamada "sociedade de massa".

De fato, os direitos inerentes à condição humana, após muitas lutas e reivindicações, encontraram, no século XVIII, um cenário propício para o seu desenvolvimento, conjugando fatores de ordem objetiva e de ordem subjetiva. As primeiras declarações de direitos daquele século exalavam um caráter individualista do homem, sobrepondo valores individuais aos valores sociais, em decorrência das condições materiais daquela sociedade. As condições objetivas (também chamadas de reais, históricas ou materiais) manifestaram-se em razão do choque entre o regime absolutista e uma sociedade nova, tendente à expansão comercial. As condições subjetivas (também denominadas ideais ou lógicas), por sua vez, consistiram nas fontes de inspiração filosóficas adotadas pela doutrina francesa, que revelavam três fatores: o pensamento cristão, a doutrina natural dos séculos XVII e XVIII e o pensamento iluminista.

O pensamento cristão pregava a dignidade eminente da pessoa humana, sustentando a criação do homem à imagem e semelhança de Deus, o que revelava uma igualdade fundamental de natureza entre os homens [01].

A doutrina natural dos séculos XVII e XVIII, fundada na natureza racional do homem, fez surgir um poder político e um Direito positivo em contraposição à divinização sustentada pelo regime absolutista. Neste contexto, o pensamento jusnaturalista do século XVIII defendia a utilização da autoridade e da associação política para alcançar os direitos individuais que, por serem inerentes ao homem, fariam com que determinadas esferas da convivência humana prevalecessem sobre as possíveis arbitrariedades.

O pensamento iluminista, por sua vez, exaltou as liberdades individuais, sobrepondo-as aos valores sociais, firmando o individualismo caracterizador das primeiras declarações de direitos.

Ocorre que com as novas condições objetivas delineadas pelo desenvolvimento industrial, juntamente com o aparecimento de um proletariado amplo sujeito ao domínio da burguesia capitalista, as atenções voltaram-se para uma nova ordem de direitos fundamentais: os direitos econômicos e sociais. As novas doutrinas sociais tiveram como fonte de inspiração o Manifesto Comunista e as doutrinas marxistas (que postulavam liberdade e igualdade materiais, e não apenas formais como ocorria no capitalismo burguês); a doutrina social da igreja (que fundamentava uma ordem mais justa, aceitando a aplicação de postulados marxistas, mas ainda dentro de um regime capitalista); e o intervencionismo estatal (que, ainda no regime capitalista, reconhece o Estado como interventor legítimo no meio econômico e social, com o fim de proteger as classes menos favorecidas, mediante prestações positivas).

A partir do século XX, a regulação dos direitos econômicos e sociais passou a incorporar as Constituições Nacionais, sendo a Constituição Mexicana de 1917 a primeira Carta Magna a revolucionar a positivação de tais direitos, trazendo a função social da propriedade. Foi seguida da Constituição alemã de Weimar de 1919 que, por seu capítulo sobre os direitos econômicos e sociais, foi o grande modelo seguido pelas novas Constituições Ocidentais.

É neste contexto que a doutrina dos direitos humanos se desenvolve, assegurando que os direitos e garantias individuais, para a sua plena efetivação, devem se conjugar aos valores econômicos, sociais e culturais da sociedade.

Na globalização vivenciada nos dias atuais, portanto, não há espaço para o ser considerado exclusivamente no âmbito individual. Os seus interesses individuais devem ser conjugados com o interesse comum da sociedade, devendo este último, prevalecer sobre aquele. As medidas processuais devem, então, se adequar aos anseios da sociedade, o que denota a continua evolução e utilização das ações coletivas.


Origem das Ações Coletivas

Não é de hoje que o Direito se preocupa com a solução judicial de problemas de grupos, classes ou categorias de pessoas.

As class action do Direito Norte Americano, origem das ações coletivas brasileiras, tiveram suas raízes remotas nas cortes medievais inglesas de eqüidade, conhecidas como Courts of Chancery que, com a outorga do Bill of Peace, evidenciou a necessidade de se evitar a regra do direito estrito (que exigia a presença de todos os membros da classe no processo) quando o litisconsórcio fosse impossível ou impraticável.

Nos Estados Unidos, a regulamentação do tema passou por diversas fases que contribuíram para o desenvolvendo da matéria.

Em 1842, foi efetuada a primeira codificação dos procedimentos de eqüidade, sendo editada a Equity Rule 48 que, apesar de permitir que um caso envolvendo partes numerosas fosse possível prosseguir com uma base representativa sem a presença de cada indivíduo pessoalmente, não tinha em sua decisão eficácia vinculativa em relação às partes ausentes.

Em 1912, a Equity Rule 38 revogou a Equity Rule 48 e permitiu, além dos termos já dispostos por sua precessora, que os julgamentos em class actions pudessem vincular as partes ausentes em algumas circunstâncias específicas.

Em 1938, foi adotada a primeira versão da Rule 23 (integrando as Federal Rules of Civil Procedure), que estabeleceu:

"a) a class action poderiam ser admitidas quando impossível reunir todos os integrantes da class;

b) deveria o autor assegurar "adequada representação" da classe;

c) exigia-se uma comunhão de interesses entre os membros da class." [02]

A comunhão de interesses como um dos requisitos para a utilização da class action, levou à classificação das ações em true, hybrid (direitos coletivos indivisivelmente considerados) e spurious (direitos individuais divisíveis, conjuntamente tratados por sua origem).

A nova versão da Rule 23, aprovada em 1966, apresentou substancial mudança em relação a sua versão anterior, adotando-se um enfoque prático e funcional da class action, com ênfase na representação adequada. Foi abandonada a tríplice classificação da versão anterior, apesar de a referida distinção permanecer implicitamente no sistema até os dias de hoje.

Nos termos da versão vigente de Rule 23, são requisitos para que uma pretensão possa ser exercida por meio de class action (treshold requirementes) [03]:

1- a classe seja tão numerosa que torne impraticável a reunião da totalidade de seus membros (numerosity);

2- haja questões de direito ou de fato comuns à classe (commonality);

3- os pedidos ou as defesas das partes representantes sejam típicos dos pedidos ou das defesas da classe (tipicality);

4- as partes representantes protejam de maneira justa e adequada os interesses da classe (adequacy of representation).

Além desses requisitos, deve-se verificar um dos seguintes pressupostos:

"1- constatação de que o prosseguimento de ações separadas movidas por ou contra membros individuais da classe poderia gerar o risco de:

[A] julgamentos inconsistentes ou contraditórios em relação a membros individuais, que pudessem levar a parte adversa à classe a manifestar condutas antagônicas em relação aos diferentes integrantes da aludida classe; ou

[B] julgamentos em relação a membros individuais da classe que, do ponto e vista prático, pudessem prejudicar os interesses de membros alheios ao processo, ou afetar, de modo substancial, a capacidade destes últimos de defender seus interesses;

2 – constatação de que a parte oposta à classe tenha atuado ou se recusado a atuar de acordo com os parâmetros geralmente aplicáveis à classe, tornando, assim, apropriada, ou uma decisão mandamental de fazer ou não fazer, ou a correspondente sentença declaratória com relação à classe como um todo; ou

3- a constatação, pelo órgão julgador, de que as questões de direito ou de fato comuns aos membros da classe prevalecem sobre quaisquer questões que afetem apenas membros individuais (predominance) e de que a ação de classe é superior a outros métodos disponíveis para o justo e eficaz julgamento da controvérsia (superiority)" [04].

Nos subitens 1 e 2, a class action é obrigatória (mandatory). No subitem 3, a class action, denominada class action for damages, não é obrigatória, admitindo-se a auto-exclusão por parte de qualquer membro da classe que não deseje ser atingido pelos efeitos da coisa julgada

A origem das ações coletivas brasileiras está confessadamente nas class actions estadunidenses.

No Brasil, a defesa dos interesses coletivos teve seu ponto de partida na Lei 7347/85 – Lei da Ação Civil Pública, destinada à proteção dos interesses difusos e coletivos ligados ao meio ambiente, em sentido lato, e ao consumidor.

Posteriormente, foi ratificada e reforçada pela Constituição de 1988 que dispôs sobre a legitimidade ativa das associações (art. 5º, XXI) e dos sindicatos (art. 8º, III), criou o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX ), ampliou a legitimação para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), atribuiu status constitucional à ação civil pública para a defesa de qualquer interesse difuso e coletivo, conferindo legitimidade ao MP (art; 129,III), sem prejuízo da legitimidade concorrente de terceiros (Art. 129, §1º).

O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) desenvolveu consideravelmente a matéria, introduzindo importantes modificações à Lei nº 7.347/80 (Lei de Ação Civil Pública), ampliando a abrangência da ação civil pública para "qualquer outro interesse difuso e coletivo". Além disso, estipulou expressamente a aplicação do Título III do CDC às ações civis públicas da Lei nº 7.347/85 (no que for cabível), estendendo a proteção coletiva aos interesses individuais homogêneos (art. 117, Lei nº 8.078/90). Criou-se, assim, o denominado microssistema das ações coletivas, o qual tende a se desenvolver a cada dia, com a criação de novos institutos que visam dar um tratamento coletivo às matérias postas em Juízo (ex: repercussão geral nos Tribunais Superiores) e com a reforma das leis vigentes, como se nota no anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (que prevê o incidente de Resolução de Demandas Repetitivas).


REFERÊNCIAS

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LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 3ª ed. Tradução Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiro,2005. v. 1.

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ZACLIS, Lionel. Proteção Judicial dos Investidores no Mercado de Valores Mobiliários (análise crítica da Lei 7913/89 e subsídios para uma visão unitária da ação coletiva). Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo .São Paulo: 2003.

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Notas

  1. A idéia do cristianismo, contudo, é apenas fonte remota dessas declarações, já que a sua mensagem, conforme afirma Afonso da Silva, significa mais a confirmação da escravidão humana do que uma afirmação de liberdade (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 2006, p.174)
  2. ZACLIS, Leonel, Proteção Judicial Coletiva dos Investidores no Mercado de Valores Mobiliários, Tese de Doutorado – Universidade São Paulo, São Paulo, 2006
  3. Cf. Zaclis, op. cit., p.24
  4. Zaclis, op. cit., pp. 25-26.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MECELIS, Adriana. Aspectos históricos da tutela coletiva dos interesses metaindividuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2940, 20 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19583. Acesso em: 29 mar. 2024.