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Análise de caso judicial à luz da teoria do domínio do fato

Análise de caso judicial à luz da teoria do domínio do fato

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A teoria do domínio do fato é um critério material de aferição da autoria delitiva, de Welzel e Roxin, em contraponto às teorias objetivas da autoria, que busca explicar pontos sobre o concurso de pessoas, como a autoria mediata.

A Teoria do Domínio do Fato é um critério material de aferição da autoria delitiva criada por Welzel e desenvolvida posteriormente por Roxin [01], que surge em contraponto às teorias objetivas da autoria na tentativa de melhor explicar alguns pontos relativos ao concurso de pessoas, como a autoria mediata (na qual o autor mediato não realiza o verbo núcleo do tipo nem concretiza materialmente a realização do fato, porque se serve de terceira pessoa para isso). Em síntese, domínio do fato é o domínio que o agente tem sobre o resultado típico.

Segundo Welzel, o autor direto é o senhor sobre sua decisão e execução e, com isso, o senhor sobre seu ato, o qual ele realiza de forma conscientemente final em sua essência e existência.

O autor domina a realização do fato, ou seja, detém nas mãos o curso do acontecimento típico, tem poder de decisão e execução sobre ele e sobre a vontade alheia (domínio final do fato).

A autoria mediata aparece como produto da evolução técnico-teórica do conceito de autor. Historicamente, entendia-se que o autor principal era unicamente aquele que executava o ato físico consumativo do delito. Confundia-se a execução do fato com sua realização fática. Era autor quem se constituía na causa do resultado proibido.

La tesis de dominio del hecho, que considera que la calidad de autor la confiere la titularidad de la facultad de disponer de la ejecución de hecho, interrumpirlo o abandonarlo; caracterizando la autoría en el dominio final del hecho, por tanto dominio del hecho lo tiene quien concretamente dirige la totalidad del suceso a un fin determinado4; autor es quien tiene el dominio del desarrollo del proceso ejecutivo. [02]

Na Teoria do Domínio do Fato, o autor mediato, ou "homem de trás" (hinterman) [03], detém o chamado domínio pleno do fato e a vontade do autor imediato a ele subordinado que lhe serve de instrumento. Dele emana a ordem para a execução do delito. Contudo, é o autor imediato que pratica efetivamente o fato, até porque o manejo da ação com sucesso fático está nas mãos de seu realizador.

Coautor é o codetentor da decisão de realizar o fato. É aquele que toma parte na execução do delito codominando o fato [04]. Só haverá esta figura quando inexistir um agente que detenha o domínio pleno do fato. Nesses casos, estará presente uma divisão de papéis, com decisão conjunta de realizar o fato. A coautoria baseia-se, portanto, na obrigação mútua, e não na vinculação unilateral do emissor da ordem.

A coautoria se apresenta quando várias pessoas de comum acordo tomam parte na fase executiva da realização do tipo, codominando o fato entre todos [05]. Na coautoria, a decisão de realizar o fato delitivo é conjunta, todos os integrantes devem ter o domínio do fato [06] e o coautor deve contribuir na fase executiva.

Já na autoria acessória, duas ou mais pessoas, sem comum acordo, atuando cada uma de forma independente e desconhecendo a atuação da outra ou das outras, produzem um resultado típico. Não se pode tratar como coautoria, pois falta a decisão comum.

Indutor ou instigador é aquele que faz nascer no outro a resolução criminal de realizar um fato antijurídico. Cria a ideia delitiva no outro.

Por fim, a figura do partícipe tem um certo domínio do fato, mas apenas relativo a sua participação. Ele atua no fato alheio e, dessa forma, contribui apenas com a sua parcela de participação, isto é, não domina a realização do fato, mas contribui de qualquer modo para ele.

Partindo dessas premissas, passemos à analise de um caso concreto julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [07].

O Ministério Público denunciou R.B. e M.D. como incursos no artigo 157, §2º, incisos I e II do Código Penal, sendo ao último imputado ainda o artigo 16, parágrafo único, inciso IV da Lei 10.826/2003 e c/c artigo 61, inciso I do Código Penal.

No dia 26 de março de 2010, por volta de 10h15min, em uma casa lotérica situada na Av. Jacarandá, nº 100, em Morro Redondo, os denunciados, mediante prévio ajuste, agindo em comunhão de esforços e vontades, com emprego de um revólver, marca Taurus, calibre 32, subtraíram, para si, mediante grave ameaça exercida contra a vítima V.R., a quantia de R$ 2.510,00 (parcialmente apreendida em seu poder, de propriedade do referido estabelecimento comercial).

Na oportunidade, os denunciados planejaram o roubo à referida casa lotérica e para executá-lo locaram, em nome de R.B., na véspera, um automóvel Corsa, placas IPA-1529, de cor cinza, na "Máxima Locadora de Veículos Ltda", em Uruguaiana. No dia 26 de março, no horário acima mencionado, ambos dirigiram-se à casa lotérica e o denunciado M.D. nela ingressou, armado como revólver Taurus calibre 32, ficando R.B. na direção do veículo, a alguns metros do estabelecimento comercial, aguardando o comparsa para dar-lhe fuga. M.D., ao ser atendido por V.R., anunciou o assalto sacando o referido revólver e determinando que fossem entregues dinheiro e celular. Sob ameaça da arma de fogo, V.R. entregou a quantia acima descrita e M.D. deixou a lotérica, fugindo no Corsa dirigido por R.B.

No mesmo dia, por volta das 19h, em uma casa localizada em propriedade rural na BR-290, em Uruguaiana, o denunciado M.D. possuía um revólver, marca Taurus, calibre 32, com numeração raspada, municiado com seis cartuchos intactos (auto de apreensão de fl. 11 do inquérito policial), sem autorização e em desacordo com a determinação legal ou regulamentar.

Na oportunidade, policiais civis da cidade de Uruguaiana, cientes da ocorrência de roubo em Morro Redondo e tendo informações acerca dos autores do crime, abordaram e prenderam em flagrante o denunciado R.B. quando este fazia a devolução do automóvel Corsa na Máxima Locadora, encontrando em seu poder parte do dinheiro subtraído da lotérica. R.B., então, indicou o local onde M.D. encontrava-se, na referida rodovia federal, e ali os policiais efetivaram sua prisão em flagrante, encontrando, em seu poder, mais uma parte do dinheiro roubado e o revólver Taurus com a numeração raspada.

Em primeiro grau, R.B. foi condenado como incurso no art. 157, § 2º, I e II, c/c art. 65, III, "d", do Código Penal, à pena de 06 anos e 04 meses de reclusão, em regime inicial fechado e 20 dias-multa, na razão unitária mínima. M.D. restou condenado por incurso no art. 157, § 2º, I e II, c/c art. 61, I, do Código Penal, à pena de 07 anos e 04 meses de reclusão e 20 dias-multa, e 03 anos 03 meses de reclusão e 10 dias-multa, por incurso nas sanções do art. 16, parágrafo único, IV, da Lei 10.826/03, c/c art. 61, I, do Código Penal, sendo ambos os crimes em concurso material, na forma do art. 69, "caput", do Código Penal, somando as penas o total de 10 anos e 07 meses de reclusão, em regime inicial fechado e 30 dias-multa, na razão unitária mínima.

Os réus foram condenados ainda ao pagamento de R$ 1.275,00 (um mil, duzentos e setenta e cinco) à título de reparação dos danos de que trata o inc. IV do art. 387 do CPP, "correspondente ao montante não recuperado, que deverá ser pago, "pro rata", à vítima pelos condenados".

Em sede recursal, o desembargador relator em seu voto afirmou que o concurso de agentes emergia cristalino, na medida em que a vítima bem narrou a abordagem e a fuga em alta velocidade, após entrada do assaltante pelo banco do carona do veículo. Se não bastasse, foi apreendida em poder de ambos os imputados parte da quantia subtraída.

Diferentemente do juízo singular, entendeu o Tribunal que a conduta tipificada no artigo 16, parágrafo único, inciso IV da Lei 10.826/2003 restara subsumida pelo artigo 157, §2º, inciso I do CP. A arma fora, de fato, o instrumento utilizado para a intimidação da vítima, ou seja, o crime-meio, de modo que a conduta praticada configura somente a majorante do delito de roubo. A dupla valoração, como posta na sentença, representaria inegável bis in idem. Assim, de ofício, foi afastada, remanescendo a M.D. tão somente a condenação pelo delito de roubo duplamente majorado.

Nessas condições, à luz da Teoria do Domínio do Fato, entendemos que, embora ambos os réus tenham planejado anteriormente o crime, apenas o réu M.D. tinha o domínio final e pleno do fato, porquanto cabia a ele decidir se agia ou não. Assim, somente M.D. poderia ser considerado autor do delito em análise. Entendemos que R.B., por outro lado, conquanto tenha arquitetado o fato, auxiliou apenas em certa medida, isto é, tinha um domínio relativo do fato, o que o colocaria na cena como partícipe. Reputamos não se tratar aqui de um caso de coautoria, já que a decisão de realizar o ato não foi compartilhada. M.D. poderia ter cometido o delito [08], independentemente da participação de R.B, que apenas o auxiliou, facilitando sua fuga.


REFERÊNCIAS

BACIGALUPO ZAPATER, Enrique. Principios de derecho penal: parte general. 5. ed. Madrid: Akal, 1998. p. 365.

CÁRDENAS, Alvaro Enrique Márquez. La Autoría Mediata: Autor Detrás del Autor en Organizaciones Criminales: Narcotráfico, Paramilitares, Guerrilleras Y Mafiosas. Informes de Investigación Grupo: Derecho Penal. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_articulo?codigo=1706963& orden=62793>. Acesso em: 10 ago. 2011.

LÓPEZ BARJA DE QUIROGA, Jacobo. Autoría y participación. Madrid: Akal, 1996.

ROXIN, Claus. Sobre la autoria y participación en Derecho penal, em Problemas actuales de las ciências Penales y la Filosofia del Derecho, Buenos Aires, 1970.


Notas

  1. ROXIN, Claus. Sobre la autoria y participación en Derecho penal, em Problemas actuales de las ciências Penales y la Filosofia del Derecho, Buenos Aires, 1970, p. 60 e ss
  2. CÁRDENAS, Alvaro Enrique Márquez. La Autoría Mediata: Autor Detrás del Autor en Organizaciones Criminales: Narcotráfico, Paramilitares, Guerrilleras Y Mafiosas. Informes de Investigación Grupo: Derecho Penal. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_articulo?codigo=1706963& orden=62793>. Acesso em: 10 ago. 2011.
  3. Alguns autores, como Jakobs, Baumann e Jescheck, entendem que o "homem de trás" (autor de escritório) é co-autor, e não autor mediato. Outros, entendem que ele é um mero instigador.
  4. BACIGALUPO ZAPATER, Enrique. Principios de derecho penal: parte general. 5. ed. Madrid: Akal, 1998. p. 365.
  5. LÓPEZ BARJA DE QUIROGA, Jacobo. Autoría y participación. Madrid: Akal, 1996, págs. 45 e ss.
  6. ROXIN. Sobre la autoría y la participación en el derecho penal. traducido por el profesor Bacigalupo. En: Problemas actuales de las ciencias penales y la filosofía del derecho. Homenaje al profesor Jiménez de Asúa. Buenos Aires, pág. 67.
  7. Apelação Crime Nº 70042442814, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ícaro Carvalho de Bem Osório, Julgado em 09/06/2011.
  8. A propósito, esse posicionamento encontra guarida em decisões de outros Tribunais da Nação, v. g. "Se a contribuição dada pelo agente é de natureza tal que sem ela o delito não poderia ter sido cometido, segundo a teoria do domínio funcional do fato, trata-se de co-autoria e não mera participação. Somente se aplica a redutora por participação de menor importância ao partícipe, nunca ao co-autor."(TJPR, Apelação 0395110-4, Rel. José Carlos Dalacqua, D j. 29-1-2007).

Autor

  • Carlo Velho Masi

    Advogado criminalista (OAB-RS 81.412). Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Rio Grande do Sul (ABRACRIM-RS). Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNISINOS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. Membro da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM. Membro da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB-RS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) e da Revista de Estudos Criminais (REC) do ITEC. Coordenador do Grupo de Estudos Avançados Justiça Penal Negocial e Direito Penal Empresarial, do IBCCRIM-RS. Foi moderador do Grupo de Estudos em Processo Penal da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Coordenador Estadual Adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul. Membro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS). Escritor, pesquisador e palestrante na área das Ciências Criminais. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação.

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Informações sobre o texto

Artigo apresentado como requisito parcial à aprovação na disciplina &quot;Tendências Contemporâneas da Dogmática do Crime&quot;, ministrada pelo Prof. Pablo Alflen, na 3ª edição (2011) da Especialização em Direito Penal e Política Criminal: sistema Constitucional e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASI, Carlo Velho. Análise de caso judicial à luz da teoria do domínio do fato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2992, 10 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19959. Acesso em: 19 abr. 2024.