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Comunidade Cupira: entre o Direito e a Política

Comunidade Cupira: entre o Direito e a Política

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O caso consiste na iminente desapropriação dos moradores por conta de uma futura inundação devido à transposição do Rio São Francisco. Análise feita levando-se em conta a teoria de direito como integridade de Ronald Dworkin e a teoria sistêmica de Niklas Luhmann.

Resumo: O presente artigo objetiva analisar o caso da comunidade quilombola Cupira, que consiste na iminente desapropriação dos moradores por conta de uma futura inundação devido à transposição do Rio São Francisco. Esta análise será feita levando-se em conta a teoria de direito como integridade de Ronald Dworkin e a teoria sistêmica de Niklas Luhmann.

Palavras-chave: comunidade quilombola Cupira; transposição; rio São Francisco; desapropriação; Dworkin; Luhmann.

Abstract: This article aims to analyze the case of quilombo Cupira, which is the imminent expropriation of residents on account of future flooding due to the transposition of São Francisco River. This analysis will be made taking into account the theory of law as integrity of Ronald Dworkin and the systems theory of Niklas Luhmann.

Keywords: quilombo Cupira; transposition; São Francisco river; expropriation; Dworkin; Luhmann.


1. Introdução

Comunidades do sertão nordestino tem tido constantemente seus direitos humanos violados no que condiz aos impactos provocados por grandes projetos públicos. Um exemplo dessa usurpação de direitos dessas comunidades em prol do bem público é o caso da comunidade quilombola de Cupira, situada no município de Santa Maria do Boa Vista, Pernambuco, que terá seu território completamente inundado em virtude do projeto de transposição do Rio São Francisco.

De acordo com o Relatório da Missão à Petrolina e Região do Rio São Francisco (PE), do relator Sérgio Sauer, a comunidade Cupira possui cerca de 250 famílias, que estão às margens do Rio São Francisco e serão diretamente afetadas pela transposição. A comunidade "possui como principais atividades a agrícola, o artesanato, a pesca e o extrativismo, todas realizadas em regime familiar" (SAUER, 2010, p. 21), atividades essas que são essenciais para a sobrevivência das famílias, que com a inundação e a iminente desapropriação serão impedidas de exercê-las.

Apesar de toda a identificação cultural da comunidade com a área, estes traços não estão sendo levados em conta na desapropriação da comunidade, como deixa claro a seguinte passagem do Relatório:

uma representante da SEPPIR [01] esteve na comunidade e, em reunião com lideranças, afirmou categoricamente que, com ou sem o apoio da comunidade, as obras da barragem serão executadas. Conseqüentemente, a comunidade deve se conformar e aceitar este fato. (SAUER, 2010, p.22)

Segundo Sauer (2010), apesar do governo almejar a desapropriação da comunidade com certa urgência, sempre houve um considerável descaso por parte deste com a comunidade. Por conta desse descaso é possível observar inúmeros problemas como a falta de recursos destinados à merenda escolar, escasso abastecimento de água, falta de saneamento básico e meios de comunicação etc.

No presente artigo, objetiva-se analisar o processo de desapropriação da comunidade quilombola Cupira, considerando a identificação cultural e material de sua população com a área, para decidir se esse processo é ou não justo. Esta análise será feita frente à teoria de direito como integridade de Dworkin (2003) e à teoria sistêmica do direito de Niklas Luhmann (1983).


2. Uma visão de integridade

É interessante observar que alguns aspectos peculiares ao caso em questão encontram bastante ressonância na teoria de Ronald Dworkin. Ao falar sobre casos difíceis, ou seja, aqueles sobre os quais não recai regra ou lei que dite, com total certeza a posição a ser tomada, Dworkin estabelece a diferença entre argumentos de princípio e argumentos de política, observando a possibilidade de decisões baseadas em um ou em outro.

Dessa forma, os "argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo". (DWORKIN, 2002, pág. 129). Já "os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo". (DWORKIN, 2002, pág. 129).

No caso da comunidade Cupira, põe-se exatamente essa questão. Afinal, o que deve prevalecer: o interesse geral, que representa o interesse pela execução de uma medida política, ou o direito da minoria representada pela comunidade quilombola, a qual recorre a princípios em sua argumentação?

Para o autor americano não há dúvida, os princípios devem preceder a política, uma vez que os juízes não possuem capacidade nem legitimidade para mediar interesses políticos conflitantes advindos do meio social. Nesse sentido, explica Dworkin:

Pode ser que o sistema político da democracia funcione com indiferença nesse aspecto [02], mas funciona melhor que um sistema que permite que juízes não eleitos, que não estão submetidos a lobistas, grupos de pressão ou a cobranças do eleitorado por correspondência, estabeleçam compromissos entre os interesses concorrentes em suas salas de audiência. (DWORKIN, 2002, pág.133)

Dessa maneira, estaria a decisão corrente tomada pelos magistrados em casos como o que se debate aqui em acordo com a teoria posta por Dworkin? Se o que se observa é o total afastamento de direitos básicos, mesmo constitucionais, em favor de uma prática que visa o bem comum, aqui entendido como bem da maioria e que, neste caso específico, vai de encontro à concretização dos direitos de uma minoria, fica claro que não. E é exatamente isto o que se observa.

A Transposição do Rio São Francisco, com seus milhares de quilômetros, não exigiria o genocídio cultural da pequena comunidade Cupira se os seus responsáveis dessem alguma importância à comunidades de direito seculares em detrimento da que dão a números, uma vez que um desvio, de certo, não impossibilitaria a obra.

Mas em um Estado Democrático de Direito, antes de ter seus direitos violentados, uma comunidade como a Cupira tem a opção de recorrer à justiça, reivindicando o que é seu de direito. Nesse momento a teoria de Dworkin aparece com um papel fundamental, orientando os juízes no caminho de uma decisão justa, não no de uma decisão politicamente viável, mas injusta, como tem-se visto.

E para se chegar à decisão correta, justa, Dworkin entende que os magistrados devem interpretar o direito através de um processo integrativo que leve em consideração o devido processo legal, a equidade e a justiça. É o direito como integridade, proposta defendida pelo autor: "Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática da comunidade" (DWORKIN, 2003, pág. 272).

Nesse sentido, o aplicador responsável por julgar o caso Cupira versus Transposição do Rio São Francisco deveria se nortear pelos critérios supracitados, atentando, portanto para, além das normas positivas que integram o sistema formal do direito, a moral política da comunidade. Assim, Dworkin defende uma visão principiológica do direito, uma vez que as decisões judiciais devem envolver um sistema de princípios, os quais norteiam seus conteúdos, assim como justifica a opção feita pelo magistrado, que deve ainda acrescentar valores da comunidade no direito que interpreta.

Ao percorrer esse processo, a decisão não poderia ser outra senão a de proteger os direitos da comunidade Cupira, segundo os princípios levantados pelo autor do Relatório da Missão à Petrolina e região do Rio São Francisco, Sérgio Sauer, a saber: direito à terra e ao território, à alimentação adequada, à saúde e a educação, à habitação, e de informação e decisão. Pautando a decisão nos princípios mencionados, esta estaria a caminho daquela defendida por Dworkin, por meio de seu método principiológico. Entretanto, o que se observa é uma negligência na aplicação destes princípios.

Além do que já foi exposto, faz-se necessário ainda levantar outro aspecto importante da teoria de Dworkin, cuja explanação mostrará que além de injusta, uma decisão que chegue a um desfecho diferente do que se tem defendido neste artigo, seria extremamente perigosa no sentido de não perpetuar uma concepção hoje hegemônica nos Estados de Direito, qual seja a de salvaguardar os direitos das minorias.

Ora, não é segredo que nas ultimas décadas diversas decisões, no plano político ou jurídico, exaltam os direitos básicos inerentes a qualquer ser humano, como aqueles mais conhecidos: direito à igualdade, à moradia, à identidade. E a afirmação desses direitos é justamente uma forma de proteção das minorias, a qual, no sistema jurídico brasileiro, é uma realidade sujeita as ofensivas das mais diversas. Uma decisão favorável à transposição do Rio São Francisco é, sem duvida, uma dessas investidas.

Diante desses ataques, deve prevalecer a continuidade do desenvolvimento, isto é, os juízes devem manter uma coerência em suas decisões em relação às anteriores, não se esquecendo de preparar o terreno para outras futuras. É esse o entendimento de Dworkin ao estabelecer a metáfora do "romance em cadeia". Nas palavras do autor, tem-se:

Cada romancista pretende criar um só romance a partir do material que recebeu, daquilo que ele próprio lhe acrescentou e (até onde lhe seja possível controlar esse aspecto do projeto) daquilo que seus sucessores vão querer ou ser capazes de acrescentar. Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes. (DWORKIN, 2003, pág. 276)


3. Análise sistêmica:

A Teoria Sistêmica do sociólogo alemão Niklas Luhmann também pode ser aplicada ao caso da comunidade Cupira. Como foi constatado, ocorre um conflito entre o que seria interesse coletivo, e o que, sobre uma visão fechada, seria interesse particular dos moradores da comunidade quilombola.

A visão sistêmica de Luhmann (LUHMANN, 1983) traduz a sociedade como um organismo vivo, onde ocorrem diferenciações funcionais no que ele chama de ambiente. Assim, o homem e a sociedade são ambientes, dos quais emergem, por diferenciação funcional, os sistemas. E a nossa sociedade exige essa especialização.

O Direito como estrutura social imprescindível, se desenvolve a partir das complexidades e das contingências da sociedade, e estas proporcionam seu desenvolvimento. Em troca, o Direito traz em seu interior, uma zona de domesticação de complexidades. Ele é, pois, uma "artificialização" da vida, cujo objetivo é o de reduzir as complexidades da sociedade.

Mas o Direito, obviamente, não é o único sistema na sociedade. Dela partem várias contingências que necessitam de sistemas específicos, como a política e a religião. Aqui se encontra o cerne da questão. No momento em que um sistema impede ou limita a atuação de outro sistema, temos um problema sistêmico. Um sistema não deve sair de suas atribuições sistêmicas e influir operacionalmente em outro. Desse modo, o Direito, nos casos jurídicos concretos, deve prevalecer frente a outras esferas, na medida em que, nas palavras do próprio Luhmann:

[...] o direito é imprescindível enquanto estrutura, porque sem a generalização congruente de expectativas comportamentais normativas os homens não podem orientar-se entre si, não podem esperar suas expectativas. E essa estrutura tem que ser institucionalizada ao nível da própria sociedade, pois só aqui podem ser criadas aquelas instâncias que domesticam o ambiente para outros sistemas sociais. (LUHMANN, 1983, pág.170)

No caso concreto em questão, portanto, há um conflito entre os sistemas da política e do direito, que acaba por desvia-lo de sua resposta natural. A transposição do Rio São Francisco como interesse coletivo, e a comunidade Cupira vista de forma equivocada com essência particular dos quilombolas. É importante frisar que a solução do problema sistêmico não reflete um isolamento destes sistemas, mas sim um fechamento na esfera operacional, visto que os mesmos são interdependentes cognoscitivamente, ou seja, o direito depende da política, e a política, do direito, mas um não pode funcionar como limítrofe à operacionalidade do outro.

No Direito encontramos elementos que assegurariam aos moradores de Cupira, a permanência nas suas terras. A Constituição, que Luhmann reconhece como local de interação entre o sistema político e do direito, visto que o direito vincula a política, mas esta pode modificá-lo (promulgação de leis), traz alguns desses elementos, como no texto do artigo sessenta e oito do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

Contudo, caracterizando um problema sistêmico, elementos políticos como a promessa partidária de transposição, a pressão por agilidade nas obras, por menores custos (já que o desvio da obra do seu trecho originalmente demarcado poderia elevá-los), podem limitar a atuação do Direito, de modo a resultar em uma análise distorcida em prol da desapropriação dos moradores da comunidade, que seria, politicamente, o correto, na medida em que findará na transposição do Rio São Francisco, de interesse comum.

Portanto, o caso analisado de forma operacionalmente independente pelo direito, tem sua solução mediante a permanência dos quilombolas na sua área original. Se limitado pela esfera política, poderá tomar outros fins.

Também podemos buscar respostas ao caso na ideia luhmanniana de "aprendizado do sistema". O direito se modifica na interpretação, com um "depósito de experiências". Nas palavras do autor:

Os processos são antes de tudo, mecanismos de institucionalização seletiva. Neles é decidido quais normas geram um consenso geral ou presumível, tornando-se socialmente utilizáveis. Ao mesmo tempo gera-se e estabiliza-se nos processos aquela sedimentação de sentido que firma as normas em um contexto interpretativo, tornando-as transmissíveis. (LUHMANN, 1983, pág. 131)

Sempre que o direito toma decisões contraditórias, estas entram em uma espécie de "arquivo vivo", um histórico. O sistema por vezes opta por decisões erradas, mas ao errar, gradativamente é ensinado, ou seja, há um aprendizado nestas incertezas.

Internacionalmente, começa a existir um entendimento quanto à proteção do tradicional. A desapropriação de comunidades tradicionais passa a ser visto não só como uma ameaça a existência da própria comunidade, mas paralelamente, uma violação aos bens ambientais, à biodiversidade, aos Direitos Humanos em geral.

A desapropriação dos moradores de Cupira não se trata, portanto, de um prejuízo particular, específico, mas sim de uma agressão a toda a comunidade e ao ambiente. Esse é o norte que deveria ser seguido em busca de solucionar o caso.

O sistema traduzindo este aprendizado, e moldando as decisões do juiz (e não o contrário).

O que acontece aqui, é que se descaracteriza a justificativa de bem comum frente ao interesse particular, pois o que pauta-se agora, são dois interesses comuns: o da transposição do Rio São Francisco, que sem dúvidas contém importâncias consideráveis; e a manutenção da comunidade quilombola Cupira, que manifesta a preservação de patrimônio ambiental e cultural da sociedade.


4. Conclusão:

Se para Dworkin os argumentos baseados em princípios, em casos difíceis, valem mais que argumentos fundados em política, para Luhmann, percorrendo um caminho teórico distinto, chega basicamente à mesma conclusão. Para ele, direito e política constituem sistemas oriundos de uma diferenciação funcional necessária à sociedade moderna, uma vez que assentam as expectativas provenientes desta. E como sistemas diferentes, devem manter relações cognoscitivas, mas possuírem independência operacional, ou seja, a política não deve interferir na aplicação do direito em casos jurídicos.

Outro aspecto em que Luhmann se aproxima de Dworkin é quanto à ideia daquele de aprendizado do sistema, sua evolução histórica a partir de erros e acertos. Dworkin observe este aprendizado a partir da metáfora do romance em cadeia.

Percebe-se, portanto, que tanto na perspectiva de Dworkin quanto na de Luhmann, a decisão do caso em questão seria favorável à proteção dos direitos da comunidade quilombola Cupira, visto que no âmbito geral, ambos argumentam a favor de uma separação da esfera política e da esfera jurídica na resolução de casos complexos.


BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro,1983.

SAUER, Sérgio. Relatório da Missão à Petrolina e Região do Rio São Francisco (PE). Brasília/DF e Recife/PE, 2010.


Notas

  1. Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR)
  2. Aspecto relacionado à resolução de conflitos estritamente políticos (Nota do artigo).

Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Humberto Henrique Rufino de; SILVA, André Yang Marcel Rodrigues da et al. Comunidade Cupira: entre o Direito e a Política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2999, 17 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20010. Acesso em: 26 abr. 2024.