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Reflexões sobre os impactos do gerencialismo no Direito Administrativo brasileiro.

Entre a crise e a plasticidade evolutiva

Reflexões sobre os impactos do gerencialismo no Direito Administrativo brasileiro. Entre a crise e a plasticidade evolutiva

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Com a implementação do gerencialismo a partir do governo FHC, as mudanças ocorridas afiguram-se como fator de crise ou de plasticidade evolutiva do direito administrativo brasileiro?

Resumo: o presente artigo tem por objetivo analisar as mudanças operadas no direito administrativo pátrio em razão da implementação, no decênio de 1990, sob égide do governo de Fernando Henrique Cardoso, dos postulados do gerencialismo. Nesse diapasão, busca-se arrolar as principais inovações gerencialista do direito administrativo brasileiro, descrevendo-as, com o fito de melhor compreendê-las e, ao final, ponderar se referidas mudanças afiguram-se como fator de crise ou de plasticidade evolutiva do direito administrativo brasileiro.

Palavras-chave: Brasil. Direito administrativo. Gerencialismo. Crise. Evolução.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO; 2 INCURSÃO IMPOSTERGÁVEL: COMPREENDENDO O GERENCIALISMO; 2.1 Administrações Públicas Patrimonialista, Burocrática, Gerencial e Societal: contraposições; 2.2 O gerencialismo; 2.2.1 Escorço histórico; 2.2.2 Plano Diretor da Reforma Administrativa do Aparelho do Estado; 2.2.3 Entre o projetado e o realizado: inovações da Reforma Administrativa Gerencial; 2.2.3.1 Princípios da eficiência, razoabilidade/proporcionalidade/ponderação e subsidiariedade; 2.2.3.2 Privatização; 2.2.3.3 Organizações sociais; 2.2.3.4 Agências reguladoras; 2.2.3.5 Contrato de gestão/agências executivas; 2.2.3.6 Fragilização da estabilidade; 2.2.3.7 Nova política remuneratória: subsídio; 2.2.3.8 Breves ilações; 3 IMPACTOS DO GERENCIALISMO NO BRASIL: CRISE OU PLASTICIDADE EVOLUTIVA? 3.1 Proêmio; 3.2 O gerencialismo como crise; 3.2.1 A dinâmica privatizadora da Administração Pública; 3.2.2 Multiplicação de autoridades administrativas independentes; 3.2.3 Descaracterização da função administrativa; 3.3 O gerencialismo como plasticidade evolutiva; 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS; 5 REFERÊNCIAS; 6 NOTAS


1 INTRODUÇÃO

O Brasil assistiu, na década de 1990, a mutações significativas realizadas no âmbito do direito administrativo nacional. Tais mutações, contudo, não se restringiram apenas ao direito administrativo: tratou-se de uma faceta de uma mudança maior, operada com o propósito de situar o Estado brasileiro dentro dos domínios da pós-modernidade. O objetivo, destarte, foi engendrar um direito administrativo pós-moderno que se adequasse a um pretenso Estado brasileiro pós-moderno.

Dentre as decantadas mudanças aponta-se: (i) a tentativa de conceder ao administrador público maior discricionariedade no trato dos assuntos administrativos; (ii) o feroz movimento de agencificação; (iii) elevação da eficiência como princípio constitucional; (iv) substituição do controle procedimental por um controle de resultados; (v) concessão de maior autonomia – administrativa, financeira e orçamentária – a certos entes administrativos, por meio do contrato de gestão; (vi) a fermentação, em terras pátrias, do princípio da subsidiariedade; (vii) a onda de privatização; (viii) a orientação deslegalizante; e (ix) a regulação. Todas essas inovações foram veiculadas pela Emenda Constitucional 19, de 1998, e patenteiam a intenção de injetar os valores do gerencialismo no Brasil.

Isso posto, o objetivo precípuo deste estudo é verificar se as registradas inovações constituem fator de crise para o direito administrativo brasileiro ou se, ao reverso, revestem-se de uma plasticidade evolutiva necessária aos tempos hodiernos, de modo a se rechaçar qualquer sombra de crise. Todavia, para se desembaraçar proficuamente da tarefa aqui colimada, faz-se necessário compreender o que é o gerencialismo e quais são seus postulados.

Nessa medida, a presente composição científica está estruturada do seguinte modo: (i) de intróito, afigura-se de extrema importância conhecer o gerencialismo, com os seus postulados e os seus objetivos; (ii) ulteriormente, verificar-se-á a extensão da implementação do gerencialismo no Brasil, explanando-se seus institutos de modo genérico; (iii) empós, serão tecidas algumas reflexões sobre os impactos do gerencialismo no direito administrativo pátrio, de modo a se optar por uma hipótese de crise ou uma hipótese de plasticidade evolutiva; (iv) enfim, serão registradas algumas considerações, ditas finais, sobre o estudo ora empreendido, com o fito de arrolar as principais conclusões logradas com a pesquisa.

O gerencialismo, e suas conseqüências no direito brasileiro, não serão nesta seara debatidos e analisados de modo pormenorizado: isso demandaria novas pesquisas que, por seu turno, não calham às fronteiras desteartigo. Contudo, o assunto reveste-se de inequívoca importância, razão pela qual merece as atenções da comunidade jurídica.


2 INCURSÃO IMPOSTERGÁVEL: COMPREENDENDO O GERENCIALISMO

2.1 Administrações Públicas Patrimonialista, Burocrática, Gerencial e Societal: contraposições

Antes de se examinar a compostura do gerencialismo mais detidamente, mister é contrapor as distintas formas de Administrações Públicas, a saber, a Patrimonialista, a Burocrática, a Gerencial e a Societal.

A maior característica da Administração Pública Patrimonialista é a mixórdia entre público e privado: de fato, os limites entre um e outro são bastante porosos, de modo que a Administração (Pública) acaba sendo objeto de posse de variados grupos (privados).

No patrimonialismo, o aparelho do Estado funciona como uma extensão do poder do soberano, e os seus auxiliares, servidores, possuem status de nobreza real. Os cargos são considerados prebendas. A res publica não é diferenciada da res principis. Em conseqüência, a corrupção e o nepotismo são inerentes a esse tipo de administração. No momento em que o capitalismo e a democracia se tornam dominantes, o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado (BRASIL, 1995, p. 15).

Vê-se, portanto, que a Administração Patrimonialista é um anacronismo tipicamente absolutista, não podendo, destarte, ser tolerada nos dias de hoje, não obstante suas manifestações persistentes[1] no cenário brasileiro.

A Administração Pública Burocrática inspira-se na ideia de racionalização, sendo, portanto, a Administração Pública por excelência das sociedades contemporâneas ao liberalismo. Assim, a Administração Pública Burocrática tem como um dos principais mentores Max Weber: tal espécie de Administração denotaria uma dominação do tipo legal-racional.

A burocracia enquanto tipo ideal pode organizar a dominação racional-legal por meio de uma incomparável superioridade técnica que garanta precisão, velocidade, clareza, unidade, especialização de funções, redução do atrito, dos custos de material e pessoal etc. Ela também deve eliminar dos negócios ‘o amor, o ódio e todos os elementos sensíveis puramente pessoais, todos os elementos irracionais que fogem ao cálculo’. A organização burocrática é hierárquica e o recrutamento para seus quadros dá-se através de concursos ou de outros critérios objetivos. Funcionários que pudessem ser eleitos pelos governados modificariam o rigor da subordinação hierárquica já que isto estabeleceria uma relativa autonomia frente ao seu superior. O tipo ideal do burocrata é o do funcionário que age em cooperação com outros, cujo ofício é separado de sua vida familiar e pessoal, regulamentado por mandatos e pela exigência de competência, conhecimento e perícia e que não pode usar dos bens do Estado em proveito próprio ou apropriar-se deles (BARBOSA, QUINTANEIRO; 2003, p. 139-140).

Em resumo, a Administração Burocrática tem como apanágios "[...] a profissionalização, a idéia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo, em síntese, o poder racional-legal" (BRASIL, 1995, p. 15). Se na Administração Patrimonialista inexiste controle, na Burocrática ele é rígidíssimo, e desenvolve-se sempre a priori. Imputa-se à Constituição Federal de 1988 a adoção de um modelo burocrático de Administração Pública[2].

Por fim, tem-se a Administração Gerencial. Essa se tornou a panacéia para a crise do Estado Providência, proclamando, destarte, justamente a desburocratização do Estado, com o escopo de torná-lo mais flexível e compatível com a (pós)-modernidade que se delineava no horizonte.

O paradigma gerencial contemporâneo, fundamentado nos princípios da confiança e da descentralização da decisão, exige formas flexíveis de gestão, horizontalização de estruturas, descentralização de funções, incentivos à criatividade. Contrapõe-se à ideologia do formalismo e do rigor técnico da burocracia tradicional. À avaliação sistemática, à recompensa pelo desempenho, e à capacitação permanente, que já eram características da boa administração burocrática, acrescentam-se os princípios da orientação para o cidadão-cliente, do controle por resultados e da competição administrada (BRASIL, 1995, p. 17).

Afirma-se, outrossim, a existência de um outro tipo de Administração Pública, qual seja, a Societal. Tal espécie de Administração Pública seria genuinamente brasileira, tendo origem na ampla mobilização popular ocorrida no País na década de 70, mobilização essa que visava maior participação da sociedade nos rumos do Brasil, ao contrário da prática existente, consistente no domínio castrense sobre o aparato estatal. Nesse diapasão, a gestão pública não seria sinônima de gestão estatal: também a sociedade deveria influenciar a condução das políticas públicas, até porque ela era a destinatária final de tais políticas. Conforme registra Ana Paula Paes de Paula (2005, p. 41) são características da Administração Pública Societal: (i) politicamente, é uma forma de Administração que prima pela participação popular; (ii) a dimensão da gestão é sociopolítica, e não econômico-financeira ou institucional-administrativa; (iii) inexiste uma clara proposta de funcionamento do aparelho estatal, dando-se ênfase somente à participação popular precipuamente em nível local. Como exemplos de instrumentos da Administração Pública Societal apontam-se o orçamento participativo, os Conselhos Gestores de Políticas Públicas e os Fóruns Temáticos. Todavia, por ser extremamente difusa em seu projeto, a Administração Pública Societal não logrou grande interesse da comunidade jurídica, afigurando-se como um projeto a ser construído.

Enfim, tendo-se por perspectiva os resumidos quadros teóricos engendrados acima, podem-se fazer as seguintes contraposições entre os diversos tipos de Administração Pública: (i) se na Administração Patrimonialista inexiste controle, este está presente na Burocrática e na Gerencial; (ii) entrementes, o controle nas Administrações Burocrática e Gerencial não se assemelham: na primeira o controle é rígido e a priori; na segunda o controle é mais flexível e a posteriori; (iii) a Administração Patrimonialista é típica aos Estados absolutistas; a Administração Burocrática é típica aos Estados liberais; a Administração Gerencial, por sua vez, é típica aos Estados neoliberais; (iv) a centralização, na Administração Patrimonialista é absoluta, recaindo na figura do príncipe; na Administração Burocrática a centralização é relativa, existindo núcleos hierarquizados de competência; a Administração Gerencial repudia, em geral, a centralização, concedendo maior abono à descentralização.

Ressalte-se, por fim, que não se vislumbra uma superação cabal dos diversos tipos de Administração Pública: o que se constata é que um modelo ainda ostenta caracteres de outro. Logo, não existe uma Administração Pública puramente Patrimonial, Burocrática ou Gerencial[3].

2.2 O gerencialismo

2.2.1 Escorço histórico

O gerencialismo, conjunto de idéias que dá azo à Administração Pública Gerencial, surge, consoante aponta Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1998, p. 41-42), como reação à crise do Estado. Referida crise abarcou os aspectos político – com a derrocada do mega-Estado de cunho hegelino, que tutelava a nação –, econômico – com a falência do modelo econômico keynesiano – e social – com a crise do Estado Providência.

Logo, o Estado, antes poderoso e onipotente, cai em crise, deixando no vácuo o referencial para a própria Administração Pública: esse vácuo será preenchido, então, pelos métodos de gestão privada. E, na gestão privada, o que dá as cartas é a eficiência, que pode assim ser sintetizada: fazer o mais com o menos.

Assim ocorrendo, a administração tende a passar de uma legitimidade intrínseca, decorrente de sua pertinência ao Estado, a uma legitimidade extrínseca, fundada sobre a análise concreta de sua ação: será ela julgada sobre os resultados que for capaz de obter, tal como sobre a sua aptidão para gerir melhor os meios de que ela dispõe, visando a obter a melhor eficácia. Ela não é mais investida de pleno direito da legitimidade; essa não é adquirida antecipadamente, mas deve ser conquistada; ela depende da demonstração permanentemente reiterada da conveniência das operações engajadas e da qualidade dos métodos de gestão utilizados (CHEVALLIER, 2009, p. 84).

Foram nos Estados Unidos, capitaneados por Ronald Reagan, e na Grã-Bretanha, liderada por Margareth Thatcher, que o gerencialismo obteve seu pleno desenvolvimento. Assim, os métodos de gestão privada transferem-se para a esfera pública, num esdrúxulo intento de igualar a Administração Pública à empresa privada.

Entretanto, o gerencialismo não restou confinado às fronteiras anglo-saxônicas: logo se alastrou por todo o mundo, logrando aconchego na França, Itália, Argentina, Suécia, Nova Zelândia etc.[4].

Assim, não demorou muito para que os ventos gerencialistas aportassem na América Latina, incluído o Brasil.

Consoante escólio de Maria Tereza Fonseca Dias (2003, p. 169), três foram os movimentos reformistas de caráter administrativo assinaláveis na história brasileira: (i) a Reforma Administrativa da Era Vargas (1930), que visava à implantação de uma Administração Pública Burocrática weberiana, cuja expressão máxima foi o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público); (ii) Reforma Administrativa Castrense, empreendida na década de 60, cujo ápice foi o Decreto-lei 200/67, que já continha elementos gerencialistas; (iii) a própria Constituição Federal de 1988 apresentou-se como Reforma Administrativa, na medida em que representou uma inflexão do gerencialismo pretendido durante o governo militar. A isso acrescentaríamos uma quarta tentativa de Reforma, atinente àquela empreendida na década de 1990, que procurou (re)estabelecer o gerencialismo no Brasil.

Como se pôde entrever, o gerencialismo logrou adeptos no Brasil ainda sob o governo ditatorial. Todavia, tal movimento ostentou três momentos distintos: (i) o Programa Nacional de Desburocratização, liderado por Hélio Beltrão, datado de 1979; (ii) empós, tem-se o Programa Federal de Desregulamentação, de 1990; (iii) culminando-se com a Reforma Administrativa Gerencial de 1998, capitaneada por Bresser Pereira.

Para se compreender otimamente os propósitos da Reforma Administrativa Gerencial de 1998, faz-se necessário voltar as vistas para o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), fecundado no Governo de Fernando Henrique Cardoso, documento que contém todas as propostas fundamentais para o gerencialismo no Brasil.

2.2.2 Plano Diretor da Reforma Administrativa do Aparelho do Estado

O Plano Diretor começa por registra a crise do Estado Social, ocorrida nas décadas de 70 e 80, reforçando, então, a necessidade de se buscar um novo aparato administrativo capaz de contornar os efeitos nefastos da crise, a saber, (i) a crise fiscal, (ii) a morte do intervencionismo estatal e (iii) a obsoleta Administração Pública Burocrática. Nessa medida, no que tange à Administração Pública, mister seria a implantação da Administração Pública Gerencial (BRASIL, 1995, p. 10-13).

A Administração Pública Gerencial, destarte, não representa um rompimento drástico com a Administração Pública Burocrática: pelo contrário, apóia-se nesta, no sentido de conservar suas virtudes, que são o recrutamento por critérios objetivos, o sistema remuneratório, a existência de carreiras, o prestígio ao mérito, a avaliação de desempenho e o treinamento constante. Contudo, distinguem-se na medida em que a Administração Pública Burocrática obsequia o controle a priori e a Administração Pública Gerencial prestigia o controle a posteriori. Em outras palavras: a Burocrática sustenta-se num controle formal-procedimental, ao passo que a Gerencial firma-se num controle de resultados (BRASIL, 1995, p. 15).

Na administração pública gerencial a estratégia volta-se (1) para a definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade, (2) para a garantia de autonomia do administrador na gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para que possa atingir os objetivos contratados e, (3) para o controle ou cobrança a posteriori dos resultados. Adicionalmente, pratica-se a competição administrada no interior do próprio Estado, quando há possibilidade de estabelecer concorrência entre unidades internas. No plano da estrutura organizacional, a descentralização e a redução dos níveis hierárquicos tornam-se essenciais. Em suma, afirma-se que a administração pública deve ser permeável à maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil e deslocar a ênfase dos procedimentos (meios) para os fins (resultados) (BRASIL, 1995, p. 16).

No entanto, a própria Constituição Federal de 1988 constituía-se num retrocesso burocrático, na medida em que se afastara dos seminais postulados gerenciais albergados pelo Decreto-lei 200/67 (BRASIL, 1995, p. 20-21).

Em seguida, o Plano engendra um amplo diagnóstico sobre a sua contemporânea Administração Pública, analisando aspectos como a dimensão institucional-legal, os recursos humanos, o mercado de trabalho no setor público, a dimensão cultural e dimensão-gestão, ocasião em que se lavrou uma ilação: estava-se diante de uma Administração Pública em crise e inadequada aos desafios do porvir da (pós) modernidade. Em uma palavra: estava-se diante de um monstruoso anacronismo (BRASIL, 1995, p. 22-41).

Para se propor os objetivos da Reforma Gerencial, o Plano Diretor buscou delimitar precisamente o aparelho do Estado, os tipos de gestão pertinentes (burocrática ou gerencial) e as formas de propriedade estatais (BRASIL, 1995, p. 40-43). Nesse diapasão, são setores do Estado, aos quais se ligam os respectivos tipos de gestão e formas de propriedade: (i) Núcleo Estratégico, constituído do governo e de suas funções típicas, a saber, legislar, julgar e administrar, correspondendo aos Poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Poder Executivo (Presidência da República e Ministérios); a gestão, no caso do Núcleo Estratégico, deveria ser burocrática com temperamentos gerencialistas, assegurando-se, destarte, a efetividade e a eficiências, respectivamente; no campo da propriedade, como não poderia deixar de ser, dever ser estatal; (ii) Atividades Exclusivas, relativas às atividades que somente calham ao Estado, por envolverem, justamente, o poder extroverso do Estado, sendo exemplos a atividade de policiamento, o aparato tributário, o controle do meio ambiente etc.; a gestão, aqui, deve pautar-se pela eficiência, donde que a forma gerencial é mais adequada; a propriedade, por seu turno, também é estatal; (iii) Serviços Não Exclusivos, em que se constata a atuação simultânea do Estado e da sociedade civil, como no caso dos hospitais, universidades, museus, etc.; a gestão, nestes domínios, outrossim deve ser gerencial, pois que a eficiência deve ser o norte dessas atividades; a propriedade desses serviços é pública não-estatal: "não é propriedade estatal porque aí não se exerce o poder de Estado. Não é, por outro lado, a propriedade privada, porque se trata de um tipo de serviço por definição subsidiado" (BRASIL, 1995, p. 43); (iv) enfim, tem-se o setorda Produção de Bens e Serviços para o Mercado, caracterizado por ser exercido por empresas que buscam o lucro; encontram-se agasalhadas no Estado ou porque o setor puramente privado não detém capital para financiá-las ou porque são atividades eminentemente monopolistas; o tipo de gestão, neste ponto, evidentemente, tem que ser gerencial, vez que o escopo de tais atividades é a eficiência; já a propriedade será privada (no caso de atividades que o setor privado não consegue subsidiar) ou estatal (no caso de atividades monopolistas).

Vistas essas noções preliminares, vejamos, então, os objetos veiculados no Plano Diretor relativamente a cada setor do aparelho do Estado.

Objetivos Globais

- Aumentar a governança do Estado, ou seja, sua capacidade administrativa de governar com efetividade e eficiência, voltando a ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos.

- Limitar a ação do Estado àquelas funções que lhe são próprias, reservando, em princípio, os serviços não exclusivos para a propriedade pública não-estatal, e a produção de bens e serviços para o mercado para a iniciativa privada.

- Transferir da União para os estados e municípios as ações de caráter local: só em casos de emergência cabe a ação direta da União.

- Transferir parcialmente da União para os estados as ações de caráter regional, de forma a permitir uma maior parceria entre os estados e a União (BRASIL, 1995, p. 45).

Objetivos para o Núcleo Estratégico

- Aumentar a efetividade do núcleo estratégico, de forma que os objetivos democraticamente acordados sejam adequada e efetivamente alcançados.

- Para isto, modernizar a administração burocrática, que no núcleo estratégico ainda se justifica pela sua segurança e efetividade, através de uma política de profissionalização do serviço público, ou seja, de uma política de carreiras, de concursos públicos anuais, de programas de educação continuada permanentes, de uma efetiva administração salarial, ao mesmo tempo que se introduz o sistema burocrático uma cultura gerencial baseada na avaliação do desempenho.

- Dotar o núcleo estratégico de capacitação gerencial para definir e supervisionar os contratos de gestão com as agências autônomas, responsáveis pelas atividades exclusivas de Estado, e com as organizações sociais, responsáveis pelos serviços não exclusivos do Estado realizados em parceria com a sociedade (BRASIL, 1995, p. 45-46).

Objetivos para as Atividades Exclusivas

- Transformar as autarquias e fundações que possuem poder de Estado em agências autônomas, administradas segundo um contrato de gestão; o dirigente escolhido pelo Ministro, segundo critérios rigorosamente profissionais, mas não necessariamente de dentro do Estado, terá ampla liberdade para administrar os recursos humanos, materiais e financeiros colocados à sua disposição, desde que atinja os objetivos qualitativos e quantitativos (indicadores de desempenho) previamente acordados.

- Para isto, substituir a administração pública burocrática, rígida, voltada para o controle a priori dos processos, pela administração pública gerencial, baseada no controle a posteriori dos resultados e na competição administrada.

- Fortalecer práticas de adoção de mecanismos que privilegiem a participação popular tanto na formulação quanto na avaliação de políticas públicas, viabilizando o controle social das mesmas (BRASIL, 1995, p. 46).

Objetivos para os Serviços Não-exclusivos

- Transferir para o setor público não-estatal estes serviços, através de um programa de ‘publicização’, transformando as atuais fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária.

- Lograr, assim, uma maior autonomia e uma conseqüente maior responsabilidade para os dirigentes desses serviços.

- Lograr adicionalmente um controle social direto desses serviços por parte da sociedade através dos seus conselhos de administração. Mais amplamente, fortalecer práticas de adoção de mecanismos que privilegiem a participação da sociedade tanto na formulação quanto na avaliação do desempenho da organização social, viabilizando o controle social.

- Lograr, finalmente, uma maior parceria entre o Estado, que continuará a financiar a instituição, a própria organização social, e a sociedade a que serve e que deverá também participar minoritariamente de seu financiamento via compra de serviços e doações (BRASIL, 1995, p. 46-47).

Objetivos para a Produção para o Mercado

- Dar continuidade ao processo de privatização através do Conselho de Desestatização.

- Reorganizar e fortalecer os órgãos de regulação dos monopólios naturais que forem privatizados.

- Implantar contratos de gestão nas empresas que não puderem ser privatizados (BRASIL, 1995, p. 47).

As longas transcrições acima se afiguram necessárias porquanto constituem o referencial de cotejo para se verificar o sucesso da transposição do gerencialismo no Brasil, conforme explanações abaixo consignadas.

Percebe-se que, pelos objetivos acima colacionados, as maiores mudanças propostas pelo gerencialismo residem nos setores dos Serviços Não-Exclusivos e Produção para o Mercado: no primeiro caso, diagnostica-se uma mudança da esfera estatal para a esfera pública não-estatal, através do programa de Publicização; no segundo caso, o setor é alocado da esfera estatal para a esfera privada, por intermédio de um programa de Privatização.

Já ao final do Plano Diretor, são vislumbradas as estratégias para a transição de uma Administração Pública Burocrática para uma Administração Pública Gerencial, que perpassaria pela dimensão institucional-legal, por Emendas Constitucionais, pela revisão da legislação infraconstitucional e pela dimensão de gestão e cultural (BRASIL, 1995, p. 48-57).

Apresentado, em linhas gerais, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, peça-síntese das intenções gerencialistas para o direito administrativo pátrio, fique-se com um depoimento do líder do movimento gerencialista no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira (1996, p. 25), onde expõe as perspectivas da Reforma então prenunciada:

Um ano depois de iniciada, posso afirmar hoje que as perspectivas em relação à reforma da administração pública são muito favoráveis. Quando o problema foi colocado pelo nosso governo, no início de 1995, a reação inicial da sociedade foi de descrença, senão de irritação. Na verdade, caiu uma tempestade sobre mim. A imprensa adotou uma atitude cética, senão abertamente agressiva. Várias pessoas sugeriram-me que ‘deveria falar menos e fazer mais’, como se fosse possível mudar a Constituição sem antes realizar um amplo debate[5]. Atribuí essa reação à natural resistência ao novo. Estava propondo um tema novo para o país. Um tema que jamais havia sido discutido amplamente. Que não fora objeto de discussão pública na Constituinte. Que não se definira como problema nacional na campanha presidencial de 1994. Que só constava marginalmente dos programas de governo. Em síntese, que não estava na agenda do país.

No próximo item será confirmado – ou não – se a confiança de Bresser Pereira encontrou guarida na realidade pós-Reforma.

2.2.3 Entre o projetado e o realizado: inovações da Reforma Administrativa Gerencial

Neste tópico serão apresentadas as principais inovações acrescentadas ao ordenamento jurídico-administrativo levadas a cabo por meio da Reforma Administrativa Gerencial. Tais inovações não serão, contudo, dissecadas em pormenor, por fugirem aos propósitos firmados para este artigo. Ademais, alguns tópicos não se inserem como propostas eminentemente gerenciais; porém, por serem contemporâneos ao movimento gerencialista, serão nesta seara analisados.

2.2.3.1 Princípios da eficiência, razoabilidade/proporcionalidade/ponderação e subsidiariedade

De intróito, deve-se entender qual o sentido que a palavra princípio adquire nos tempos hodiernos, haja vista que a intelecção de princípio sofreu, nos últimos anos, mudança radical, em razão dos extraordinários trabalhos de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Vejamos:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. [...] Mas não é assim que funciona com os princípios [...]. Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam [...] aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é (DWORKIN, 2007 p. 39-43).

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível (ALEXY, 2008, p. 90-91).

Vê-se, portanto, que regras e princípios não se confundem[6].

Posta essa lição introdutória, avaliemos os princípios albergados pelo gerencialismo em apartado. O princípio da eficiência foi explicitado no arcabouço normativo pátrio por meio da Emenda Constitucional 19, de 1998. Diz-se que o referido princípio foi explicitado porquanto a doutrina, antes mesmo da citada Emenda Constitucional, afirmava a existência do princípio da eficiência[7].

Eficiência, como já dito em passo pretérito, em epítome significa fazer mais com menos.

O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público (DI PIETRO, 2007, p. 75,).

Perceba que o princípio da eficiência, consoante a exposição de objetivos da Reforma Gerencial, previstos no Plano Diretor, acima apresentado, insere-se mais amplamente nos objetivos globais a serem alcançados pela Reforma Gerencial. Agora, deve-se perquirir: o princípio da eficiência logrou efetividade na realidade social? A resposta, treze anos depois da explicitação do princípio no sistema jurídico nacional, é amarga, contornando, obviamente, a negação. Nesse sentido, proféticas foram as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello (1999, p. 75):

Quanto ao princípio da eficiência, não há nada a dizer sobre ele. Trata-se, evidentemente, de algo mais do que desejável. Contudo, é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que buliram o texto.

Logo, o princípio da eficiência, tal como desejado pelos gerencialistas, restou mais no projetado do que no realizado. Todavia, algo é certo: ao tentar substituir o controle procedimental pelo controle de resultados – apanágio do gerencialismo – a Reforma Administrativa Gerencial buscou, à sua maneira, contemplar a eficiência nos domínios pátrios.

Já o princípio da razoabilidade/proporcionalidade/ponderação[8] não se paramenta como princípio curial ao gerencialismo: tal princípio impregnou-se no ambiente jurídico brasileiro em razão do prestígio alcançado pela razoabilidade/proporcionalidade/ponderação junto ao Tribunal Constitucional Alemão, merecendo guarida no Brasil concomitantemente ao gerencialismo. Em outras palavras: tanto o gerencialismo quanto o princípio em comento floresceram no Brasil no mesmo hiato, a saber, a década de 1990.

Segundo explana Humberto Ávila (2007, p. 165-173), o postulado da proporcionalidade (o autor distingue razoabilidade, proporcionalidade e ponderação) firma-se em três exames: (i) adequação, que é a idoneidade do meio em relação ao fim; (ii) necessidade, que reclama a adoção dos meios menos restritivos e gravosos aptos a alcançar o fim colimado; (iii) proporcionalidade em sentido estrito, consistente no cotejo das vantagens e desvantagens da medida reivindicada.

Não se pode deixar de registrar as contundentes críticas reservadas à utilização indiscriminada desse princípio, engendradas, mormente, pelos adeptos do modelo habermasiano da Teoria Discursiva do Direito, a saber:

a)desnaturação do princípio da separação dos poderes;

b)limitação da supremacia constitucional, pela ‘transformação dos Tribunais Constitucionais em Assembléias Constituintes’;

c)desnaturação dos direitos fundamentais e da unidade normativa da Constituição;

d)politização do Judiciário, por meio de decisões utilitárias de custo/benefício sociais;

e)a decisão tornara-se campo para o arbítrio puro, de preferências pessoais dos juízes;

f)irracionalidade metodológica (SOUZA CRUZ, 2004, p. 195).

Já o princípio da subsidiariedade granjeou assento de destaque junto à União Européia, estando inclusive previsto expressamente no Tratado que constituiu a Comunidade Européia[9]. Segundo Chevallier (2009, p. 59-60), o princípio

[...] significa que a intervenção do Estado somente é legítima em caso de insuficiência ou falha de mecanismos de autorregulação social (supletividade), sendo entendido que convém naquela situação privilegiar os dispositivos mais próximos dos problemas a resolver (proximidade) e de apelar à colaboração dos atores sociais (parcerias) [...].

Segundo Odete Medauar (2003, p. 245-246), a acepção acima colacionada refere-se à distribuição de competências entre os Estados-membros e a União Européia, sendo cognominado de subsidiariedade vertical. Já a subsidiariedade horizontal é atinente às recíprocas interações entre a esfera estatal de atuação e a iniciativa privada: nessa medida, a regra seria a atuação privada, sendo exceção a atuação estatal.

Tal princípio ostenta uma intimidade inequívoca com o gerencialismo brasileiro, na medida em que os programas de Publicização (mudança do setor estatal para o público não-estatal) e de Privatização (do setor estatal para o privado) acabam por reduzir o papel do Estado, em obséquio à iniciativa privada, com mudanças significativas, portanto, para os setores Serviços Não-Exclusivos e Produção para o Mercado, respectivamente.

Nesse ponto, é evidente que o projeto foi realizado, tendo-se por perspectiva as inúmeras privatizações ocorridas e a proliferação de entidades públicas não-estatais (como as organizações sociais), ocorridas na década de 90.

2.2.3.2 Privatização

Conceitos bastante imbricados são os de liberalização, desestatização, desregulamentação e privatização. Tendo-se em vista essa confusão conceitual generalizada, para fins do presente estudo – com esteio nas lições de Odete Medauar (2003, p. 248-250) – apresenta-se a seguinte proposta de sistematização: (i) a liberalização apresenta um sentido amplíssimo, na medida em que designa a redução de normas estatais reguladoras da atividade privada; (ii) a desestatização ostenta um sentido amplo, na medida em que designa a maior participação da sociedade na condução dos rumos do País, com o conseguinte encolhimento da presença estatal; (iii) já a desregulamentação possui um sentido estrito, vez que rotula a supressão de normas estatais do campo privado-econômico; (iv) por sua vez, a privatização, outrossim com sentido estrito, indica a mudança da titularidade de empresas estatais: do setor público para o setor privado. Este é o sentido eleito para fins deste artigo.

Vários fatores explicariam a privatização de empresas estatais e a transferência de serviços públicos à execução de particulares: financeiros, para conter o déficit público e reduzir despesas; jurídicos, ante o peso dos controles estatais; políticos – nos governos de inspiração neoliberal, para reforçar o setor privado, e nos de inspiração socialista, como revisão de dogmas políticos. De modo mais amplo, menciona-se a privatização como uma das respostas à crise do Welfare State (MEDAUAR, 2003, p. 249).

Indubitavelmente, o projeto de privatização buscado pela Reforma Gerencial de 1999 conseguiu alcançar seus objetivos, haja vista a longa lista de empresas públicas privatizadas[10]: Banco do Estado do Ceará (BEC); Banco do Estado do Maranhão (BEM); Banco do Estado do Amazonas (BEA); Banco do Estado de Goiás (BEG); Banco do Estado de São Paulo (BANESPA); Sistema de Processamento de Dados (DATAMEC); sistema TELEBRÁS; Banco Meridional do Brasil (MERIDIONAL); Companhia Vale do Rio Doce (CVRD); Ligh Serviços de Eletricidade (LIGHT); Espírito Santo Centrais Elétricas (ESCELSA); Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER); Embraer Aircraft Corporation (EAC); Embraer Aviation International (EAI); Indústria Aeronáutica Neiva (NEIVA); Mineração Caraíba (CARAÍBA); Petroquímica União (PQU); Aço Minas Gerais (AÇOMINAS); Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA); Ultrafértil Indústria e Comércio de Fertilizantes (ULTRAFÉRTIL); Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); Fábrica de Estruturas Metálicas (FEM); Companhia Ações Especiais Itabira (ACESITA); Acesita Energética (ENERGÉTICA); Forjas Acesita (FASA); Fertilizantes Forfatatos (FOSFÉRTIL); Goiás Fértil (GOIASFÉRTIL); Companhia Siderúrgica Tubarão (CST); Companhia Nacional de Álcalis (CNA); Álcalis do Rio Grande do Norte (ALCANORTE); Companhia Petroquímica do Sul (COPESUL); Petroflex Indústria e Comércio (PETROFLEX); Aços Finos Piratini (AFP); Serviço de Navegação da Bacia do Prata (SNBP); Companhia Siderúrgica do Nordeste (COSINOR); Cosinor Distribuidora (COSINOR DIST.); Mafersa (MAFERSA); Companhia Eletromecânica (CELMA); Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais (USIMINAS); e Usiminas Mecânica (USUMEC).

2.2.3.3 Organizações Sociais

As organizações sociais nasceram no direito brasileiro através do programa de Publicização, cuja finalidade principal era transferir os chamados Serviços Não-Exclusivos do Estado do setor estatal para o setor público não-estatal: ocorrendo essa transferência, surgiriam as organizações sociais. O Programa Nacional de Publicização foi veiculado através da Lei n. 9.637, de 1998.

Organizações sociais (OS) são um modelo de organização pública não-estatal destinado a absorver atividades publicizáveis mediante qualificação específica [o contrato de gestão]. Trata-se de uma forma de propriedade pública não-estatal, constituída pelas associações civis sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público (BRASIL, 1998a, p. 13).

A principal vantagem das organizações sociais reside no fato de que estas entidades não se encontram ligadas às rígidas vinculações públicas de controle previstas nas legislações administrativas, como, por exemplo, as relativas a pessoal, contratos, licitações, etc.

Nenhuma entidade nasce com o nome de organização social; a entidade é criada como associação ou fundação e, habilitando-se perante o poder público, recebe a qualificação; trata-se de título jurídico outorgado e cancelado pelo poder público (DI PIETRO, 2007, p. 461-462).

Nesse diapasão, o processo de publicização, donde emerge a organização social, passa pelas seguintes etapas:

- divulgação;

- protocolo de intenções;

- preparação organizacional das atividades a serem publicizadas;

- criação e composição da entidade não-estatal;

- atos legais (extinção e qualificação);

- absorção de atividades pela OS mediante contrato de gestão.

Uma vez implementado o contrato de gestão, a operação regular de organizações sociais implica duas ações contínuas:

- administração do contrato de gestão; e

- gestão das organizações sociais (BRASIL, 1998a, p. 18-19).

Como exemplos de organizações sociais têm-se: Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncotron (ABTLuS), vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia; a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP), vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República; Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (ARNP), vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia; Centro de Gestão e Estudos Tecnológicos (CGEE), vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia; Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia; e o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), também vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia.

Pela ausência de informações relativas às organizações sociais, não se pode afirmar pela efetividade ou não do programa de publicização; contudo, algo é certo: é intuitiva a proliferação indiscriminada dessas entidades no direito brasileiro, porquanto se encontram livres das injunções administrativas.

2.2.3.4 Agências reguladoras

É cediço que as agências reguladoras do direito brasileiro tiveram por inspiração, no que tange à sua compostura, as agencies estadunidenses[11]. As agências reguladoras tornaram-se um imperativo no direito pátrio em razão do programa de privatização realizado pela Reforma Gerencial – que consiste na transferência do setor Produção para o Mercado da esfera estatal para a esfera privada.

Nesse diapasão, não poderia o Estado brasileiro assistir passivamente a uma livre atuação do setor privado em matéria de serviços públicos outrora de sua alçada: seria uma imoralidade.

Logo, faz-se necessária a constante vigilância estatal relativamente à eficiente atuação do setor privado na condução dos serviços públicos: ora, se o sistema Telebrás foi privatizado, mister que haja uma agência que estipule as condições para uma atuação eficiente do serviço de telecomunicações destinado ao cidadão-cliente, donde emerge o papel da atual ANATEL. Disso surge um movimento típico da década de 1990, que é o da deslegalização que, no Brasil, assume a denotação de transferência de atribuições normativas às agências reguladoras (MEDAUAR, 2003, p. 251) – porém, tais atribuições normativas não se traduzem, necessariamente, em lei.

Mas não só o programa de privatização indica a necessidade das agências reguladoras:

Vários fatores são indicados para explicar a ‘agencificação’, dentre os quais os seguintes: a liberalização de mercados e a transferência da execução de serviços públicos ao setor privado acarretam a necessidade de regulação estatal nos respectivos setores; a percepção de que certas questões teriam melhor solução se atribuídos a órgãos próximos do setor econômico e social concernente, garantindo relações diretas entre Administração e sociedade civil; a tomada de consciência da importância de descentralizar o poder, gerando, inclusive, uma organização estrelada, um Estado-rede dotado de centros decisionais diversificados; a necessidade de adotar medidas em favor de uma pluralidade de modelos organizacionais, juntando-se ao modelo de ministérios o modelo das organizações autônomas e agências reguladoras; um movimento geral de deslegalização, visando a transferir ao Executivo a disciplina de matérias até então privativas de lei (votada pelo Parlamento); a necessidade de conferir estabilidade a regras que afetam o mercado, as quais não ficariam sujeitas a mudanças em decorrência de alternâncias dos comandos políticos; a necessidade de afastar das pressões político-partidárias certas atividades preponderantemente técnicas [...] (MEDAUAR, 2003, p. 260).

O próprio nome das agências reguladoras fixa a principal função dessas entidades: regular. Mas o que significa regular? Em epítome, pode-se afirmar que o verbo regular abrange, no contexto das agências reguladoras, as seguintes atividades: (i) emissão de normas para o setor que atuam; (ii) fiscalização das atividades do setor e a conseqüente imputação de sanção, se for o caso; (iii) resolução de conflitos que acaso surgirem ente os agentes atuantes no setor; (iv) fixação de mecanismos de participação popular, como forma de abertura do setor aos destinatários dos serviços ou atividades regulados, o que se dá através de audiências e consultas públicas (MEDAUAR, 2003, p. 257).

A forma pela qual tais agências se revestem é a de autarquia em regime especial: encontram-se em regime especial porquanto sobre elas recaem uma atividade que, a princípio, seria muito específica e técnica; dessa assertiva pode-se vislumbrar que o princípio norteador das agências reguladoras é o da especialidade.

No Brasil existem, hodiernamente, as seguintes agências reguladoras: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); Agência Nacional do Cinema (ANCINE); Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT); Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL); Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Agência Nacional de Águas (ANA); Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ); Agência Nacional do Petróleo (ANP). Está em vias de implementação a criação da Agência Nacional de Mineração (ANM), em substituição ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), de modo a ensejar um novo marco regulatório para o setor.

Pode-se afirmar, com tranqüilidade, que a instituição das agências reguladoras foi um relativo sucesso, consoante o Projeto Gerencial, na medida em que tais agências cumprem com eficiência e efetividade os papéis que lhes foram atribuídos.

2.2.3.5 Contrato de gestão/agências executivas

A Emenda Constitucional 19, de 1998, acrescentou ao texto constitucional a figura do contrato de gestão, nestes termos:

Art. 37 [...]

§ 8°. A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o Poder Público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre:

I – prazo de duração do contrato;

II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidades dos dirigentes;

III – a remuneração do pessoal (BRASIL, 2011).

O contrato de gestão, nesse diapasão, significa a concessão de maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira (em prol de maior eficiência atuacional) à entidade signatária (uma fundação ou autarquia): celebrado o contrato de gestão, a entidade signatária passa a ostentar a denominação de agência executiva.

No âmbito federal, a regulamentação das agências executivas (entidades que celebraram com o Poder Público um contrato de gestão, em que recebem desse autonomia gerencial, orçamentária e financeira, devendo, em contraposição, ofertar maior eficiência em sua atuação) deu-se através dos Decretos 2.487 e 2.488, ambos de 1998, onde se encontra o procedimento para a obtenção do título de agência executiva – que perpassa, necessariamente, repita-se, pelo contrato de gestão. Os incisos do art. 37, § 8°, designam o conteúdo mínimo desse contrato. Destarte, o contrato de gestão – e, por conseguinte, a constituição de agências executivas – é um dos objetivos colimados pelo Plano Diretor para o setor Atividades Exclusivas.

Enfim, de acordo com a gramática dos gerencialistas

[...] o Projeto das Agências Executivas visa promover, nas instituições candidatas à qualificação como Agência Executiva, a implementação de um modelo de administração gerencial, caracterizado por decisões e ações orientadas para os resultados, tendo como foco as demandas dos clientes e usuários da instituição, baseados no planejamento permanente e executadas de forma descentralizada e transparentes [...] (BRASIL, 1998b, p. 12).

Como exemplo de agência executiva, tem-se o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO), cuja qualificação deu-se por Decreto presidencial de 29/07/1998.

Deve-se, aqui, registrar a dúvida quanto ao sucesso[12] das agências executivas, vez que o único exemplo de agência encontrado foi o INMETRO.

2.2.3.6 Fragilização da estabilidade

Inequivocamente, a Emenda Constitucional 19, de 1998, ao dar novel redação ao art. 41 da Constituição Federal, procedeu a uma fragilização de uma das garantias tipicamente intrínsecas à Administração Pública Burocrática, a estabilidade.

A estabilidade é uma garantia constitucional atribuída aos servidores públicos titulares de cargos efetivos segundo a qual somente poderão perder ser cargos nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal.

Diz-se que a Emenda Constitucional fragilizou tal garantia na medida em que operou as seguintes mudanças no art. 41 da Constituição Federal – dispositivo-matriz da estabilidade no ordenamento jurídico brasileiro: (i) aumentou as hipóteses de dispensa do servidor: antes da Emenda Constitucional 19/98, o servidor somente perderia o cargo no caso de sentença judicial transitada em julgado ou processo administrativo que lhe assegurasse ampla defesa; agora, além dessas duas hipóteses, o servidor público poder perder seu cargo também em virtude de procedimento de avaliação periódica de desempenho, prevista em lei complementar, assegurando-lhe ampla defesa e também por excesso de despesa – art. 169 da Constituição Federal; (ii) ampliou o prazo do estágio probatório, de 2 (dois) anos para 3 (três) anos.

Coteja-se o quadro hodierno, acima bosquejado, com aquele pretendido pela Reforma Gerencial:

[Através de Emenda Constitucional bucar-se-á:]

[...]

- a flexibilização da estabilidade dos servidores estatutários, permitindo-se a demissão, além de por falta grave, também por insuficiência de desempenho e por excesso de quadros;

- nos dois últimos casos o servidor terá direito a uma indenização;

- no caso de insuficiência de desempenho, que tem por objetivo levar o servidor a valorizar o seu cargo, e permitir ao administrador público cobrar trabalho, o funcionário só poderá ser demitido depois de devidamente avaliado, terá sempre direito a processo administrativo específico com ampla defesa;

- no caso de exoneração por excesso de quadros, a exoneração deverá obedecer a critérios gerais estabelecidos em lei complementar, e os cargos correspondentes serão automaticamente extintos, não podendo ser recriados em prazo de quatro anos;

[...] (BRASIL, 1995, p. 51).

Poder-se-ia dizer que os propósitos gerencialistas foram alcançados. Ledo engano. A um, porque a lei complementar que deveria regulamentar a demissão por insuficiência de desempenho ainda não foi editada, razão pela qual impede a plena incidência do art. 41, III, da Constituição Federal; a dois porquanto a utilização da demissão por excesso de quadros (não obstante regulamentada pela Lei Complementar 101, de 2000) tem sido utilizada, como intuitivo, com bastante parcimônia, haja vista os interesses políticos imbricados com a questão – a utilização desse tipo de demissão ensejaria um desgaste político monstruoso com a categoria.

2.2.3.7 Nova política remuneratória: subsídio

A Emenda Constitucional 19, de 1998, inovou na política remuneratória dos servidores públicos na medida em que implementou a figura do subsídio.

Anteriormente à referida Emenda, a regra era a remuneração de o servidor público dar-se através de vencimento.

Vencimento, em sentido estrito, é a retribuição pecuniária devida ao servidor pelo efetivo exercício do cargo, correspondente ao padrão fixado em lei; vencimento, em sentido amplo, é o padrão com as vantagens pecuniárias auferidas pelo servidor a título de adicional ou gratificação (MEIRELLES, 1996, p. 403).

Logo, conforme a clássica lição de Hely Lopes Meirelles, o vencimento é um padrão remuneratório composto de uma parte fixa e de uma parte variável, relativa aos acréscimos de toda ordem. Assim, todos os agentes públicos, antes da Emenda Constitucional 19, de 1998, auferiam vencimento.

Contudo, a Emenda 19/98 concedeu nova redação ao art. 39, § 4°, da Constituição Federal, no sentido de que os ocupantes de cargos políticos – membro de poder, detentor de mandato eletivo, Ministros de Estado e Secretários Municipais e Estaduais – teriam como padrão remuneratório o subsídio, caracterizado por ser em parcela única, vedado qualquer espécie de acréscimo – abono, adicional, gratificação, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Todavia, àqueles que percebessem retribuição remuneratória na forma de subsídio eram asseverados a garantia de instituição e alteração do padrão remuneratório por lei específica e o direito de revisão geral anual.

Porém:

O sentido de parcela única, sem qualquer acréscimo, é atenuado pela própria Constituição Federal: o § 3° do art. 39 assegura aos ocupantes de cargos públicos vários direitos previstos para os trabalhadores do setor privado: décimo terceiro salário, salário-família, adicional noturno, remuneração por serviço extraordinário, adicional de férias – tais direitos representam acréscimos ao subsídio. Também hão de ser pagas aos agentes públicos despesas decorrentes do exercício do cargo, como é o caso das diárias e ajudas de custo (MEDAUAR, 2009, p. 280-281).

Por seu turno, o art. 39, § 8º faculta aos servidores públicos organizados em carreira a opção do padrão remuneratório do subsídio[13].

2.2.3.8 Breves ilações

A Emenda Constitucional 19, de 1998, que fertilizou no terreno constitucional os postulados do gerencialismo no Brasil, não se resumiu apenas a estes aspectos; outros, como a salutar instituição do teto remuneratório – posteriormente reformado pela Emenda 41, de 2003 –, o respectivo direito adquirido à remuneração, dispositivos atinentes à participação popular, também advieram da Reforma Administrativa. No entanto, não serão aqui analisados por serem de somenos importância para os fins deste artigo. Outrossim não foi analisada a Emenda Constitucional 20, de 1998, atinente à aposentadoria no campo público, por igualmente ser estranha a este estudo.

Cotejando-se os propósitos firmados no âmbito do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), documento-síntese do movimento gerencialista no Brasil, perfaz-se que muito do projetado foi realizado: a Emenda Constitucional 19, de 1998, conseguiu implementar, com sucesso, vários dos postulados gerencialistas; contudo, conforme se viu, em vários aspectos, as inovações gerencialistas não mereceram uma ampla guarida na práxis administrativa pátria.

Mas algo é indubitável: o direito administrativo brasileiro já não era mais o mesmo no pós-Reforma Administrativa Gerencial da década de 1990.


3 OS IMPACTOS DO GERENCIALISMO NO BRASIL: CRISE OU PLASTICIDADE EVOLUTIVA?

3.1 Proêmio

Constatou-se, em passo pretérito, que as inovações implantadas no arcabouço jurídico-administrativo pelo gerencialismo no Brasil foram muitas. Destarte, o Direito Administrativo não poderia passar incólume a essas significativas mudanças.

Assim sendo, pode-se afirmar, peremptoriamente, que o DNA do Direito Administrativo brasileiro já não é mais o mesmo. Mister, então, é verificar a extensão das modificações advindas do gerencialismo. Tais modificações, por seu turno, podem paramentar-se, para fins deste estudo, como uma verdadeira crise ou uma profunda adaptação à (pós) modernidade, no que cognominamos de plasticidade evolutiva.

Nesse diapasão, serão tecidas algumas reflexões sobre tais alterações, ora sob a contextualização paradigmática de uma verdadeira crise, ora sob o prisma de uma simples, mas nada desprezível, acomodação às exigências da atualidade. Após tais considerações, externaremos, por fim, nosso entendimento, em um sentido ou em outro.

3.2 O gerencialismo como crise

Com o fito de afirmar – e demonstrar – que o direito administrativo, sob o influxo de valores gerencialistas, resulta em crise, adotar-se-á, nesse campo da pesquisa, como marco teórico, a exuberante sistematização elaborada pelo proponente português Paulo Otero, exposta em sua obra Legalidade e Administração Pública (2007).

Não nos ateremos a dizer o que é, precisamente, crise no contexto administrativo. A definição de crise, por si só, é mais intuitiva que descritiva; contudo, num certo esforço descritivo, pode-se dizer que crise é um estado que acarreta a alteração da condição normal das coisas, seja por fatores internos ou por fatores externos. No campo do direito administrativo, a crise se manifestaria em distúrbios na própria identidade do direito administrativo: este, em estado de crise, vendo sua própria face refletida no espelho, não se reconheceria.

Assim, para Paulo Otero (2007), a crise de identidade do direito administrativo atual manifesta-se em três perspectivas distintas: (i) a dinâmica privatizadora da Administração Pública; (ii) a expansão desenfreada de autoridades administrativas independes; e (iii) a descaracterização da função administrativa.

Cada uma dessas perspectivas será analisada em apartado no espaço abaixo, ilustrando-as como realidade no direito brasileiro através de exemplos.

3.2.1 A dinâmica privatizadora da Administração Pública

Um dos primeiros fatores de crise para o direito administrativo consiste na presença cada vez mais robusta, em vários de seus campos, da tônica privada. Conforme expõe Otero (2007, p. 304), essa tônica privada no seio administrativo manifesta-se de quatro maneiras: (i) privatização da estrutura organizacional administrativa; (ii) privatização das funções administrativas; (iii) privatização do direito regulador da atividade administrativa; e (iv) privatização das relações laborais intra-administrativas.

Pela privatização da estrutura organizacional administrativa, tem-se a indiscriminada criação de pessoas jurídicas administrativas privadas que perseguem atividades eminentemente públicas[14].

Em todas estas situações, podendo as mesmas envolver ou não a criação de sociedades comerciais, deparamos sempre com um fenômeno de ‘privatização dos sujeitos’, servindo-se a Administração Pública das formas organizativas típicas do Direito Privado, designadamente do Direito Comercial, para criar novas entidades, todas elas dotadas de uma personalidade jurídica de direito privado, e confiar-lhes tarefas que, directa ou indirectamente, as instrumentaliza aos fins de interesse público subjacentes à entidade pública que está na respectiva génese (OTERO, 2007, p. 305).

E em que isso contribui para a crise do direito administrativo? Vejamos. (i) A atividade administrativa, até então confiadas a pessoas administrativas públicas, passa a ser compartilhada com pessoas administrativas privadas; (ii) logo, a busca pelo interesse público no contexto administrativo não é exclusiva de entidades públicas, mas também de entidades privadas; (iii) isso, então, apequena a noção de personalidade jurídica de direito público; (iv) o Direito Administrativo vê-se compelido a, assim, conviver com o Direito Privado, o que é um fator de enfraquecimento do primeiro (OTERO, 2007, p. 306-307).

Não acreditamos que, face à realidade brasileira, tal contexto seja denotativo de crise. A própria Constituição Federal, frente aos arts. 175 e 173, anui com a existência de entidades privadas na Administração Pública que realizem atividades tipicamente públicas. Como exemplo, tem-se Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), sociedade de economia mista – portanto, pessoa jurídica administrativa privada – voltada para o saneamento básico, prestação estatal de suma importância para o bem-estar societal[15].

A privatização das funções administrativas dá-se em direção à gestão ou exploração dessas funções. Nesse caso, a gestão ou exploração de atividades administrativas passa a ser desempenhada por pessoas jurídicas privadas. Difere-se, portanto, da primeira figura de privatização acima vista, porquanto esta importa em alargamento da Administração através da criação de pessoas jurídicas administrativas privado-públicas; na forma de privatização ora sob comento, a pessoa jurídica privada é que explorará as atividades ou a gestão; não é uma pessoa jurídica administrativa, mas uma pessoa privada[16], no sentido de que se encontra fora do aparelho do Estado (OTERO, 2007, p. 308).

Há na privatização da gestão ou exploração de tarefas administrativas, no entanto, um elevado grau de precariedade decorrente de existir sempre uma pessoa colectiva pública que mantém a responsabilidade última pelo efectivo e eficiente funcionamento das mesmas nas mãos das entidades privadas a quem foram confiadas: alicerçando-se em actos administrativos ou em contratos administrativos, a pessoa colectiva pública por tais tarefas dotada de uma responsabilidade última de garantia goza de amplos poderes de conformação, fiscalização e sancionamento sobre o modo como a gestão ou exploração dessas mesmas tarefas públicas se encontra a ser desempenhada pela entidade privada a quem foram confiadas, incluindo a faculdade de colocar termo ao respectivo acto ou contrato permissivo (OTERO, 2007, p. 308-309).

O principal fator de crise, aponta Otero (2007, p. 309), consiste na diminuição do campo operacional do Direito Administrativo, constituindo-se, portanto "[...] na mais séria ameaça ao Direito Administrativo do século XXI".

Pelas transcrições acima fica fácil entrever o apresentado fenômeno no Direito Administrativo brasileiro: trata-se das organizações sociais, estimuladas pela Reforma Gerencial através do Programa de Publicização, pelo qual os Serviços Não-Exclusivos são transferidos do setor estatal para o público não-estatal.

A privatização do Direito regulador da atividade administrativa corresponde ao uso cada vez mais patente do Direito Privado no campo do Direito Administrativo.

[...] a substituição do Direito Administrativo pelo Direito Privado na disciplina jurídica da actividade das entidades públicas envolve uma privatização que se pode considerar sui generis: o Direito Privado aplicado pela Administração Pública não é idêntico ao que rege as relações entre os particulares, antes é objeto de uma administrativização ou publicização, sujeito que está a um núcleo duro de vinculações jurídico-públicas inderrogáveis, falando-se, por isso mesmo, em ‘Direito Administrativo Privado’ (OTERO, 2007, p. 311).

É nesse contexto que se fala em "fuga do Direito Administrativo para o Direito Privado"[17], sendo o fator de crise evidente, em ordem que se tornam mais porosas as fronteiras entre Direito Administrativo e Direito Privado, o que importa em mudança na própria conceituação de Direito Administrativo, de modo a comportar conceituações mais amplas ou estritas (OTERO, 2007, p. 312).

Perceba que a própria noção da Administração Pública Gerencial comporta uma abertura do Direito Administrativo ao Direito Privado, ao apregoar que a Administração Pública deve funcionar nos moldes de uma administração de empresas. Contudo, esse movimento não é impulsionado somente pelo gerencialismo: o próprio fetichismo do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão já evidencia uma velada fuga para o direito privado, como bem expôs Vinícius Marins (2005, p. 15), por ocasião da análise do contexto brasileiro.

Por fim, relativamente à dinâmica privatizadora da Administração, tem-se a privatização das relações laborais intra-administrativas. O Direito do Trabalho acaba por imiscuir-se no campo administrativo, importando uma mudança "[...] das formas típicas da relação jurídica de emprego público por vinculações contratuais regidas pelo Direito do Trabalho [...]" (OTERO, 2007, p. 313).

Sem prejuízo da garantia institucional de que goza a função pública na Constituição, elemento este que exclui liminarmente a extinção legal de um regime específico da função pública ou a sua completa identificação material com o regime laboral jurídico-privado, mostra-se admissível que o legislador, atendendo a razões de eficiência e flexibilidade, submeta certas zonas das relações laborais existentes na Administração Pública a um regime jurídico de Direito Privado (OTERO, 2007, p. 313, grifos nossos).

O fator de crise reside justamente no esmaecer dos confins entre Direito Administrativo e Direito do Trabalho no campo da função pública, privilegiando-se o segundo em detrimento do primeiro. Logo, desse embate, o Direito Administrativo queda-se enfraquecido.

O gerencialismo, nesta seara, contribui decisivamente para uma crise no Direito brasileiro. A Emenda Constitucional 19, de 1998, tentou derrubar a exigência constitucional do regime jurídico único, de modo a permitir a uma expansão da contratação de servidores celetistas. Contudo, a Emenda 19, que deu nova redação à cabeça do art. 39 da Constituição Federal, foi objeto, nesse contexto, de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI), a de n. 2135/2000. Em medida liminar, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, liminarmente, a nova redação, em razão de suposta inconstitucionalidade formal, estando o julgamento da referida ADI em suspenso. Importa ainda registrar que a própria idéia de fragilização da estabilidade encontra conexão intuitiva com a forma de privatização acima explanada. Assim, contribui o gerencialismo para uma suposta crise do Direito Administrativo brasileiro.

3.2.2 Multiplicação de autoridades administrativas independentes

No léxico de Paulo Otero (2007), as autoridades administrativas independentes correspondem aos entes cujas atividades encontram-se, teoricamente, livres de injunções político-administrativas do governo, vez que suas atividades são de extrema importância para determinados compartimentos da comunidade estatal. Por serem tão relevantes, tais atividades devem ser conduzidas e pautadas pela objetividade, pela imparcialidade e pela neutralidade política (OTERO, 2007, p. 319), apresentando-se imunes aos assédios vindos do espaço político ordinário. Assim, não obstante integrantes da comunidade administrativa estatal, encontram-se fora do círculo hierárquico característico desta.

Sucede, porém, que ao justificar-se a criação destas autoridades administrativas independentes na ideias de reforço da neutralidade, da imparcialidade e da objectividade decisórias da Administração Pública em certas matérias se lança uma correlativa suspeição de sinal contrário sobre toda a restante Administração, comprovando-se, por esta via, que a impregnação política das diversas estruturas administrativas, expressando a já mencionada politização ou colonização dos partidos políticos, resultante do actual ‘Estado do partido governamental’, é já hoje uma realidade expressamente assumida pela ordem jurídica: o surgimento das autoridades administrativas independentes é a resposta à progressiva perda de neutralidade, imparcialidade e objectividade que uma Administração dominada por maiorias político-partidárias oferece aos particulares, procurando-se salvar algumas áreas particularmente sensíveis dessa politização descontrolada (OTERO, 2007, p. 320).

Consignadas autoridades administrativas independentes caracterizam-se, portanto, pelo déficit democrático que ostentam[18] [19], demonstrando-se, assim, a existência de um "protagonismo técnico-burocrático" que menoscaba a legitimidade político-democrática (OTERO, 2007, p. 293).

Assim, a expansão descontrolada dessas autoridades desvincula-se da noção amplamente propalada da unidade administrativa e do suporte democrático do direito administrativo pela presença do elemento político. Eis o quadro de crise.

No Brasil, podem-se apontar como exemplos inequívocos dessas autoridades administrativas independentes as agências reguladoras, multiplicadas no ordenamento jurídico nacional em razão da quebra dos monopólios estatais e pelo programa de Privatização engendrado pela Reforma Gerencial da década de 90, estimulador da transferência do setor Produção para o Mercado da esfera estatal para a esfera privada.

3.2.3 Descaracterização da função administrativa

Conforme apresenta Paulo Otero (2007, p. 323-331), a descaracterização da função administrativa dá-se em dois sentidos distintos: (i) a terceiridade de algumas funções administrativas e (ii) a progressiva intromissão do Judiciário na seara administrativa. Vejamos esses fenômenos apartadamente.

Relativamente à função cuja curadoria lhe foi reservada, a Administração Pública sempre esteve numa posição ingrata: atuava com parcialidade e, concomitantemente, deveria respeitar as prescrições normativas. Contudo, isso não mais encontra espeque absoluto na realidade: a Administração, precipuamente no que tange às autoridades administrativas independentes, vem cada vez mais se mostrando desinteressada da função que lhe cabe, como se estivesse acima dela, paramentando-se, então, como um árbitro.

Uma tal aproximação entre a função administrativa e a função jurisdicional mostra-se hoje particularmente visível no exercício por estruturas da Administração Pública de poderes de intervenção decisória no âmbito de relações jurídicas entre privados, fazendo com que os órgãos administrativos desenvolvam uma actividade equivalente à de um juiz (OTERO, 2007, p. 325).

Portanto, resta modificada a configuração tradicional da função administrativa: se antes ela pautava-se pela parcialidade, agora, em determinados casos, ela assume uma nota de terceiridade, confundindo-se, então, as funções jurisdicionais e administrativas, de modo a descaracterizar, de certa maneira, o próprio Direito Administrativo, sendo lícito, portanto, falar em crise.

Como exemplo desse fenômeno em terras brasileiras, pode-se apontar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Veja-se que a própria Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994 consigna, em seu art. 3°, que o CADE é um órgão judicante.

Contudo, não se pode afirmar que o CADE ostenta uma ligação perspícua com o movimento gerencialista: porém, o CADE só se transformou em autarquia em 1994, através da citada Lei, sendo contemporânea essa transformação ao movimento gerencialista[20] – o CADE anteriormente à Lei 8.884/94 era uma empresa pública.

Por fim, como última vertente para a descaracterização da função administrativa, de acordo com o modelo de Paulo Otero, emerge a jurisdicionalização da função administrativa. Tal fenômeno designa a progressiva intrusão do Judiciário na função administrativa; desse modo, o Judiciário conquista novos espaços dentro do mundo administrativo[21].

Ou seja: a jurisdicionalização da função administrativa traduz-se na transferência para a esfera do poder judicial de tarefas ou decisões tipicamente integrantes da função administrativa, procedendo-se através desta ‘fuga para o terceiro poder’ a uma amputação da área material de incidência do Direito Administrativo, isto por efeito, segundo um diferente ângulo de análise, de um ‘enriquecimento sem causa’ do poder judicial gerado por um ‘empobrecimento’ da função administrativa (OTERO, 2007, p. 329-330).

O fator de crise dispensa maiores considerações: imiscuindo-se o Judiciário na função administrativa de maneira constante, nada restaria à Administração no campo operativo decisional, transformando-se esta num fantoche do Judiciário.

Entrementes, não existe uma relação causa-efeito entre o ativismo jurisdicional no campo administrativo e gerencialismo, na perspectiva pátria. Mas que o protagonismo jurisdicional no campo administrativo na realidade brasileira é uma verdade, quanto a isso, não existem dúvidas[22].

3.3 O gerencialismo como plasticidade evolutiva

Antes de tecer as reflexões que concebem o gerencialismo como plasticidade evolutiva deve-se estabelecer o que é evolução e o que é plasticidade.

Lastreando-se em Niklas Luhmann (2002), pode-se dizer que a evolução ocorre quando as estruturas dos sistemas sociais normalizam o improvável. (LUHMANN, 2002, p. 205). Não é por outra razão que Marcelo Neves (2008, p. 1) assevera que e evolução de corte luhmanniano dá-se quando "[...] o improvável torna-se provável [...]". Destarte, o processo evolutivo jurídico luhmanniano percorre as seguintes etapas: (i) variação, que é o surgimento de uma comunicação inesperada no sistema; (ii) seleção, que consiste na não-rejeição da comunicação desviante pelas estruturas do sistema, permitindo a continuidade da expectativa comunicacional surpreendente; (iii) restabilização, quando o sistema produz, autopoieticamente, a comunicação improvável, tornando-a, portanto, provável (LUHMANN, 2002, p. 173) [23].

Visto, ainda que sucintamente, o processo evolutivo bosquejado por Niklas Luhmann, deve-se compreender o que é plasticidade. A plasticidade pressupõe uma modificação do estado natural das coisas em razão de elementos externos – sem, contudo, desaguar em crise. Nesse diapasão, trata-se de uma adaptação às novas condições do sistema.

Assim, pode-se dizer que a plasticidade evolutiva denomina a capacidade de um sistema de evoluir conforme as necessidades e pressões de um contexto histórico, político e econômico.

E isso é, justamente, uma característica da pós-modernidade: transformações outrora impensáveis tornam-se naturais a uma velocidade incrível imprimida pelos meandros da globalização. Assim, não podemos nos assustar com as repentinas inovações ocorridas no nosso tempo, vez que o nosso tempo se caracteriza justamente por essas repentinas inovações.

A sociedade contemporânea seria assim caracterizada pela complexidade, a desordem, a indeterminação, a incerteza: novas figuras, tais como aquelas do rizoma, do labirinto ou da rede – agora promovida ao nível de paradigma dominante nas ciências sociais – são fornecidas para dar conta de uma organização social que abandonou os caminhos bem balizados da simplicidade, da ordem e da coerência (CHEVALLIER, 2009, p. 17-18).

Diríamos mais: nossa sociedade pós-moderna corresponderia à complexificação do complexo, a uma desordem impassível a priori de ordenação, à determinação às indeterminações e incertezas – certificação das indeterminações ou determinação às incertezas. Ora, é assim que pós-modernidade deve ser enxergada: como hiperbolização das características da modernidade.

Nesse contexto, a globalização assume papel especial. É como se fosse um pulverizador das inovações ocorridas em diferentes espaços sociais, donde que se esmaecem as fronteiras desses espaços. Nesse modelo, a globalização seria o instrumento pelo qual a complexificação do complexo, a desordem impassível a priori de ordenação e a determinação às indeterminações e incertezas são espraiada por todos os contextos, havendo, contudo, níveis distintos de adaptabilidades às características da pós-modernidade.

É imperioso reconhecer que o Direito Administrativo não poderia passar incólume a estes contextos de pós-modernidade e globalização. Destarte, o Direito Administrativo recebe os influxos desses movimentos, o que acaba por alterar sua composição e compostura clássicas. Todavia, isso não seria sinal de crise, mas de evolução; uma evolução cujo ritmo é ditado pela pós-modernidade e exportado para todos os contextos pela globalização. O direito administrativo olha-se no espelho e reconhece-se, não obstante as constantes intervenções plásticas.

Tudo o que foi dito calha à fiveleta ao Direito Administrativo brasileiro, em relação aos impactos nele causados pela implementação dos postulados gerencialistas. As principais inovações introduzidas no Direito Administrativo brasileiro cuja paternidade é creditada ao movimento gerencialista afiguram-se como sinais de evolução. O fenômeno da privatização, em seus múltiplos coloridos, a expansão das autoridades administrativas independentes e a descaracterização da função administrativa – recorrendo-se, novamente, à gramática da crise engendrada por Paulo Otero (2007) – estão intumescidos de elementos desviantes que passaram pelo processo evolutivo acima apresentado: (i) primeiro surgiram tais elementos desviantes; (ii) segundo, tais elementos acabaram por encontrar adaptabilidade no sistema administrativo; (iii) onde, por fim, resistiram e reproduziram, não obstante as críticas endereçadas. Logo, o que era improvável ao Direito Administrativo em seu classicismo impermeável tornou-se provável, decorrendo, daí, evolução.

Todavia, essa evolução não se deu naturalmente. A influência de fatores externos permitiu que o gerencialismo se tornasse um imperativo no contexto brasileiro de 1990. Como se viu, o gerencialismo foi concebido como a forma adequada para suplantar os pontos negativos intrínsecos à Administração Pública Burocrática: tornar a Administração mais flexível e mais eficiente, através de uma série de medidas que contemplassem mais os resultados do que os processos – eis o âmago do gerencialismo. Na visão gerencialista, a Administração Pública brasileira tinha tudo, menos flexibilidade e eficiência, o que abriu as portas às reformas da década de 1990. Assim, o gerencialismo era o remédio contra uma Administração Pública Burocrática que não mais respondia aos anseios dos tempos hodiernos. Mister, então, se afigurava reformar a Administração Pública brasileira para que a mesma se enquadrasse às exigências da atualidade, decorrendo, desse contexto, uma plasticidade, no sentido de serem alterações necessárias (a Reforma Administrativa) frente a novos contextos (em síntese, a crise do Estado, um símbolo da pós-modernidade).

E, como se viu, o gerencialismo foi amplamente adotado na modernidade central (mormente Estados Unidos e Grã-Bretanha), aportando no Brasil justamente através da globalização.

Logo, os impactos do gerencialismo no Brasil não importam em crise, mas numa plasticidade evolutiva[24] profunda.

Esse momento revela mudanças que vêm se realizando no direito administrativo no sentido de sua atualização e revitalização, para que entre em sintonia com o cenário atual da sociedade e do Estado. Algumas tendências podem ser extraídas:

a)desvencilhamento de resquícios absolutistas, sobretudo no aspecto da vontade da autoridade impondo-se imponente;

b)absorção de valores e princípios do ordenamento consagrados na Constituição;

c)assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade;

d)abertura para o cenário sócio-político-econômico em que se situa;

e)abertura para conexões científica interdisciplinares;

f)disposição de acrescentar novos itens à temática clássica (MEDAUAR, 2003, p. 267).

Tais alterações não passaram despercebidas por Sabino Cassese. Sem utilizar o vocábulo crise, o autor italiano vale-se das seguintes palavras-chave hermenêuticas em relação ao contexto atual do Direito Administrativo: contraddizioni [contradições] e paradossi [paradoxos]. Veja-se[25]:

O direito administrativo apresenta-se como um mosaico de contradições. Sujeito por uma parte a uma veloz mudança, é para outros o emblema da estabilidade. Tradicionalmente unitário, tornou-se pluralista. Filho da centralização, sobrevive a uma intensa descentralização. Exemplo de unilateralismo, tem sido capaz de resistir à onda contratualista. Reino do formalismo, vale-se da informalidade. Hospeda no seu seio nacionalização e privatizações, regulação e desregulação. Filho do interesse nacional, é porém instrumento da cooperação regional e global. Sofre, do mesmo modo, limites estatais, regionais[26] e globais. Todas essas oposições e contradições vivem, como muitas camadas superpostas e misturadas (segundo o modelo do ‘institutional layering’), em tensão permanente no direito administrativo, rendendo uma difícil compreensão numa investigação isolada dos seus múltiplos ingredientes (CASSESE, 2009, p. 3, tradução nossa).

Nesse diapasão Cassese (2009, p. 13-28) fala em tensões, paradoxos e contradições entre política e administração, entre o público e o privado, entre o estatal e o universal e o nacional e transnacional (regional).

Em epítome: de fato, o direito administrativo brasileiro apresenta elementos desviantes de sua configuração clássica, que terminam por ensejar, no contexto administrativo, vários paradoxos, contradições ou mesmo tensões. Tais elementos desviantes foram introduzidos no arcabouço nacional na década de 1990, pela Reforma Administrativa Gerencial, cujo escopo era atualizar a Administração Pública brasileira, livrando-a dos excessos burocráticos. O gerencialismo, surgido nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, aporta em terras nacionais – através da globalização de novas engenharias institucionais que visam a adequar o Estado aos novos apetites de um capitalismo pós-moderno – com a promessa de inserir a Administração pátria na pós-modernidade. Mas isso, de modo algum, representou um fator de crise para o direito administrativo brasileiro, posição à qual manifestamos nossa adesão.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo foi analisar se as alterações produzidas pelo gerencialismo no Brasil constituíram-se em fator de crise ou em uma plasticidade evolutiva. O caminho percorrido até estas considerações foi longo, e passa a ser abaixo sintetizado.

De início verificaram-se quais as formas ou tipos de Administração Pública que se contrapõem à Administração Pública Gerencial. Esta se caracteriza pela eficiência e flexibilidade, onde o controle procedimental é substituído por um controle de resultados. Os outros dois tipos de Administração Pública são: (i) Administração Pública Patrimonialista, em que a coisa pública é vista como propriedade do príncipe, o que importa em confusão do público com o privado; (ii) Administração Pública Burocrática, que se caracteriza pela existência de um rígido controle procedimental, além de regras objetivas que visam a apartar o público e o privado no domínio administrativo.

A Reforma Administrativa empreendida na década de 1990 pelo Governo Fernando Henrique Cardoso buscou a implementação de postulados gerencialistas no Brasil, em ordem a constituir uma Administração Pública Gerencial.

O gerencialismo – que dá ensejo à Administração Pública Gerencial – nasce na década de 80 em resposta à crise do Estado. Os pilares do gerencialismo podem ser resumidos na seguinte assertiva: a Administração Pública deve funcionar do mesmo modo que uma administração de uma empresa. Nesse sentido, para que tal aspiração seja alcançada, mister são dois pontos: (i) a eficiência e (ii) um controle de resultados, em detrimento do controle procedimental burocrático.

Destarte, como forma de adequar a Administração Pública à nova realidade circundante, que exigia uma atuação mais eficiente, o Governo Fernando Henrique elaborou o Plano Diretor de Reforma Administrativa do Aparelho do Estado, documento que nortearia a progressiva implantação do gerencialismo na Administração Pública pátria. Tal Plano Diretor possuía as seguintes diretrizes: (i) busca por maior eficiência na atuação estatal; (ii) substituição de um formal e rígido controle procedimental por um flexível controle de resultados; (iii) estabelecer, para o Núcleo Estratégico, além de eficiência, efetividade; (iv) conceder maior autonomia para o administrador público, principalmente para aquele inserido no setor Atividades Exclusivas; (v) instituir um programa de Publicização, pelo qual o setor dos Serviços Não-Exclusivo passaria da esfera estatal para a esfera pública não-estatal; (v) instituir um programa de Privatização, pelo qual o setor Produção para o Mercado passaria do setor estatal para o setor privado.

Tendo-se em vista tais diretrizes, promulgou-se a Emenda Constitucional 19, de 1998, marco teórico-constitucional do gerencialismo no Brasil. Logo, durante a década de 1990, o Brasil assistiu a uma onda gerencialista, que resultou: (i) na emergência de novos princípios, como os da subsidiariedade e eficiência; (ii) na implementação do programa de Privatização, pelo qual 40 (quarenta) entidades passaram da esfera estatal para a esfera privada; (iii) na criação da figura das organizações sociais, conforme os postulados do programa de Publicização; (iv) na constituição de agências reguladoras, que deveriam regulamentar e fiscalizar os setores que foram transferidos da esfera estatal para a esfera privada; (v) por intermédio do contrato de gestão, nas agências executivas, entidades às quais eram conferidas maiores prerrogativas com o fito de atuarem mais eficientemente; (vi) na fragilização da estabilidade, com a ampliação das hipóteses de demissão e do prazo do estágio probatório; (vii) numa nova política remuneratória, a saber, o subsídio. O rol apresentado não é exaustivo, mas constitui-se nas principais inovações do gerencialismo brasileiro da década de 1990.

O Direito Administrativo brasileiro, então, sofreu mutações em sua estrutura; restava saber se tais mutações seriam bosquejos de uma crise ou de uma plasticidade evolutiva.

Foram então apresentados os argumentos segundo os quais o gerencialismo constituir-se-ia num fator de crise do Direito Administrativo pátrio, que podem ser assim sintetizados: (i) as inúmeras privatizações, dos diversos vieses, confundiria o próprio Direito Administrativo, em razão da presença cada vez mais constante do Direito Privado; (ii) a proliferação de autoridades administrativas independentes prejudicaria a clássica noção de unidade orgânico-administrativa e provocaria um afastamento da legitimidade democrática no contexto administrativo; (iii) a descaracterização da própria função administrativa, com a emergência de uma Administração Pública marcada pelo signo da terceiridade (ao invés da parcialidade) e pela crescente intromissão do Judiciário nos assuntos administrativos, o que, então, banalizaria a própria Administração Pública. Esses três fenômenos – que albergam, com certa extensão, as diretrizes gerencialistas introduzidas no Brasil na década de 1990 – seriam a débâcle do Direito Administrativo.

Contudo, outra perspectiva – que mereceu expressamente nossa adesão – foi apresentada. Por esse horizonte, o gerencialismo implementado no Brasil não se constituiria em um fator de crise para o Direito Administrativo brasileiro: não seria, pois, um caso de crise, mas de plasticidade evolutiva. Essa plasticidade evolutiva poderia, então, ser assim explicada: o gerencialismo traz consigo alguns elementos desviantes da noção clássica de Direito Administrativo, porquanto improváveis. Tais elementos desviantes improváveis tornam-se, justamente com o gerencialismo, prováveis, donde se extrai a evolução. Todavia, essa evolução deu-se sob a pressão dos novos tempos, marcados pela pós-modernidade, no que se pinça a plasticidade. Assim, o gerencialismo – uma engenharia institucional que adequa o aparelho do Estado às necessidades de um capitalismo pós-moderno – é então globalizado, sendo transferido para outros contextos políticos, sociais e econômicos. Mas algo é inequívoco: o gerencialismo deveras altera o perfil do Direito Administrativo clássico. Mas isso não é sinônimo de crise.

Enfim, podemos dizer com a sonoridade devida: o gerencialismo brasileiro da década de 1990 representou uma mudança profunda com os postulados clássicos do Direito Administrativo, sem que se paramentasse, contudo, como crise: ao reverso, trata-se de uma plasticidade evolutiva.

Esperamos, desse modo, ter contribuído para desmistificar, em alguns pontos, o gerencialismo brasileiro. No entanto, novas pesquisas sobre o tema ainda são bem-vindas, principalmente quanto à efetividade da Reforma Administrativa da década de 1990. Mas isso é assunto para outra ocasião.


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6 NOTAS

[1] Manifestação perspícua do patrimonialismo deu-se no início do governo Lula. A esposa do então presidente, Dona Marisa, cultivou, nos jardins do Palácio da Alvorada – residência oficial do Presidente da República –, sálvias vermelhas em formato de estrela, numa alusão nítida ao Partido dos Trabalhadores (PT).

[2] Os gestores do projeto gerencialista brasileiro tacharam a Constituição de 1988 como "retrocesso burocrático" (BRASIL, 1995, p. 20). Como exemplo desse "retrocesso burocrático" tem-se a estabilidade do servidor público.

[3] Percebe-se tal assertiva no contexto pátrio: a nota de rodapé 2 evidencia o patrimonialismo na Administração Pública; a nota 3 consagra a Administração Burocrática. Por seu turno, institutos do gerencialismo foram inseridos na Constituição pela Emenda 19/98, cujo exemplo é o contrato de gestão – art. 37, § 8º.

[4] Perspicaz a observação de Chevallier (2009, p. 86-87): os postulados gerencialistas foram impostos pela OCDE e Banco Mundial aos países em desenvolvimento como forma de lograr recursos financeiros para atenuar desequilíbrios econômicos; já para os países em transição – precipuamente da Europa Oriental – tais postulados foram impostos pela União Européia.

[5] "A proposta de Reforma Administrativa gerencial, mais uma vez, é criada, proposta, posta (e imposta?) pelo próprio Estado sem qualquer participação da sociedade. Como gestação interna do Poder Executivo, a Reforma Administrativa foi vislumbrada sob um único ângulo" (DIAS, 2003, p. 213, grifo nosso).

[6] Seria leviano, pelas transcrições acima, afirmar que as concepções de Alexy e Dworkin são similares. Não o são. Dworkin concede um sentido deontológico para os princípios, de modo que, na colisão de princípios, somente um prevalecerá, em razão de sua maior dimensão de peso; já Alexy concede um sentido teleológico aos princípios, de modo que, na colisão de princípios, todos devem ser considerados pela decisão, denotando-se, portanto, a chamada otimização.

[7] Ora, não se pode vislumbrar a criação ou organização de uma Administração Pública voltada para a ineficiência.

[8] Existe doutrina que distingue a proporcionalidade, a razoabilidade e a ponderação; não entraremos, entretanto, nestes pormenores. Enxergamos os termos, portanto, como similares.

[9] Art. 5º do Tratado da Comunidade Européia: "[...] Nos domínios que não sejam das suas atribuições exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objectivos da acção prevista não possam ser suficientemente realizados pelos Estados-Membros, e possam pois, devido à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário".

[10] A lista indica as empresas federais privatizadas desde o início da década de 90; assim, algumas empresas foram privatizadas antes do Governo Fernando Henrique Cardoso. A lista, com outras informações adicionais, encontra-se no sítio do Ministério do Planejamento, no seguinte endereço: http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/dest/090105_ESTA_Univ_privatizadas.pdf

[11] Interessante observar o quanto as agências reguladoras, modelos americanos amplamente exportados para todo o Ocidente, constituem-se numa espécie de globalização hegemônica do tipo localismo globalizado, conforme o rico léxico de Boaventura de Souza Santos (2006, p. 438).

[12] Celso Antônio Bandeira de Mello (1999, p. 146-154) apresenta severas – e procedentes – críticas ao contrato de gestão.

[13] A Lei 18.975, de 29 de junho de 2010, do Estado de Minas Gerais, institui o padrão remuneratório do subsídio para as carreiras do grupo de atividades de Educação Básica do Poder Executivo Estadual e do pessoal civil da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais.

[14] Vinícius Marins (2010, p. 87) chama essa privatização de orgânica. In verbis: "[privatização orgânica ocorre quando] [...] uma entidade privada é investida do exercício de um poder público, figurando como depositária da responsabilidade pela execução de uma tarefa que a lei confiou à Administração Pública".

[15] Ora, bem lembrou José Maria Boquera Oliver (1963, p. 127), que a personalidade jurídica do Estado é una, ao contrário de sua capacidade, que é dupla: uma atinente ao Direito Público e outra ao Direito Privado.

[16] Sobre a privatização funcional, de uma maneira um pouco distinta daquela apresentada, veja-se o escólio de Vinícius Marins (2010, p. 87): "[a privatização funcional] corresponde a uma mera contribuição dos particulares, com sua capacidade e competência, para a execução de uma função pública pela própria Administração [...]".

[17] Expressão cunhada pela portuguesa Maria João Estorninho, por ocasião de sua tese de doutoramento na Faculdade de Direito de Lisboa.

[18] "A convicção de que existe [uma] competência moral acima da competência técnica é o pressuposto ideal da democracia" (BOBBIO, 2000, p. 424).

[19] "[...] entre adultos, não há ninguém tão inequivocamente mais bem preparado do que outros para governar, a quem se possa confiar a autoridade completa e decisiva no governo do estado" (DAHL, 2001, p. 89).

[20] No Caderno MARE 15, que trata dos avanços da Reforma na Administração Pública, existe menção em transformar o CADE em uma agência executiva, estando, naquela ocasião, na fase de preparação para assinatura do protocolo de intenções (BRASIL, 1998c, p. 89).

[21] Deveras ilustrativo disso é a diminuição da esfera de discricionariedade no direito administrativo, o que se contrapõe às intenções gerencialistas, na medida em que a dilatação da discricionariedade é essencial à eficiência administrativa e, por conseguinte, a um controle de resultados.

[22] Basta lembrar as constantes decisões judiciais que determinam a obrigatoriedade de o SUS fornecer, gratuitamente, remédio de alto custo à população carente, com gravames inequívocos para o orçamento público.

[23] Conforme as palavras do próprio Luhmann (2002, p. 173): "Por consiguiente, la evolución se efectúa cuando se cumplen diferentes condiciones y cuando éstas se acoplan entre sí de manera condicional (= no necesaria), a saber: 1) La variación de un elemento autopoiético respecto de los patrones de reproducción que habían sido, hasta el momento, vigentes. 2) La selección de la estructura que hace posible que dicha variación se constituya en condición de las siguientes reproducciones. 3) La estabilización del sistema, en el sentido de mantenerlo dinámicamente estable para que sea posible la reproducción autopoiética de esa forma (determinada estructuralmente) que ha experimentado mutación".

[24] Note-se que em momento algum no texto se qualificou a evolução provocada pelo gerencialismo no contexto brasileiro como algo positivo – ou negativo; o próprio Luhmann (2002, p. 192) registra que a evolução pode não ser positiva, vez que inexistente uma teleologia da evolução; esta pode ser planificada, mas não determinada.

[25] "Il diritto amministrativo si presenta come un mosaico di contraddizioni. Soggetto per una parte a un veloce cambiamento, è per altre parti l'emblema della stabilità. Tradizionalmente unitario, è diventato pluralista. Figlio dell'accentramento, sopravvive ad un intenso decentramento. Esempio di unilateralismo, ha saputo resistire all'ondata contratualistica. Regno del formalismo, si valle dell'informalità. Ospita nel suo seno nazionalizzazione e privatizzazioni, regolazione e de-regolazione. Figlio dell'interesse nazionale, è però anhe strumento della cooperazione sovrastatale e globale. Subisce allo stesso modo limiti statali e limiti sovrastatali e globali. Tutte queste opposizioni e contraddizioni vivono, come tanti strati sovrapposti e mescolati, secondo il modello dell'"institutional layering’, in una tensione permanente, nel diritto amnistrativo, rendendo difficile afferrarne, in un esame unitario, le molte componenti."

[26] O texto original fala em "sovrastatali", que pode ser vertido em português como "supra-estatais". Contudo, seria um reducionismo tolo dizer "supra-estatais" e "globais" na mesma frase, por serem palavras praticamente sinônimas. Se o autor indicou três palavras, estas só podem ser distintas. Logo, optamos pelo termo "regionais", atinente às limitações impostas pelo direito comum europeu.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARCELOS, Renato de Abreu. Reflexões sobre os impactos do gerencialismo no Direito Administrativo brasileiro. Entre a crise e a plasticidade evolutiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3023, 11 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20206. Acesso em: 18 abr. 2024.