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A democracia e suas dificuldades contemporâneas

A democracia e suas dificuldades contemporâneas

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I - Democracia formal e democracia substancial

1. Independentemente dos desacordos possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde, resulta que Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados.

Sem dúvida esta noção, tal como expendida, maneja também conceitos fluidos ou imprecisos (liberdade, igualdade, deliberações respeitosas destes valores, instituições armadas de maneira a concretizar determinados resultados). Sem embargo, é dela - ou de alguma outra que se ressinta de equivalentes problematizações - que se terá de partir para esboçar uma apresentação sumária de certas relações entre Estado e democracia, algumas das quais são visíveis e outras apenas se vão entremostrando a uma visão prospectiva.

Seja como for - e até mesmo em razão da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noção de democracia - é conveniente distinguir entre Estados formalmente democráticos e Estados substancialmente democráticos, além de Estados em transição para a democracia, tendo-se presente, ainda assim, o caráter aproximativo destas categorizações.

3. Estados apenas formalmente democráticos são os que, inobstante acolham nominalmente em suas Constituições modelos institucionais - hauridos dos países política, econômica e socialmente mais evoluídos - teoricamente aptos a desembocarem em resultados consonantes com os valores democráticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em decorrência de eleições, mediante sufrágio universal, para mandatos temporários; (b) consagrem uma distinção, quando menos material, entre as funções legislativa, executiva e judicial; (c) acolham, em tese, os princípios da legalidade e da independência dos órgãos jurisdicionais, nem por isto, seu arcabouço institucional consegue ultrapassar o caráter de simples fachada, de painel aparatoso, muito distinto da realidade efetiva.

É que carecem das condições objetivas indispensáveis para que o instituído formalmente seja deveras levado ao plano concreto da realidade empírica e cumpra sua razão de existir. BISCARETTI DI RUFFÌA, em frase singela, mas lapidar, anotou que "a democracia exige, para seu funcionamento, um minimum de cultura política", que é precisamente o que falta nos países apenas formalmente democráticos. As instituições que proclamam adotar em suas Cartas Políticas não se viabilizam. Sucumbem ante a irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais dominantes, que as controlam, apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as instituições democráticas em si mesmas, isto é, não lhes devotam real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu funcionamento regular, procuram, em função das próprias conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas ora abertamente quando necessário, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvirtuamentos promovidos pelos governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais bem situadas. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer consciência de cidadania e correspondentes direitos, não oferece resistência espontânea a estas manobras. Ademais, é presa fácil das articulações, mobilizações e aliciamento da opinião pública, quando necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que os segmentos dominantes detêm sobre a "mídia" , que não é senão um de seus braços.

3. É que - como de outra feita o dissemos - as instituições políticas destes países "não resultaram de uma maturação histórica; não são o fruto de conquistas políticas forjadas sob o acicate de reivindicações em que o corpo social (ou os estratos a que mais aproveitariam) nelas estivesse consistentemente engajado; não são, em suma, o resultado de aspirações que hajam genuinamente germinado, crescido e tempestivamente desabrochado no seio da Sociedade".

Pelo contrário, suas instituições jurídico-políticas, de regra, "foram simplesmente adquiridas por importação, tal como se importa uma mercadoria pronta e acabada, supostamente disponível para proveitoso consumo imediato. Nestes Estados recepcionou-se um produto cultural, ou seja, o fruto de um processo evolutivo marcado por uma identidade própria, transplantando-o para um meio completamente distinto e caracterizado por outras circunstâncias e vicissitudes históricas. É dizer: instituições refletoras de uma dada realidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como se fossem irrelevantes as diversidades de solo e de enraizamento" .

4. Em suma: estes padrões de organização política não se impuseram à conta de autêntica resposta a conflitos ou pressões sociais que os tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos porque a elite dirigente de sociedades menos evoluídas, de olhos postos nas mais evoluídas, entendeu que se constituíam em um modelo natural, a ser incorporado como expressão de um desejável estágio civilizatório. Então, não lhes atribuem outra importância senão figurativa. Daí que, não estando cerceadas por uma consciência social democrática e correlata pressão, ou mesmo pelos eventuais entusiasmos de uma "opinião pública", já que as modelam a seu talante, aceitam as instituições democráticas "apenas enquanto não interferentes com os amplos privilégios que conservam ou com a vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores, por detrás de uma máscara democrática, graças, justamente, ao precário estágio de desenvolvimento econômico, político e social de suas respectivas sociedades" .

De outra parte, esta situação inferior em que vivem os Estados apenas formalmente democráticos lhes confere, em todos os planos, um caráter de natural subalternidade em face dos países cêntricos, os quais, compreensivelmente, são os produtores de idéias, de "teorias" políticas ou econômicas, concebidas na conformidade dos respectivos interesses e que se impõem aos subdesenvolvidos, não apenas pelo prestígio da origem, mas também por toda a espécie de pressões. Sendo conveniente aos países desenvolvidos a persistência desta mesma situação, que lhes propicia, em estreita aliança com os segmentos dominantes de tais sociedades, manejar muito mais comodamente os governos dos países "pseudo democráticos" em prol de suas conveniências econômicas e políticas , é natural que existam entraves suplementares para superação deste estágio primário de evolução.

5. Resulta deste quadro que as sociedades de incipiente cultura política para poderem vir a se configurar como Estados democráticos, demandariam mais do que apenas reproduzir em suas Constituições os traços especificadores de tal sistema de governo. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar suas instituições básicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanismos correntes de seu desnaturamento e, de outro - o que ainda seria mais importante - empenhar-se na transformação da realidade social buscando concorrer ativamente para produzir aquele mínimo de cultura política indispensável à prática efetiva da democracia, única forma de superar os entraves viscerais ao seu normal funcionamento.

Uma vez que a democracia se assenta na proclamação e reconhecimento da soberania popular, é indispensável "que os cidadãos tenham não só uma consciência clara, interiorizada e reivindicativa deste título jurídico político que se lhes afirma constitucionalmente reconhecido como direito inalienável, mas que disponham das condições indispensáveis para poderem fazê-lo valer de fato. Entre estas condições estão, não apenas (a) as de desfrutar de um padrão econômico-social acima da mera subsistência (sem o que seria vã qualquer expectativa de que suas preocupações transcendam as da mera rotina da sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso (b) à educação e cultura (para alcançarem ao menos o nível de discernimento político traduzido em consciência real de cidadania) e (c) à informação, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para não serem facilmente manipuláveis pelos detentores dos veículos de comunicação de massa)".

6. Uma vez reconhecido que nos Estados apenas formalmente democráticos o jogo espontâneo das forças sociais e econômicas não produziu, nem produz por si mesmo - ou ao menos não o faz em prazo aceitável - as transformações indispensáveis a uma real vivência democrática, resulta claro que, para eles, os ventos néo-liberais, soprados de países cujos estádios de desenvolvimento são muito superiores, não oferecem as soluções acaso prestantes nestes últimos. Valem, certamente, como advertência contra excessos de intervencionismo estatal ou contra a tentativa infrutífera de fazer do Estado um eficiente protagonista estelar do universo econômico. Sem embargo, nos países que ainda não alcançaram o estágio político cultural requerido para uma prática real da democracia, o Estado tem de ser muito mais que um árbitro de conflitos de interesses individuais.

Cumpre ter presente que acentuadas disparidades econômicas entre as camadas sociais, que já foram superadas em outros países, inclusive mediante ação diligente do Estado, persistem em todos aqueles de insatisfatória realização democrática. Nestes, a péssima qualidade de vida de vastos segmentos da sociedade, bloqueia-lhes o acesso àquele "mínimo de cultura política" a que se reportava BISCARETTI DI RUFFÌA. Assim, seria descabido imaginar que o papel do Estado pode ser o mesmo em quaisquer deles.

7. De fato, para engendrar os requisitos condicionais ao funcionamento normal da democracia ou promover-lhes a expansão, o Estado não tem alternativa senão a de se constituir em um decidido agente transformador, o que supõe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos países que já ultrapassaram esta fase, um desempenho muito mais participante, notadamente no suprimento dos recursos sociais básicos e no desenvolvimento de uma política promotora das camadas mais desfavorecidas.

Na medida em que suas instituições e prática estejam votadas a este efeito transformador, caberia qualificá-los como Estados em transição para a democracia. Entretanto, se, em despeito do formal obséquio que lhe prestem através das correspondentes instituições clássicas, deixarem de consagrar-se à instauração das condições propiciatórias de uma real vivência e consciência de cidadania, não se lhes poderá reconhecer sequer este caráter.

8. Demais disto, contrariamente ao que pode suceder e vem sucedendo nos Estados substancialmente democráticos, naquel´outros que ainda estão em caminho de sê-lo, quaisquer transigências com a rigidez do princípio da legalidade, quaisquer flexibilizações do monopólio legislativo parlamentar, seriam comprometedoras deste rumo.

É que toda concentração de poder no Executivo, assim como qualquer indulgência em relação a suas pretensões normativas, constituem-se em substancial reforço ao autoritarismo tradicional, solidificam uma concepção paternalista do Estado - identificado com a pessoa de um "Chefe" - e alimentam a tendência popular de receber com naturalidade e esperançoso entusiasmo soluções caudilhescas ou messiânicas.

Em uma palavra: atribuir ao Executivo - órgão estruturado em torno de uma chefia unipessoal - poderes para disciplinar relações entre administração e administrados, é, nos países de democracia ainda imatura, comportamento que em nada concorreria para a formação de uma consciência valorizadora da responsabilidade social de cada qual (que é a própria exaltação da cidadania) ou para encarecer a importância básica de instituições impersonalizadas como instrumento de progresso e bem estar de todos. Contrariamente, serviria apenas para reconfirmar a anacrônica relação soberano-súdito .

Assim, em despeito da generalizada tendência mundial de transferir ao Executivo poderes substancialmente legislativos, ora de maneira explícita e sem rebuços, como se fez na França (e logo acomodada pelos téoricos em uma eufêmica reconstrução do princípio da legalidade), ora mediante os mais variados expedientes ou através de acrobáticas interpretações dos textos constitucionais, nos Estados que ainda carecem de uma experiência democrática sólida, a acolhida destas práticas não é compatível com a democracia, ainda que tal fenômeno haja sido suscitado - reconheça-se - por razões objetivas poderosas, tanto que se impuseram generalizadamente.


II - A crise dos instrumentos clássicos da democracia

9. O tópico do fortalecimento do Poder Executivo e correlato declínio do Legislativo, suscita reflexões que concernem genericamente ao tema das relações entre Estado e democracia, extravasando em muito o âmbito das considerações feitas quanto à especificidade de suas repercussões imediatas nos países onde ainda é débil o enraizamento social da democracia.

É sabido que, em despeito da importância atribuível ao Parlamento na história da democracia, importância esta correlata ao declínio do poder monárquico, o Executivo, sucessor do rei, cedo começou a recuperar, em detrimento óbvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da democracia clássica, os poderes normativos que lhe haviam sido retirados . É certo, sem dúvida, que, na presente quadra histórica, poderosas e objetivas razões vêm concorrendo crescentemente para isto.

Desde que o Estado, por força da mudança de concepções políticas, deixou de encarar a realidade social e econômica como um dado, para considerá-la como um objeto de transformação, sua ação intervencionista operada por via da Administração e traduzida não só em aprofundamento, mas sobretudo em alargamento de suas missões tradicionais, provocaria, como tão bem observou ERNST FORSTHOFF, uma insuficiência das técnicas de proteção das liberdades e de controle jurídico, as quais haviam sido desenvolvidas sob o signo do Estado liberal .

Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepções néo-liberais, nem por isto reduzir-se-á a intensificação de um controle do Estado sobre a atividade individual. É que o progressivo cerceamento da liberdade dos indivíduos, tanto como o fortalecimento do Poder Executivo, arrimam-se também em razões independentes das concepções ideológicas sobre as missões reputadas pertinentes ao Estado. Um outro fator, de extrema relevância - o progresso tecnológico - igualmente concorreu e concorre de modo inexorável para estes mesmos efeitos.

10. Deveras, o extraordinário avanço tecnológico ocorrido neste século, a conseqüente complexidade da civilização por ele engendrada e, correlatamente, o caráter cada vez mais técnico das decisões governamentais, aliados à tendência recente da formação de grandes blocos político-econômicos formalizados, quais mega-Estados, conspiram simultaneamente contra o monopólio legislativo parlamentar e, possivelmente, a médio prazo, até mesmo contra as liberdades individuais. Senão, vejamos.

Sabidamente, como resultado da evolução tecnológica, as limitadas energias individuais se expandiram enormemente, com o que ampliou-se a repercussão coletiva da ação de cada qual, dantes modesta e ao depois potencialmente desastrosa (pelo simples fato de exponenciar-se). Em face disto, emergiu como imperativo inafastável uma ação reguladora e fiscalizadora do Estado muito mais extensa e intensa do que no passado. Notoriamente, o "braço tecnológico" propiciou gerar, em escala macroscópica, contaminação do ar, da água, poluição sobre todas as formas, inclusive sonora e visual, devastação do meio ambiente, além de ensejar saturação dos espaços, provocada por um adensamento populacional nos grandes conglomerados urbanos, evento, a um só tempo, impulsionado e tornado exeqüível pelos recursos conferidos pelo avanço tecnológico. Tornou-se, pois, inelutável condicionar e conter a atuação das pessoas físicas e jurídicas dentro de pautas definidas e organizadas, seja para que não se fizessem socialmente predatórias, seja para acomodá-las a termos compatíveis com um convívio humano harmônico e produtivo.

Em suma: como decorrência do progresso tecnológico engendrou-se um novo mundo, um novo sistema de vida e de organização social, consentâneos com esta realidade superveniente. Daí que o Estado, em conseqüência disto, teve que disciplinar os comportamentos individuais e sociais muito mais minuciosa e extensamente do que jamais o fizera, passando a imiscuir-se nos mais variados aspectos da vida individual e social.

Este agigantamento estatal, manifestou-se sobretudo como um agigantamento da Administração, tornada omnipresente e beneficiária de uma concentração de poder decisório que desbalanceou, em seu proveito, os termos do anterior relacionamento entre Legislativo e Executivo. Com efeito, este último, por força de sua estrutura monolítica (chefia unipessoal e organização hierarquizada), é muito mais adaptado para responder com presteza às necessidades diuturnas de governo de uma sociedade que vive em ritmo veloz e cuja eficiência máxima depende disto. Ademais, instrumentado por uma legião de técnicos, dispõe dos meios hábeis para enfrentar questões complexas cada vez mais vinculadas a análises desta natureza e que, além disto, precisam ser formuladas com atenção a aspectos particularizados ante a diversidade dos problemas concretos ou de suas implicações polifacéticas, cujas soluções dependem de análises técnicas - e não apenas políticas.


III - Tentativas de resposta à crise da democracia

11. Estes fatores convulsionantes do quadro clássico da democracia (e não apenas da democracia liberal), suscitaram respostas tendentes, a neutralizar, ao menos parcialmente, os riscos oriundos da transferência de poderes do Legislativo para o Executivo e da maior exposição, individual ou coletiva dos cidadãos, a um progressivo cerceamento das liberdades.

A disseminação do parlamentarismo terá sido, possivelmente, o meio de que as sociedades mais evoluídas lançaram mão, na esfera política, para minimizar as conseqüências do fortalecimento do Executivo. Os Estados Unidos da América do Norte constituem-se em exceção confirmadora da regra. Com efeito, ainda dentro dos quadros tradicionais de organização política, não havendo irrompido outras fórmulas de estruturação democrática do Poder e ante a presumida impossibilidade de deter utilmente a aludida transferência de atribuições do Legislativo para o Executivo, a solução terá sido transformar este último em delegado daquele. Ou seja: se o Executivo, armado agora de formidáveis poderes, atuar descomedidamente, em descompasso com o sentimento geral da coletividade, é simplesmente derrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento, acima de tudo, em um organismo dotado do mais formidável poder de veto: o veto geral; portanto, uma inversão radical, do modesto e provisório poder de veto típico do Executivo.

Na esfera administrativa, ganha relevo crescente o procedimento administrativo, obrigando-se a Administração a formalizar cuidadosamente todo o itinerário que conduz ao processo decisório. Passou-se a falar na "jurisdicionalização" do procedimento administrativo, (ou processo, como mais adequadamente o denominam outros), com a ampliação crescente da participação do administrado no "iter" preparatório das decisões que possam afetá-lo. Em suma: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do "modus procedendi" da Administração.

Outrossim, no âmbito processual, mas com as mesmas preocupações substanciais de defesa dos membros da Sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteção dos chamados "interesses difusos" ou "direitos difusos", os quais, em última instância, ao nosso ver, não passam, quando menos em grande número de casos, de uma dimensão óbvia dos simples direitos subjetivos. De fato, não há sentido algum em conceber estes últimos com visão acanhada, presa à relações muito típicas do direito privado, inobstante categorizado como noção pertinente à teoria geral do direito.


IV - Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos

12. Os valiosos expedientes a que se vem de aludir, minimizaram, mas não elidiram, a debilitação dos indivíduos perante o Estado, assim como o enfraquecimento da interação entre os cidadão e o Poder Público.

O certo é que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente invasivos de todos os campos (nada importando quanto a isto que hajam sido autorizados expressamente ou resultem da generalidade das expressões legais que os ensejam), há diferenças extremamente significativas que, no caso dos regulamentos, repercutem desfavoravelmente tanto no controle do poder estatal, quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas facções sociais. Estas diferenças, a seguir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade também encontradiças nos regulamentos.

13. Deveras, as leis provêm de um órgão colegial - o Parlamento - no qual se congregam várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este órgão do Poder se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica, termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei, são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento.

Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à média do pensamento social predominante muito maior do que ocorre quando as normas produzidas correspondem à simples expressão unitária da vontade comandante do Executivo, ainda que este também seja representativo de uma das facções sociais, a majoritária. É que, afinal, como bem observou KELSEN, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma pluralidade de grupos, inclusive de minorias, é mais democrático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no caso do Parlamentarismo, como fruto da vitória eleitoral de um partido. Daí que os regulamentos traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente ou das coalizões partidárias prevalentes.

14. Além disto, o próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores.

É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tempestivas alterações e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas, quanto propósitos de favorecimento ou, reversamente, tratamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos. Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconveniências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual.

15. Já os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, ensancham as mazelas que resultariam da falta deles. Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em círculo restrito, fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, então, de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz em função da diretriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto por seus membros. Não necessita passar, portanto, pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim também pode ser alterado ou suprimido.

Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer - e com muito maior razão - das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é, descompasso flagrante com seus pressupostos constitucionais e com a teratológica reiteração delas.


V - Possível agravamento da crise da democracia

16. Ao que foi dito cumpre acrescer - e é este possivelmente o aspecto mais importante - que, na atualidade, está ocorrendo um distanciamento cada vez maior entre os cidadãos e as instâncias decisórias que lhes afetam diretamente a vida. A claríssima tendência à formação de blocos de Estados, de que a Europa é a mais evidente demonstração, por exibir um estágio qualitativamente distinto das ainda prodrômicas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de fórmulas políticas organizatórias muito distintas das que vigoraram no período imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento, quase que inevitável entre o cidadão e o Poder. Com efeito, as decisões tomadas pelos Conselhos de Ministros Europeus (os quais não são investidos por eleições para este fim específico) possivelmente afetam de maneira mais profunda a vida de cada europeu do que as tomadas pelos respectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelos que receberam mandato expresso para lhes regerem os comportamentos (O chamado "Parlamento Europeu", distintamente do que o nome sugere não é um órgão legislativo).

Procederia concluir que um número cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um número cada vez maior delas e que os modelos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou assegurar a democracia, estão se esgarçando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institucionais da democracia representativa) encontram-se, hoje, provavelmente, muito mais resguardados enquanto valores incorporados à cultura política do ocidente desenvolvido, do que, propriamente, pela eficiência dos vínculos formais das instituições jurídico-políticas. Dito de outro modo: a convicção generalizada de que liberdade e igualdade são bens inestimáveis atua como um freio natural sobre os governantes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda incólume, conquanto as instituições concebidas para assegurá-los já não possuam mais as mesmas condições de eficácia instrumental que possuíram.

Para usar uma imagem exacerbada, é como se já houvesse se iniciado uma caminhada em direção a um "despotismo esclarecido".

17. Poder-se-ia entender que os valores próprios da democracia encontram-se tão profundamente enraizados na consciência coletiva de sociedades politicamente mais evoluídas que se constituiriam em estágio já definitivamente incorporado, tornando impensável a possibilidade de qualquer retrocesso, independentemente da intrínseca eficiência das instituições concebidas para lhes oferecer o máximo de respaldo.

Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposição. Ainda permanece verdadeira a clássica asserção de MONTESQUIEU: "todo aquele que tem poder tende a abusar dele; o poder vai até onde encontra limites" . A História da humanidade, inobstante a progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito recentes, que a prevalência de idéias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as situações coletivas de bem estar e segurança. E duram tanto quanto duram estas.

18. No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns à generalidade da esfera animal. Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo temor, também as coletividades humanas, quando ameaçadas pela presumida insegurança ou pelo risco ao seu bem estar, substituem suas convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já agora especificamente humanas) racionalizações e atacam com zoológica violência. Surtos de racismo, de rechaço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerbado, de inconformismo com as levas migratórias advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposição política, econômica ou social de outras sociedades - quaisquer deles já prenunciados nas tendências de grupos políticos ou sociais em algumas sociedades européias - tanto como o recente e devastador consórcio bélico dos principais Estados desenvolvidos contra um país árabe, o Iraque (cujo ditador, quanto a isto, em nada é diferente dos demais, distinguindo-se deles apenas em que se revela mais resistente aos interesses das grandes potências e mais preocupado na defesa dos pertinentes ao próprio País), demonstram exemplarmente a precariedade das idéias que não se encontrem alicerçadas, simultaneamente, em interesses e em instituições formais hábeis para mantê-las consolidadas.

À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilidades dos países subdesenvolvidos acederem às condições propiciatórias de uma democracia substancial. É que os subdesenvolvidos têm sido e são, naturalmente, meros piões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por definição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as peças.


VI- Globalização e neo-liberalismo: novos obstáculos à democracia

19. Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores substancialmente democráticos, como igualdade real e não apenas formal, segurança social, respeito à dignidade humana, valorização do trabalho, justiça social (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988), ficarão cada vez mais distantes à medida em que os Governos dos países subdesenvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de desenvolvimento - em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos - se entreguem incondicionalmente à sedução do canto de sereia proclamador das excelências de um desenfreado néo-liberalismo e de pretensas imposições de uma idolatrada economia global. Embevecidos narcisisticamente com a própria "modernidade", surdos ao clamor de uma população de miseráveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico monocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos interessados.

20. Diga-se de passagem que é incorreta a suposição de que tanto a chamada "globalização da economia" (com as feições que, indevidamente, se lhe quer atribuir como inerências), quanto o "neo-liberalismo", constituam-se simplesmente em um estágio evolutivo determinado tão só por transformações econômicas inevitáveis e, conseqüentemente, que encampá-las nada mais significa senão adotar uma atitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que há de incoercível no desenvolvimento histórico. Esta forma de "interpretar" o fenômeno presente é - como freqüentemente ocorre - apenas uma forma astuciosa de valorizar o próprio ideário e de desacreditar, por antecipação, as contestações que se lhes possam fazer. É que traz consigo, implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham, como ultrapassados ("dinossauros").

Em rigor, elas nada mais são que "teorizações" pobres, racionalizações, elaboradas para justificar interesses meramente políticos - e destarte contendíveis - dos países cêntricos e das camadas economicamente privilegiadas, em cujo bojo e proveito foram gestadas. Com efeito, o modesto acervo de idéias atualmente difundidas "sub color" de verdade científica universal nada mais é que o uso de nomenclaturas novas encobridoras de experiências velhas, destinadas a consagrar um simples movimento de retorno, quando menos parcial, ao século passado, ao "statu quo" precedente à emergência do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providência.

21. Relembremos que a partir de meados do século XIX e sobretudo no início do atual irrompeu e expandiu-se um movimento de inconformismo das camadas sociais mais desfavorecidas cujas condições de vida, como é notório, eram extremamente difíceis. Fazendo eco a tais eventos, eclodiram, no campo das idéias e sucessivamente das realizações políticas, manifestações, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes - comunismo e social democracia - insurgentes ambas contra o quadro político social da época.

O manifesto comunista (1848) e assim também ulteriormente Encíclicas papais ("Rerum Novarum", 1891, "Quadragesimo Ano", 1931) são expressivas de uma visão então crítica e renovadora. Os resultados concretos deste panorama de insurgência, em suas duas vertentes, foram, respectivamente, de um lado, a Revolução Comunista de 1917 e implantação de tal regime na Rússia e, de outro a expansão da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os "Direitos Sociais", na Constituição Mexicana, também de 1917 e ao depois na Constituição alemã, de Weimar, em 1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocupação em fazer do Estado um agente de melhoria das condições das camadas sociais mais desprotegidas expande-se ao longo de todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social de Direito ou Estado Providência. De outra parte, o regime comunista, ano a ano se alastrava, implantando-se em novos países. Paralelamente, o colonialismo e seu sucessor, o imperialismo das grandes potências do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas contínua, afligido também por censuras crescentes ao excessivo desequilíbrio entre as nações (Encíclicas "Mater er Magistra", 1961, "Pacem in Terris", 1963 e "Populorum Progressio", 1967).

22. Foi, desde o início, o temor de que se expandisse a concepção comunista - radicalmente antitética à sobrevivência do capitalismo - com sua capacidade de atrair as massas insatisfeitas, ou quando menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessário combustível para a implantação e disseminação do Estado Social de Direito. Com efeito, a História não registra gestos coletivos de generosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja pródiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio do comunismo propiciou a irrupção do Estado Providência, sua falência na União Soviética e no Leste Europeu - e sinais precursores de seu declínio no Extremo Oriente - está a lhe determinar o fim.

23. A simples cronologia dos eventos e das correlatas idéias o demonstram de modo incontendível. O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora "recautchutadas" com o rótulo de "néo", propondo liminarmente a eliminação ou sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente técnica de "globalização". Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interesse dos países dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente, empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes.

No momento, parece que não há mais núcleo algum capaz de contender esta rebarbativa unaninimidade que se auto lisonjeia com o qualificativo de moderna, categorizando como ultrapassados quaisquer que ainda não hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamente. A bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a implosão da União Soviética), com o confronto de idéias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagônicas, ensejava, além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natural convite à crítica de ambas, na trilha da síntese resultante de tal dialética. A momentânea ausência das condições objetivas para um debate consistente possivelmente é, para os países subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milênio e um dos maiores obstáculos a que venham, finalmente, a abicar em regimes efetivamente democráticos.


Autor

  • Celso Antônio Bandeira de Mello

    Celso Antônio Bandeira de Mello

    professor titular de Direito Administrativo da PUC/SP, professor honorário da Universidade de Mendoza (Argentina), do Colegio Mayor de Rosario (Colômbia), membro correspondente da Associação Argentina de Direito Administrativo, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e do Instituto de Direito Administrativo Paulista (IDAP), membro do Instituto Internacional de Derecho Administrativo Latino, ex-conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, membro remido da Associação de Advogados de São Paulo, diretor da Revista Trimestral de Direito Público, autor de diversas obras sobre Direito Administrativo

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2290. Acesso em: 19 abr. 2024.