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Da patrimonialidade (ou não) das obrigações.

Importante debate que transcende ao Direito Civil

Da patrimonialidade (ou não) das obrigações. Importante debate que transcende ao Direito Civil

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A patrimonialidade da obrigação, num primeiro sentido, alude à exigência de que a prestação debitória revista natureza econômica, suscetível de avaliação pecuniária. Num segundo sentido, moderno, significa que o inadimplemento só confere ao credor a possibilidade de agir contra o patrimônio do devedor e não contra sua pessoa.

1. O Direito das Obrigações e suas possíveis definições

Sendo uma das partes mais relevantes do Direito Civil, o Direito das Obrigações caracteriza-se como a sistematização de um conjunto de noções, princípios e regras relativas aos vínculos jurídicos, de natureza patrimonial, que se forma entre sujeitos determinados para a satisfação de interesses tutelados pela lei (GOMES, 2007).

Perceba aí que um dos aspectos característicos da definição de Orlando Gomes consiste na natureza patrimonial das obrigações. Porém, nem todos os doutrinadores pensam exatamente dessa forma, e a verificação do debate acerca da patrimonialidade nas obrigações será prontamente o objeto a ser abordado neste breve artigo. Já que o nosso novo Código Civil (de 2002) não apresenta uma definição para a terminologia obrigação, tendo, portanto, o legislador se abdicado de tal definição, fica aberta à intuição doutrinária a realização dessa função.

Surgem, assim, várias outras definições, como nos conta Venosa (2007), bem diferentes da clássica definição das Institutas de Justiniano, a qual dizia “a obrigação é um vínculo jurídico que nos obriga a pagar alguma coisas, ou seja, a fazer ou deixar de fazer ou deixar de fazer alguma coisa” (VENOSA, 2007, p. 04). Afinal, embora brilhante e concisa essa definição, ela se presta a todo tipo de obrigação jurídica, e não somente ao sentido restrito do Direito das Obrigações, como ele deve ser pensado no moderno Direito das Obrigações.

É assim que Venosa (2007) cita, por exemplo, a definição de Clóvis Beviláquia, a qual diz o seguinte:

“Obrigação é a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão” (BEVILÁQUIA apud VENOSA, 2007, p. 05).


2. A presença da patrimonialidade no Direito das Obrigações

Resulta da vinculação da obrigação à questão patrimonial uma grande influência do Direito das Obrigações na vida econômica, uma vez que regula relações da infra-estrutura social, dentre as quais se destacam especialmente as relações de produção e de troca. Dessa maneira, é através de relações obrigacionais que se estrutura o regime econômico, sob formas definidas de atividade produtiva e permuta de bens. Nesse sentido, o Direito das Obrigações retrata a estrutura econômica da sociedade (GOMES, 2007).

A doutrina clássica considera o caráter patrimonial como elemento do conceito de obrigação. Esta patrimonialidade, no entanto, admite um duplo entendimento. Num primeiro sentido, alude à exigência de que a prestação debitória revista necessariamente natureza econômica, que se mostre suscetível de avaliação pecuniária. Já num segundo sentido, a patrimonialidade da obrigação significa que, no direito moderno, ao contrário dos sistemas antigos, o inadimplemento só confere ao credor a possibilidade de agir contra o patrimônio do devedor e não contra sua pessoa (COSTA, 2006).

É assim que Mário Júlio de Almeida Costa (2006) olha para a história das obrigações. Observa que no direito romano da época arcaica o corpo da pessoa era usado como garantia e como punição ao descumprimento das obrigações, sendo que com o passar do tempo, a punição ao indivíduo, sua escravidão ou castigo físico foi dando lugar a novas formas de coação do cumprimento das obrigações. No direito moderno, o vínculo de obrigação passou a constituir uma relação muito mais forte entre patrimônios do que entre pessoas determinadas, no sentido de que o crédito e a dívida podem inclusive ser transmissíveis.

Daí Mário Júlio concluir sobre dois posicionamentos opostos: Quanto à primeira acepção – a exigência de que a prestação debitória possua valor econômico, sendo avaliável em dinheiro – mostra-se inexato integrar a patrimonialidade no conceito de obrigação, embora a maior parte dos vínculos obrigacionais que se constitui revista essa natureza. Já quanto à segunda acepção, a característica da patrimonialidade se revelaria pertinente, querendo-se com ela significar que a execução, em caso de incumprimento, não incide sobre a pessoa do obrigado, mas exclusivamente sobre os seus bens.


3. O debate acerca da patrimonialidade (ou não) da prestação

A discussão sobre a patrimonialidade tem como um dos seus principais requisitos a prestação, sendo o objeto imediato do devedor destinado a satisfazer o interesse do credor (GOMES, 2007). Ou seja, está ligado ao fato de que a prestação deve ser economicamente apreciável. E este seria um fator de diferenciação da obrigação em relação a outros deveres reconhecidos nos demais ramos do Direito (CALIXTO, 2005).

Comungam desta visão, por exemplo, autores como Caio Mário da Silva Pereira. À objeção de que a exigência da patrimonialidade da prestação afastaria do domínio do Direito das Obrigações a reparação das violações a direitos não-patrimoniais – a reparação do dano moral, por exemplo – contrapôs-se a afirmação de que o interesse do credor pode não ser patrimonial, mas a prestação, ao contrário, sempre apresentará esse aspecto. Aqui figura, portanto, o argumento da maior parte da doutrina, que conta, além de Caio Mário, com autores como Sílvio Rodrigues, Carlos Roberto Gonçalves, Carvalho Santos, Clóvis Beviláquia, dentre outros.

Ainda segundo Calixto (2005), essa também é a visão que aparece na doutrina italiana, visto que ela prevaleceu no artigo 1.174 do Código Civil Italiano de 1942, que afirma “A prestação que forma objeto da obrigação deve ser suscetível de valoração econômica e deve corresponder a um interesse, ainda que não patrimonial, do credor” (CALIXTO, 2005, p. 11).

Entretanto, esta visão também pode ser contestada, sob o argumento de que atualmente o direito prevê outras formas de reparação dos danos que não a simples condenação a uma reparação pecuniária. Seria exemplo do caso de execução específica da obrigação ou do caso de retratação pública de uma afirmação que tenha afetado a honra de outra pessoa. Nestes casos o que deve ser observado é se o interesse do credor é digno de tutela pelo ordenamento, pois, do contrário, de obrigação não se tratará.

Monteiro (2003) aponta que o autor precursor deste pensamento no Brasil foi Pontes de Miranda. Nesse sentido, dizia Pontes de Miranda: “A patrimonialidade constitui o caráter específico da obrigação. Através desse elemento, distingue-se a obrigação, no sentido técnico, dos deveres de outra natureza, morais, religiosos, sociais e até jurídicos de índole diversa” (MIRANDA apud MONTEIRO, 2003, p. 39).

Também Fernando Noronha segue essa doutrina, para quem apenas nas obrigações oriundas de um enriquecimento sem causa, a prestação terá necessariamente natureza patrimonial. Com isso, citando as próprias palavras de Fernando Noronha “a restituição tem por objeto um valor que está a mais um certo patrimônio, quando segundo a ordenação jurídica dos bens deveria pertencer a outro” (NORONHA apud CALIXTO, 2005, p. 12).

Assim, Noronha menciona como exemplos de possíveis formas de reparação não pecuniária, sentença que condene lesão à honra, além da divulgação pela imprensa de identidade do autor de obra intelectual, quando alguém houver se utilizado desta sem indicar o verdadeiro autor (CALIXTO, 2005).

Ainda segundo Marcelo Calixto, essa visão também obteve consagração legislativa no Código Civil Português de 1966, em vigor, já que o art. 398, número 2, diz que a prestação não necessita ter valor pecuniário, mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de proteção legal.

Já segundo Pereira (2005), em prol da patrimonialidade da prestação, ocorrem duas ordens de argumentos. O primeiro seria o de que, mesmo no caso de se não fixar um valor para o objeto, a lei o admite implícito, tanto que converte em equivalente pecuniário aquele a que o devedor culposamente falta, ainda que não tenham as partes cogitado do seu caráter econômico originário, e isto tanto nas obrigações de dar, como nas de fazer. Isso demonstraria a patrimonialidade do objeto como ínsita em toda obrigação. Por outro lado, como argumento contrário, Caio Mário aponta a invocação que é feita a questão relativa à reparação do dano moral, num raciocínio de que se o Direito moderno o admite é porque reconhece a desnecessidade do caráter pecuniário do objeto.

Como já apontado, Caio Mário entende que nada tem a ver com o problema a interferência da indenização do dano moral. Acredita que esta leva em conta a existência de um ilícito que não fere o patrimônio da vítima, mas nem por isso lhe deve ser indiferente o seu direito, que destarte impõe ao agente o dever de ressarcimento pecuniário, sem se preocupar com a equivalência entre o valor da prestação e a qualidade do bem jurídico ofendido (PEREIRA, 2005).

Discordando de Caio Mário, uma das posições de considerável destaque é a de Sílvio de Salvo Venosa. Como destaca o próprio Venosa (2007), embora a maioria das obrigações possua conteúdo imediatamente patrimonial, como comprar, vender, alugar, doar, etc., há prestações em que esse conteúdo não é facilmente perceptível ou mesmo não existe. Não se deve confundir a obrigação, no sentido técnico, com certos deveres que escapam a tal conceito, como a obrigação de servir às Forças Armadas, por exemplo. Se a obrigação no sentido estrito, no entanto, apresentar apenas conteúdo de ordem moral, se a efetivação da prestação for coercível, não haverá dúvidas de que nessa coercibilidade residirá no campo patrimonial do instituto, ainda que de forma indireta.

Ainda segundo Sílvio Venosa, entende-se que igualmente nas obrigações em que se ressalta o conteúdo moral, seu descumprimento também é passível de coerção, de outro modo não seria jurídico. Assim, se o cumprimento da obrigação for impossível ou inconveniente, no campo do descumprimento da obrigação, e como em todas as situações, o denominador comum será indenização por perdas e danos. Com isso, apenas nessa última fase surgirá um conteúdo patrimonial, mas já num momento em que a obrigação deixou de ser cumprida. Como diz: “A indenização, aí como nas outras situações, não equivale à obrigação, mas trata-se de um substituto do cumprimento, ou seja, a tentativa mais perfeita que o Direito tem para reequilibrar uma relação jurídica” (VENOSA, 2007, p. 18).

Dessa maneira, Venosa aponta que é na execução que ressaltará o aspecto pecuniário e patrimonial da prestação, quando inexiste no bojo do cumprimento espontâneo da obrigação. E menciona Antunes Varela, outro autor que vai de encontro com a patrimonialidade da prestação, para quem a razão pela qual muitos autores insistem na necessidade do caráter patrimonial da prestação é uma pura consideração de ordem prática.


Considerações finais

O debate a respeito dessa temática, como se vê, é extenso e mobiliza parte relevante da doutrina contemporânea, o que é fruto de uma visão do Direito das Obrigações como algo bastante dinâmico e em constante processo de modificações. É exatamente essa dinâmica do processo presente no Direito das Obrigações, os quais ocorrem no plano real da vida, que tem permitido a dinâmica também no plano teórico acerca destes fenômenos, suscitando assim, visões contrastantes na doutrina.


Bibliografia consultada

CALIXTO, Marcelo Junqueira. Reflexões em Torno do Conceito de Obrigação, seus Elementos e suas Fontes. In: Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 9.ed. Almedina Editora, 2006.

GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações. 32.ed. Saraiva, 2003.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2007.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Da patrimonialidade (ou não) das obrigações. Importante debate que transcende ao Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3459, 20 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23272. Acesso em: 23 abr. 2024.