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O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir

O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir

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Analisa-se o indivíduo como sujeito do Direito Internacional Penal, com base no caso de Omar Al-Bashir. Como pode o indivíduo ser vinculado e responsabilizado com base nesse ramo do direito?

Resumo: O debate sobre a subjetividade jurídica do indivíduo no âmbito do Direito Internacional é relevante especialmente quando se trata de questões de Direitos Humanos e de Direito Internacional Penal. Com foco neste segundo ramo do direito, este trabalho objetiva analisar a questão do indivíduo como sujeito de Direito Internacional Penal, utilizando-se, como paradigma, o caso de Omar Al-Bashir. Para isto, na primeira parte discorreu-se sobre os sujeitos de Direito Internacional e apresentou-se o debate sobre a subjetividade internacional do indivíduo. No segundo capítulo foi apresentado um histórico da justiça internacional penal, bem como alguns aspectos destacados sobre o Tribunal Penal Internacional. Por fim, no terceiro capítulo é analisada a situação do indivíduo no âmbito do Direito Internacional Penal, com base no caso Al-Bashir, presidente do Sudão, país não-signatário do Estatuto de Roma. Para isto, fez-se a contextualização da situação do Sudão e dos crimes imputados a Al-Bashir e depois apresentaram-se as reflexões sobre o tema: a natureza de jus cogens dos crimes internacionais e a possibilidade de aplicação do princípio da jurisdição universal; a natureza das normas do Estatuto de Roma, se seriam substantivas ou jurisdicionais; e, a diferenciação da responsabilidade coletiva da responsabilidade individual no âmbito do Direito Internacional. Analisou-se então o caso concreto e verificou-se que a vinculação de Al-Bashir ao Direito Internacional Penal se dá devido à natureza de jus cogens das normas relativas aos crimes internacionais e ele imputados, bem como que a legitimação da jurisdição do TPI sobre ele ocorre por conta dos poderes outorgados pela Carta da ONU ao Conselho de Segurança. Ainda, constatou-se que o Estatuto deve ser entendido como norma jurisdicional para que possa ser aplicado ao caso do Sudão sem ofensa ao princípio nullum crimen sine lege e que a possibilidade da responsabilização individual, inclusive de Chefes de Estado, pela justiça internacional, demonstra-se uma evolução nesse âmbito jurídico. Concluiu-se, finalmente, que o indivíduo, por mais que não esteja diretamente vinculado a um tratado internacional, está vinculado a esta esfera jurídica, podendo ser punido, qualquer que seja a sua posição, individualmente, pelas violações que praticar.

Palavras-chave: Direito Internacional Penal; Sujeitos de Direito; Indivíduo; Tribunal Penal Internacional; Omar Al-Bashir.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL. 1.1 A SUBJETIVIDADE JURÍDICA. 1.2 OS SUJEITOS TRADICIONAIS DO DIREITO INTERNACIONAL. 1.2.1 O Estado. 1.2.2 As Organizações Internacionais. 1.3 OUTROS SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL. 1.4 O INDIVÍDUO. 2 CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA INTERNACIONAL PENAL. 2.1 PRIMEIRAS TENTATIVAS E A II GUERRA MUNDIAL. 2.1.1 O Tribunal Internacional Militar de Nuremberg. 2.1.2 O Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. 2.2 OS TRIBUNAIS AD HOC PARA EX-IUGOSLÁVIA E RUANDA. 2.2.1 Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia. 2.2.2 Tribunal Penal Internacional para Ruanda. 2.3 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. 2.3.1 Aspectos destacados do Tribunal Penal Internacional. 2.3.3 Casos em andamento perante o Tribunal Penal Internacional. 3 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL: O CASO OMAR AL-BASHIR. 3.1 A SITUAÇÃO DO SUDÃO. 3.1.2 As investigações e o processo contra Omar Al-Bashir. 3.2 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL. 3.2.1 Jus cogens e jurisdição universal. 3.2.2 Estatuto de Roma: norma substantiva ou jurisdicional?. 3.2.3 Responsabilidade Coletiva x Responsabilidade Individual. 3.3 OMAR AL-BASHIR E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O Direito Internacional[1] é também chamado de Direito das Gentes. Esta terminologia vem da expressão latina Jus Gentium, que quer dizer ‘direito dos povos’ e se referia as normas aplicadas aos estrangeiros em Roma. Já a primeira expressão, mais moderna, terminologicamente que dizer ‘direito entre nações’. Atualmente ambas são usadas como sinônimos, e este ramo do direito foi consagrados como sendo aquele que rege as relações entre os Estados. Muito embora até pouco tempo o Estado tenha sido considerado o único sujeito de Direito Internacional por grande parte da doutrina, sempre existiram estudiosos que advogam que a natureza do Jus Gentium não é a de reger as relações entre os Estados, mas sim dos indivíduos, como qualquer outro Direito, pois são eles que formam as sociedades e os Estados.[2]

A posição do indivíduo nas relações jurídicas internacionais é um debate antigo. Todavia, com o fortalecimento dos sistemas de proteção dos direitos humanos e com a instalação de tribunais internacionais penais essa questão ganhou relevo. Não se pode mais negar que, atualmente, os indivíduos têm acesso às instâncias jurídicas internacionais, direta ou indiretamente, e podem demandar e serem demandados perante essas cortes. Por outro lado, muitas dúvidas ainda surgem sobre a relação dos indivíduos com o Direito Internacional, especialmente no âmbito do Direito Internacional Penal.

As relações entre os indivíduos e o Direito Internacional se dão em dois domínios: dos direito humanos, como sujeito ativo, e do Direito Internacional Penal, como sujeito passivo. Como as controvérsias em torno de ambos os campos são extensas, neste trabalho optou-se por enfocar o tema sob a ótica do Direito Internacional Penal. Nesse sentido, objetiva-se analisar a questão do indivíduo como sujeito de Direito Internacional Penal, utilizando-se, como paradigma, o caso de Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, que está sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional. A questão a ser respondida por este trabalho é: com base no caso Omar Al-Bashir, como o indivíduo pode ser vinculado e responsabilizado criminalmente pelo Direito Internacional Penal? Para respondê-la, efetuou-se um trabalho de pesquisa bibliográfica e análise documental e escolheu-se o indutivo como método de abordagem para o desenvolvimento da pesquisa, tendo-se optado por dividir o trabalho em três capítulos.

No primeiro capítulo são apresentados os elementos e características dos sujeitos de Direito Internacional para que, na terceira parte do trabalho possa ser feita análise com base nos elementos apresentados. Para isso, primeiramente é feita uma breve explicação do que a doutrina entende como sujeito de direito e sujeito de Direito Internacional. Em seguida são apresentados os principais sujeitos do Direito Internacional, quais sejam os Estados e as Organizações Internacionais e explicadas as suas principais características de forma a poder identificá-los como sujeitos de Direito Internacional. Na sequência são elencados alguns outros sujeitos e dada uma breve explicação sobre as razões de serem ou não considerados como tais pelos estudiosos. Encerrando o capítulo, são apresentados os debates a respeito da subjetividade jurídica do indivíduo no âmbito do Direito Internacional e a diferenciação da sua posição no campo dos direitos humanos e do Direito Internacional Penal.

Por sua vez, no capítulo dois, é apresentado um histórico da justiça internacional penal, de forma a permitir uma maior compreensão do ramo do direito escolhido para este estudo e a posição do indivíduo neste âmbito. Deste modo, em um primeiro momento são descritas as primeiras tentativas de instituição de uma justiça internacional penal e a concretização desta após a Segunda Guerra Mundial, com a instalação e funcionamento do Tribunal Internacional Militar de Nuremberg e, nos mesmos moldes, um pouco depois, do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. Depois disso, é tratado o renascimento da justiça internacional penal, já na década de 1990, por meio de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que instituíram os Tribunais Penais Internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda. Finalmente é descrito como foi o processo de planejamento e instituição do Tribunal Penal Internacional permanente, e apresentado os principais aspectos do Estatuto de Roma, que é o tratado constitutivo desta corte.

Na última parte é apresentado um breve histórico da situação no Sudão para contextualizar os fatos pelos quais Omar Al-Bashir está sendo acusado, bem como um resumo destes e do andamento das investigações. Enfim, na sequência é feita a análise da posição do indivíduo perante a justiça internacional penal, utilizando-se como paradigma o caso do Presidente do Sudão e enfocando em três problemáticas principais: a natureza de jus cogens dos crimes internacionais e o debate sobre a jurisdição universal sobre eles; a vinculação do indivíduo ao Estatuto de Roma, especialmente em casos que, como o escolhido, o Estado onde ocorrem os crimes, bem como da nacionalidade dos acusados e das vítimas, não aceitou a jurisdição do Tribunal; e, a diferenciação da responsabilidade do Estado e dos indivíduos, mesmo quando estes, como Al-Bashir, são autoridades – no caso, chefe de Estado – que apresentam como justificativa para a sua conduta a defesa da soberania e das instituições do seu país.

O tema que aqui se propõe estudar é ainda pouco abordado na maior parte da doutrina, especialmente brasileira, e demonstra potencial para aprofundamento em pesquisas posteriores. Ademais, o Direito Internacional Penal ganhou importância e espaço na academia nos últimos anos, especialmente após a instalação do Tribunal Penal Internacional, que seu deu apenas no ano de 2002. Assim sendo, vários debates têm surgido que não apresentam ainda respostas definitivas ou opiniões majoritárias na doutrina, nem mesmo consolidação de posição por meio de uma jurisprudência internacional, tendo em visto o curto período que o Tribunal está funcionando. Desta forma, este trabalho visa contribuir com as pesquisas da área, bem como, juntamente com outros trabalhos já feitos, servir de base para trabalhos futuros sobre esta e outra temáticas relacionadas tanto ao indivíduo no âmbito do direito internacional, quanto à justiça internacional penal.


1 SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL

No Direito Internacional não existe um documento que diga quem é, ou quem pode ser, considerado sujeito de Direito Internacional. Não há tampouco unanimidade entre os estudiosos sobre o tema. Todavia, existe uma convergência nas últimas décadas no sentido do reconhecimento da personalidade jurídica de outros sujeitos que não apenas os Estados e as Organizações Internacionais, sobre os quais já se consolidou tal entendimento pela doutrina tradicional.

Existe certo consenso na doutrina de que um sujeito de direito é aquele que é titular de direitos e pode contrair obrigações. No âmbito internacional, todavia, ainda existem autores que afirmam que a capacidade postulatória também é uma característica essencial para a caracterização dos sujeitos de Direito. Atualmente é inegável que os Estados e as Organizações Internacionais são os entes que possuem estes requisitos, os primeiros de forma mais ampla e completa ainda que os segundos. Todavia, existem coletividades que, com algumas peculiaridades, também partilham desse status no âmbito do Direito Internacional, muito embora suas capacidades estejam restringidas pelo próprio Direito Internacional, como as comunidades beligerantes ou a Santa Sé.

Entre estes sujeitos com capacidades restritas, encontra-se o indivíduo, o qual, para alguns, sequer pode ser considerado sujeito de Direito Internacional. Atualmente diversas normas internacionais visam à proteção do indivíduo, bem como criam a obrigação de que se abstenha de determinadas condutas. No primeiro caso incluem-se especialmente as normas de Direitos Humanos, sendo que, quando violadas, pode o particular apresentar reclamação diretamente em algumas instâncias judiciais internacionais. Já no segundo caso se incluem as normas dos chamados crimes internacionais, os quais, atualmente, podem ser investigados e julgados pela justiça internacional penal.

Desta forma, este capítulo visa apresentar os elementos e características dos sujeitos de Direito Internacional. Para isso, primeiramente são apresentados os conceitos de sujeito de direito e sujeito de direito internacional. Em seguida, discorre-se brevemente sobre os sujeitos amplamente reconhecidos do Direito Internacional – o Estado e as Organizações Internacionais – e, logo após, sobre os que ainda buscam este reconhecimento. Ao final, é apresentado o debate que gira em torno da subjetividade internacional do indivíduo.

1.1 A SUBJETIVIDADE JURÍDICA

Para a formação de uma relação jurídica, é necessário, em primeiro lugar, que existam os sujeitos, ou seja, os titulares de direito, já que não se podem admitir direitos sem titulares (MONTEIRO, 2001). Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 69) “são as relações sociais, de pessoa a pessoa, física ou jurídica, que produzem efeitos no âmbito do direito”. Em outras palavras, o direito só existe se houver alguém que o possa exercê-lo ou reclamá-lo, bem como estar submetido a ele.

 Personalidade é a característica dos sujeitos, também chamados de pessoas, de direito. Conforme Maria Helena Diniz (2006, p. 118) a idéia de personalidade “exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”. Logo, sujeitos de direito são as pessoas (físicas ou jurídicas) que têm capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações.

No âmbito do direito internacional, segundo Celso Albuquerque de Mello (2004, p. 345), “pessoas internacionais são, [...], ‘os destinatários das normas jurídicas internacionais’”[3]. Já Hildebrando Accioly e Geraldo Silva (2000, p. 64) preferem utilizar a definição dada pela CIJ, ou seja, é sujeito de Direito Internacional toda organização que “tem capacidade de ser titular de direitos e deveres internacionais e que tem a capacidade de fazer prevalecer os seus direitos através de reclamação internacional”.

Pode ser verificada uma diferença sutil, mas significativa nos conceitos de sujeito no âmbito do direito internacional, especialmente no que concerne ao último, apresentado por Hildebrando Accioly e Geraldo Silva, com base em manifestação da CIJ. De acordo com estes, para ser sujeito de Direito Internacional, deve-se, além de ser titular de direitos e deveres, ser capaz de reclamá-los. Assim, conforme este entendimento, a subjetividade jurídica está condicionada a capacidade postulatória internacional.

Valério Mazzuoli (2011, p. 421) destaca que:

O que não se pode confundir é a personalidade jurídica de um ente com a capacidade que lhe assiste de ter (capacidade de gozo) ou de exercer direitos (capacidade de exercício). [...] dizer que os sujeitos de Direito Internacional têm diferentes graus de capacidade, não significa absolutamente dizer que têm eles personalidade jurídica que varia exatamente nesses graus. A capacidade de ter ou de exercer direitos na órbita do direito das gentes está ligada à responsabilidade do ente em causa, e não à sua personalidade.

Em suma, para alguns, a personalidade internacional está intrinsecamente relacionada com a capacidade, enquanto para outros a personalidade e a capacidade não se confundem. No primeiro caso, somente teria capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações quem também tem capacidade de vindicá-los, o que, no plano internacional, é uma característica quase que exclusiva dos Estados e das Organizações Internacionais, mas que vem, como será visto mais adiante, sendo reconhecida aos indivíduos também. Por outro lado, para os que defendem que a personalidade não se confunde com a capacidade, o simples fato de haver normas direcionadas a um ente, já o dotariam de personalidade, não sendo necessário que eles tenham a capacidade de vindicá-los para que sejam considerados sujeitos de direito. 

1.2 OS SUJEITOS TRADICIONAIS DO DIREITO INTERNACIONAL

1.2.1 O Estado

O Estado é o sujeito de Direito Internacional por excelência. O Direito Internacional serve, segundo entendimento predominante, para regular as relações entre as sociedades politicamente organizadas que, a partir do século XVII, passaram a se configurar como o chamado Estado-nação moderno. É a ele que as normas de direito internacional são direcionadas e vinculam, e é ele que tem o poder de celebrar tratados para criar novas, ou modificar as normas já existentes. É por sua vontade que nascem as organizações internacionais. Por isso é dito que o Estado tem a personalidade jurídica originária no plano internacional (REZEK, 2010).

O Estado, seja visto como um grande ‘Leviatã’[4], seja visto como o resultado de um ‘Contrato Social’[5], é, afinal, a forma pela qual a maior parte das sociedades modernas se organiza. O Estado-nação moderno nasceu em 1648, com a chamada Paz de Vestfália e, a partir daí, foi se consolidando como o modelo padrão de arranjo das coletividades por todo o mundo.

Sinteticamente, o que a aconteceu de tão paradigmático no referido ano, foi o reconhecimento formal da soberania estatal. Em outras palavras, cada Estado poderia impor as suas próprias regras dentro do seu território sem a ingerência de outros Estados ou instituições. No caso concreto, com o enfraquecimento do Sacro Império Romano-Germânico, após a Guerra dos Trinta Anos, restou decidido que cada Estado teria liberdade religiosa (cada governante poderia escolher e religião do seu Estado). Desta forma consolidou-se o terceiro elemento que caracteriza o Estado, a soberania, que, juntamente com o território e a população, é considerado essencial para a qualificação desta entidade política.

Assim, para entender o que é o Estado e sua posição perante o Direito Internacional, é importante expor brevemente cada um destes elementos:

População: De acordo com Pellet (2003, p. 418), “enquanto elemento constitutivo do Estado, a população é entendida como a massa de indivíduos ligados de maneira estável ao Estado por um vínculo jurídico, o vínculo da nacionalidade. É o conjunto de nacionais.” Assim, as pessoas, para serem consideradas parte da população de um Estado, devem ter esse liame jurídico com o mesmo, o qual permite que ele exerça a sua jurisdição pessoal, independentemente de onde o nacional se encontre (PELLET, 2003.; REZEK, 2010.)[6].

Território: O território é o espaço onde o Estado pode aplicar o seu poder (PELLET, 2003.). “Sobre seu território o Estado exerce jurisdição [...], o que vale dizer que detém uma série de competências para atuar com autoridade [...]. Sobre o território assim entendido, o Estado soberano tem jurisdição geral e exclusiva.”[7] (REZEK, 2010, p. 165). O território é a base física do Estado e sem este, assim como sem população, o mesmo não existe (MAZZUOLI, 2011).

Governo soberano: O governo pode ser considerado como o elemento que individualiza cada Estado. O governo, para ser considerado efetivo e caracterizar o seu Estado deve exercer a soberania.[8] Nas palavras de Francisco Rezek (2010, p. 231):

Identificamos o Estado quando seu governo [...] não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece, em última análise, nenhum poder maior de que dependam a definição e o exercício de suas competências, e só se põe de acordo com seus homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse coletivo. Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas; mas nenhuma outra entidade as possui superiores.

Ou seja, um Estado é soberano quando não se subordina juridicamente a nenhum outro governo.[9]

Além disso, a capacidade de se relacionar com outros Estados também é admitida como um dos elementos essenciais para a caracterização de um Estado.[10] Segundo Brownlie (1997), essa capacidade pode também ser referida como independência. Por sua vez, essa independência se confunde com o conceito de soberania, ou seja, “o Estado deve ser independente das outras ordens jurídicas estatais, e qualquer interferência dessas ordens jurídicas ou de uma representação internacional deve basear-se num título de Direito Internacional” (BROWNLIE, 1997, p. 86).  Assim sendo, a capacidade de se relacionar com outros Estados está intrinsecamente vinculada à existência de um governo soberano. Este governo que poderá assinar tratados, enviar representantes diplomáticos, declarar guerra, e reconhecer outros Estados, por exemplo.

Enfim, estes podem ser considerados os elementos básicos que caracterizam um Estado e que, conseqüentemente, lhe atribuem personalidade jurídica internacional. Todavia, convém observar que estes elementos vêm sendo relativizados nos últimos anos, especialmente com a consolidação da União Européia e com o reconhecimento cada vez maior de poderes a órgãos de organizações interestatais.

1.2.2 As Organizações Internacionais

As organizações internacionais, ao contrário dos Estados – que são considerados entidades ‘de fato’ – são entidades ‘de direito’. Elas surgem em decorrência da vontade conjugada de diversos Estados, materializada sob a forma de um tratado, estatuto ou carta constitutiva. É por isso que são consideradas sujeitos derivados (REZEK, 2010), uma vez que não podem existir sem que exista esta formalização. Elas não têm território ou população, muito menos soberania, e só adquirem autonomia depois de cumpridos certos requisitos que estarão descritos no seu documento de criação.[11] Apesar disso, as decisões mais importantes tomadas no seio das organizações ainda dependem da votação e, consequentemente, da vontade dos Estados.

Segundo Angelo Piero Sereni (apud MELLO, 2004, p. 601) uma

organização internacional é uma associação voluntária de sujeitos de direito internacional, constituída por ato internacional e disciplinada nas relações entre as partes por normas de direito internacional, que se realiza em um ente de aspecto estável, que possui um ordenamento jurídico interno próprio e é dotado de órgãos e institutos próprios, por meio dos quais realiza as finalidades comuns de seus membros mediante funções particulares e o exercício de poderes que lhe foram conferidos.

De forma mais simplificada, Pellet (2003, p. 592) define organização internacional como “uma associação de Estados, constituída por tratado, dotada de uma constituição e de órgãos comuns, e possuindo uma personalidade jurídica distinta da dos Estados membros”.

Neste sentido, uma organização internacional deve ser constituída por Estados, os quais devem acordar[12], expressamente – por meio de um tratado que virá a ser a carta, estatuto, ou constituição de fundação da organização, e na qual estarão descritas as funções e objetivos da mesma, bem como suas limitações e os requisitos para ingresso – a criação desse novo sujeito de Direito Internacional. Além disso, a organização deverá ter órgãos que serão incumbidos de determinados papéis, que poderão ser políticos, jurídicos, executivos ou administrativos, sendo necessário que tenham independência para decidir e agir, pois a organização será dotada de uma personalidade distinta da dos Estados que a criaram ou dela vieram a fazer parte por meio de suas vontades soberanas.

As primeiras Organizações Internacionais surgiram com a decisão de tornar as conferências, que eram feitas de tempos em tempos para tratar de temas de interesse de várias nações, em instituições permanentes, com sede e funcionários.[13] Apesar disso, essas “uniões administrativas tinham um aspecto ‘rudimentar’ como organizações internacionais” (REUTER, Paul apud MELLO, 2004, p. 627). Foi somente após a 1ª Guerra Mundial que surgiram as Organizações Internacionais com fins políticos e dentro das quais os assuntos poderiam ser decididos por maioria, sendo a primeira com este caráter a Liga das Nações. (MELLO, 2004)

A personalidade jurídica das Organizações Internacionais é amplamente reconhecida. Todavia, na década de 1940 ainda havia dúvidas quanto a isso. Foi por meio de uma consulta realizada pela ONU junto à CIJ sobre a reparação de danos sofridos em razão da morte de um funcionário seu, o Conde Folke Bernadotte, na Palestina, (MAZZUOLI, 2011) que esta concluiu que as Organizações Internacionais são sujeitos de direito, mesmo não tendo exatamente as mesmas prerrogativas que os Estados no âmbito do Direito Internacional (BROWNLIE, 1997).[14]

     Ainda no parecer emanado nesse caso, a CIJ ressaltou que “os sujeitos de direito não são necessariamente idênticos na sua natureza ou na extensão dos seus direitos” (BROWNLIE, 1997, p. 708) e destacou a autonomia em relação aos seus membros, a capacidade de celebrar tratados e a natureza de organismo político com objetivos amplos e complexos como características que só podem ser entendidos quando pertencentes a um ente portador de personalidade jurídica internacional. Por fim, concluiu que a ONU é um sujeito de direito internacional “susceptível de possuir direitos e deveres internacionais, e que tem a capacidade de defender os seus direitos através da apresentação de reclamações internacionais.” (BROWNLIE, 1997, p. 709)

Apesar disso, não é por possuir personalidade jurídica que as organizações ganham automaticamente o poder de concluir tratados. Esta característica deve estar expressa ou implicitamente contida na sua carta de criação.  Todavia, ao longo dos anos estabeleceu-se o consenso de que as organizações internacionais têm o poder de concluir tratados, estando esta condição inclusive regulada na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados celebrados entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais, de 1986. (BROWNLIE, 1997, p. 712).

Ainda segundo Brownlie (1997, p. 709-710), pode-se considerar que uma organização internacional possui personalidade jurídica quando existe:

1. uma associação permanente de Estados, que prossegue fins lícitos, dotada de órgãos próprios;

2. uma distinção, em termos de poderes e fins jurídicos, entre a organização e os seus Estados membros;

3. A existência de poderes jurídicos que possam ser exercidos no plano internacional, e não unicamente no âmbito dos sistemas nacionais de um ou mais Estados.

Assim sendo, não é qualquer tipo de organização que pode ser considerada portadora de personalidade jurídica internacional. É necessário que haja independência e poder de ação no plano internacional, o que significa dizer que ela deve poder decidir livremente, sem se vincular à vontade dos Estados-membros, tendo uma personalidade própria, desvinculada da destes últimos (MAZZUOLI, 2011, p. 605).

Portanto, as Organizações Internacionais são, em geral, sujeitos de Direito Internacional. Todavia, ao contrário dos Estados, são sujeitos derivados, uma vez que para serem criadas necessitam do acordo de vontade desses (seja para iniciar uma organização totalmente nova, seja para criar uma a partir de outra já existente). Além disso, necessitam apresentar certos aspectos, como independência, estabilidade e poderes para exercer suas funções, para que lhes seja reconhecida a personalidade jurídica internacional desvinculada da de seus Estados-membros.

1.3 OUTROS SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL

Existem outros sujeitos aos quais é reconhecida personalidade jurídica por, pelo menos, parte da doutrina, e outros que ainda lutam para ter esse reconhecimento.[15] Todavia, há certa convergência na doutrina no sentido de apresentar como outros possíveis sujeitos de direito internacional as chamadas ‘coletividades não estatais’ e os indivíduos. Estes últimos, por serem parte do debate principal deste trabalho, serão analisados em tópico a parte. Já os primeiros, que estão subdivididos em: coletividades beligerantes; coletividades insurgentes; movimentos de libertação nacional; a Soberana Ordem Militar de Malta; a Santa Sé; e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, serão aqui brevemente abordados.

Coletividades beligerantes: “O reconhecimento como beligerante é aplicado às revoluções de grande envergadura, em que os revoltosos formam tropas regulares e que têm sob o seu controle uma parte do território estatal.” (MELLO, 2004, p. 557) Esse reconhecimento foi criado e muito utilizado no século XIX (MELLO, 2004). Servia para, além de dar direito à comunidade de efetuar bloqueios, capturas e concluir tratados (MAZZUOLI, 2011), como uma forma de garantia para a aplicação das leis da guerra, uma vez que se reconhecendo o caráter beligerante de determinada comunidade, esta estaria sujeita às normas internacionais, e o governo do Estado não seria mais responsável pelos atos cometidos por aquele grupo. É um instituto que caiu em desuso no século XX. (MELLO, 2004)

Coletividades insurgentes: “A insurgência normalmente ocorre em guerras internas, como lutas contra um regime colonialista ou lutas de libertação nacional, sem que ocorra o controle político de determinada área do território do Estado, como acontece nos casos de beligerância.” (MAZZUOLI, 2011, p. 406) Nesses casos, os direitos e deveres não surgem automaticamente com o reconhecimento, pois é este ato que delimita quais serão os seus efeitos, que são sempre mais restritos que nos casos de beligerância (MELLO, 2004).

Movimentos de libertação nacional: Esses movimentos emergiram durante o século XX nas lutas pela descolonização da África, Ásia, Oceania e Caribe e o que os diferencia de outros movimentos é que, normalmente, seus membros são nativos que lutam contra governos racistas ou contra colonizadores estrangeiros (MAZZUOLI, 2011).

A personalidade jurídica internacional de tais movimentos dá-se em três âmbitos: no direito humanitário, no direito dos tratados e nas relações internacionais. Contudo, essa personalidade e a eventual capacidade para participar da vida internacional [...] é limitada ao âmbito estritamente funcional e, em razão da matéria, aos temas correspondentes à sua vocação [...]. (MAZZUOLLI, 2011, p. 407)

Soberana Ordem Militar de Malta: Ela foi criada ainda na época das cruzadas, num hospital que abrigava peregrinos e, apesar de já ter tido território, atualmente é sediada em Roma. É uma Ordem religiosa e, na década de 1950, foi declarada pela Cúria Romana como subordinada à Santa Sé. Na Itália chegou a ser reconhecida como governo no exílio, tendo seu Grão-Mestre imunidade de jurisdição nesse país. Apesar disso, e de possuir uma Constituição e travar relações diplomáticas[16] com diversos países, ainda encontra-se muita resistência para reconhecer a personalidade jurídica internacional da Ordem. (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004) Sobre a Ordem, Mello (2004, p. 565) ressalta ainda que “ela é pessoa internacional porque tem direitos e deveres perante a ordem jurídica internacional”.

     Santa Sé: “A Santa Sé é a reunião da Cúria Romana com o Papa.” (MELLO, 2004, p. 561) Ela não corresponde à Cidade do Vaticano,[17] que é um território, enquanto a Santa Sé é um governo (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004). Até a unificação italiana o Papa era, além de soberano espiritual da Igreja Católica, soberano temporal de um determinado território. Com a unificação italiana, perdeu-se essa base territorial, mas o Papa continuou como soberano da Igreja, travando relações em nome da Santa Sé com os mais diversos Estados. Em 1929, com os Tratados de Latrão, assinados entre a Santa Sé e o governo italiano, a esta foi reconhecida personalidade jurídica e foi-lhe concedida também a soberania sobre a Cidade do Vaticano. Existem debates sobre as diferenças entre a personalidade internacional do Vaticano e da Santa Sé, mas o que é inconteste é a personalidade internacional da Santa Sé, a qual pode concluir tratados, travar relações diplomáticas, possui imunidade de jurisdição perante tribunais estrangeiros, etc. (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004)

Comitê Internacional da Cruz Vermelha: Após observar os horrores da batalha de Solferino, de 1859, um comerciante suíço, Henri Dunant, escreveu um livro onde propôs a criação de uma organização que atendesse os feridos de guerra. Essa idéia foi encampada por Gustave Moynier que, junto com o primeiro, concretizou a idéia. Em seguida a sua criação foram realizadas convenções para tratar das questões sanitárias nos exércitos de campanha e definir regras de direito humanitário para tratamento do Comitê, especialmente a salvaguarda de seus hospitais e ambulâncias. A Cruz Vermelha goza na Suíça de direitos semelhantes às das representações diplomáticas e tem acordos de sede com vários outros países. (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004) Ademais, possui o status de observador dentro da ONU (MELLO, 2004) Quanto à personalidade internacional, conforme Mello (2004, p. 566):

[...] quem a possui é o Comitê Internacional [...], com sede em Genebra e totalmente independente de qualquer governo. Entre suas funções podemos mencionar as de: assegurar proteção e assistência às vítimas de guerra e reconhecer as sociedades nacionais. [...] o Comitê é um organismo de direito privado regido pelo Código Civil e desempenhando função pública internacional. Como ele tem direitos e deveres perante a ordem jurídica internacional, é igualmente pessoa internacional.[18] Ela não é uma organização internacional, porque não é intergovernamental.

Enfim, convém destacar que este não é um rol taxativo dos entes sobre os quais se debate a subjetividade internacional, o qual vem aumentando a cada dia, mas são os que costumam ser mais trabalhados, especialmente pela doutrina pátria. Como destacado anteriormente, o indivíduo é também um dos ‘candidatos’ a sujeito do Direito Internacional e, muito embora o debate sobre isso seja antigo, e exista a tendência ao reconhecimento da sua personalidade, há ainda argumentos fortes em sentido contrário.

1.4 O INDIVÍDUO

O indivíduo, ao contrário dos outros sujeitos internacionais reconhecidos por parte da doutrina, não são entidades abstratas, formadas por uma comunidade ou com um estatuto jurídico próprio ou outorgado. Os indivíduos são justamente as unidades que formam cada uma dessas comunidades, sejam Estados (diretamente), sejam organizações internacionais (indiretamente), sejam outros tipos de ordem ou organizações com fins políticos ou humanitários. O indivíduo é um ser concreto e é para ele e por ele que existem todas estas outras organizações abstratas.[19]

Uma corrente mais filosófica do Direito Internacional, chamada por Accioly e Silva (2000) de ‘individualista’ ou ‘realista’ sustenta que o destinatário do Direito Internacional, bem como de qualquer ramo do direito só pode ser o indivíduo. Nesse sentido, Kelsen (1995) considera errônea a opinião dos que defendem que o Direito Internacional não é capaz de obrigar ou autorizar os indivíduos[20] e cita como exemplo as normas internacionais proibidoras da pirataria, que obrigam os indivíduos e não os Estados de abster-se desse delito.[21] Segundo o filósofo (1995, p. 334):

Todo Direito é regulamentação da conduta humana. A única realidade social a que as normas jurídicas podem se referir são as relações entre seres humanos. Portanto, uma obrigação jurídica, assim como um direito jurídico, não pode ter como conteúdo outra coisa que não a conduta de indivíduos humanos. Se, então, o Direito internacional não obrigasse e autorizasse indivíduos, as obrigações estipuladas pelo Direito internacional não teriam absolutamente conteúdo algum, e o Direito internacional não obrigaria nem autorizaria ninguém a fazer coisa alguma.[22]-[23]

Cançado Trindade (2002, p. 02) afirma que os fundadores do ‘direito das gentes’ tinham também essa visão, especialmente Francisco de Vitoria. Segundo este: “o ordenamento jurídico obriga a todos – tanto governados como governantes, - e, nesta mesma linha de pensamento, a comunidade internacional (totus orbis) prima sobre o arbítrio de cada Estado individual.”[24] Além dele, segundo Cançado Trindade (2002, p. 03), Hugo Grotius também  entendia que “toda norma jurídica – seja de direito interno ou de direito das gentes – cria direitos e obrigações para as pessoas a quem se dirigem”. Ou seja, nos primórdios do Direito Internacional, os estudiosos deste ramo da ciência jurídica, entendiam tranquilamente ter o indivíduo direitos e obrigações também perante o ordenamento internacional.[25]

Ainda Cançado Trindade (2002) lamenta que este ponto de vista tenha se alterado pelo advento do positivismo jurídico, que relegou o Direito Internacional a um status de direito entre Estados e não acima destes. Segundo o autor, os adeptos dessa corrente personificaram “o Estado dotando-o de ‘vontade própria’, reduzindo os direitos dos seres humanos aos que o Estado a estes ‘concedia’.” (TRINDADE, 2002, p. 03-04) Em outras palavras, para estes estudiosos, o Estado passou a ser o único sujeito de direitos e deveres na esfera internacional, e os direitos e deveres dos indivíduos estavam apenas vinculados às normas do Estado ao qual estavam subordinados.

Com uma linha de raciocínio parecida com a dos autores do positivismo, Francisco Rezek (2010, p. 154) entende que “não tem personalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas”, uma vez que os tratados que instituem os tribunais internacionais, sejam de direitos humanos, sejam penais, são assinados por Estados e sua jurisdição vale para os nacionais dos Estados-parte daquela corte, o indivíduo continua vinculado e dependente do Estado, sem ter, portanto, capacidade jurídica internacional, a não ser através da participação e do consentimento estatal. (REZEK, 2010)[26]-[27] Ainda segundo Rezek (2010, p. 155):

Para que uma idéia científica – e não simplesmente declamatória – de personalidade jurídica do indivíduo em direitos das gentes pudesse fazer algum sentido, seria necessário pelo menos que ele dispusesse da prerrogativa ampla de reclamar, nos foros internacionais, a garantia de seus direitos, e que tal qualidade resultasse de norma geral. Isso não acontece. Os foros internacionais acessíveis a indivíduos – tais como aqueles, ainda mais antigos e numerosos, acessíveis a empresas – são-no em virtude de um compromisso estatal tópico, e esse quadro pressupõe a existência, entre o particular e o Estado co-patrocinador do foro, de um vínculo jurídico de sujeição, em regra o vínculo da nacionalidade. Se a Itália entendesse de retirar-se da União Européia, particulares italianos não mais teriam acesso à Corte de Luxemburgo, nem cidadãos ou empresas de outros países comunitários ali poderiam cogitar de demandar contra aquela república.

Mello (2004, p. 811) apresenta os argumentos dos positivistas italianos Quadri e Sereni, os quais, muito embora não ignorem os atos da vida internacional que dão direitos ao homem, não os consideram suficientes para demonstrar a personalidade do indivíduo:

[Quadri e Sereni] observam que os mencionados atos [tráfico de mulheres, genocídio, etc.] se dirigem sempre aos Estados. A ordem internacional imporia obrigações aos Estados em favor do homem. As normas internacionais não se endereçariam direta e imediatamente ao homem. Quadri assinala que um tratado internacional não poderia criar direitos para os indivíduos em virtude do ‘princípio da ineficácia dos tratados a respeito de terceiros’.”

No mesmo sentido, Pellet (2003) ressalta que existem diferenças na capacidade jurídica das pessoas internacionais, sendo que o Estado tem sua personalidade jurídica reconhecida diretamente pela sua existência, em razão da sua soberania. Já para os demais sujeitos de direito “é o próprio direito internacional – e, pelo menos de início, a vontade concertada dos Estados – que autoriza o reconhecimento da sua personalidade jurídica internacional e que precisa o seu conteúdo” (PELLET, 2003, p. 413).  Assim sendo, segundo este doutrinador, a capacidade jurídica do indivíduo continua a depender dos Estados (PELLET, 2003).

Não se afastando desta linha de pensamento, Brownlie (1997, p. 79) observa que:

Não existe regra geral alguma que determine que o indivíduo não possa ser um “sujeito de Direito Internacional” e, de facto, em determinados contextos, o indivíduo aparece como uma pessoa jurídica no plano internacional. Ao mesmo tempo, classificar o indivíduo como um “sujeito” de Direito Internacional é inútil, visto que tal pode parecer implicar a existência de capacidades que este não possui, não evitando a tarefa de distinção entre o indivíduo e os outros tipos de sujeitos jurídicos. (grifos no original)

Essas opiniões são justificadas pelo fato de, nas principais cortes internacionais, o indivíduo não ter a capacidade de postular autonomamente, dependendo do endosso[28] do Estado ao qual está vinculado. Ademais, mesmo nas que podem postular diretamente, esse direito está limitado a demandar contra os Estados-parte, já que outros não estão sujeitos à jurisdição da Corte, como no caso da Corte Européia de Direitos Humanos.[29]

Estas opiniões, entretanto, são rechaçadas por grande parte dos estudiosos atuais. Este pensamento pode ser traduzido nas palavras de Mello (2004, p. 808):

Não se pode falar em direitos do homem garantidos pela ordem jurídica internacional se o homem não for sujeito de DI. Dentro do mesmo raciocínio não poderíamos falar no criminoso de guerra, nem da proteção ao trabalhador dada pela OIT e nem mesmo se poderia lutar por uma Corte Internacional Criminal como se tem feito.

Ou seja, especialmente em razão do advento dos direitos humanos e do Direito Internacional Penal[30], o indivíduo passou a ter mais vinculação com a vida jurídica internacional, seja como protegido ou como acusado e, dessa forma, torna-se cada vez mais difícil negar sua personalidade jurídica. Ainda Mello (2004) diria que negar a subjetividade internacional do indivíduo, seria deturpar a existência de vários institutos jurídicos internacionais.

Assim, as opiniões atuais costumam ser intermediárias, considerando como sujeitos internacionais os Estados, as organizações internacionais, bem como os indivíduos, além de outros, como os tratados anteriormente, com as suas devidas peculiaridades e, sempre levando em conta os diferentes níveis de capacidade internacional.    

Mazzuoli (2011, p. 420) dá como fato consumado a consagração do indivíduo como sujeito de direito internacional:

Não vemos como possa ser negada a personalidade jurídica internacional dos indivíduos atualmente, principalmente levando-se em conta o ocorrido após a eclosão da Segunda Guerra, quando as pessoas passaram a ter direitos próprios, estranhos às normas endereçadas aos Estados, tendo sido dotadas, inclusive, de instrumentos processuais para vindicar e fazer valer seus direitos no plano internacional. Tal se deu, principalmente, pela multiplicação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos concluídos nos últimos tempos, que estão a permitir expressamente, além do ingresso direto dos indivíduos às instancias internacionais, que também sejam demandados perante cortes internacionais de direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional.

Da mesma forma, Cançado Trindade (2002) é contundente em afirmar que não existe sentido em negar ao indivíduo a subjetividade jurídica internacional, simplesmente pelo fato de não possuírem as mesmas capacidades que outros sujeitos, como os Estados, como a capacidade de celebrar tratados, já que mesmo no âmbito do direito interno, nem todos participam da produção das leis, mas continuam a ser sujeitos de direito. Por fim, o mesmo autor destaca que

O movimento internacional em prol dos direitos humanos, desencadeado pela declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, veio a desautorizar estas falsas analogias, e a superar distinções tradicionais (e.g., com base na nacionalidade): são sujeitos de direito “todas as criaturas humanas”, como membros da “sociedade universal”, sendo “inconcebível” que o Estado venha a negar-lhes esta condição. (TRINDADE, 2002, p. 06)

É sem dúvida no campo dos direitos humanos que o posicionamento dos estudiosos no sentido do reconhecimento do indivíduo como sujeito de Direito Internacional é mais comum. Isso acontece justamente porque, sendo o indivíduo reconhecido como tal, os Direitos Humanos passam a gozar de mais força e efetividade, uma vez que não dependem mais somente da vontade dos Estados. Além disso, parte da responsabilidade pela defesa desses direitos é transmitida para o próprio indivíduo, principalmente no caso da CEDH, onde ele pode postular independentemente de representação do seu Estado e, inclusive, contra este. Nesse sentido, Cançado Trindade (2002) destaca que apesar de a capacidade processual ser um elemento importante para proteção dos direitos humanos, o fato de alguns indivíduos, como crianças ou enfermos mentais não poderem exercitar planamente sua capacidade, não os descaracteriza como titulares de direitos que podem ser oponíveis, inclusive contra o Estado.

Ainda o mesmo autor (TRINDADE, 2002, p. 31) defende que:

A titularidade jurídica internacional do ser humano, tal como a anteviam os chamados fundadores do direito internacional (o direito das gentes), é hoje uma realidade. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, nos sistemas europeu e interamericano de proteção – dotados de tribunais internacionais em operação –, se reconhece hoje, a par da personalidade jurídica, também a capacidade processual internacional (locus standi in judicio) dos indivíduos. É este um desenvolvimento lógico, porquanto não se afigura razoável conceber direitos no plano internacional sem a correspondente capacidade processual de vindicá-los. Os indivíduos são efetivamente a verdadeira parte demandante no contencioso internacional dos direitos humanos.

O outro ramo do direito onde tal questão é debatida, como já citado, é o Direito Internacional Penal. O Direito Internacional Penal é, em certa medida, a outra face dos Direitos Humanos. Enquanto neste busca-se a defesa das vítimas que tiveram seus direitos feridos, no Direito Internacional Penal o que se busca é punição dos responsáveis por tais violações.

Nesse sentido, o indivíduo não é só sujeito de ‘direitos’ no sistema internacional, mas também sujeito de ‘deveres’. Araújo (2000, p. 54), destaca que:

A doutrina ocidental [...] consagra, com poucas exceções, a subjetividade jurídico-internacional do indivíduo ao lado do Estado e das organizações internacionais e o Tribunal Militar Internacional que se reuniu em Nurembergue com o objetivo de processar e punir os maiores delinqüentes de guerra da Alemanha nazista afirmou: “Está superabundantemente provado que a violação do direito internacional faz nascer responsabilidades individuais. São homens e não entidades abstratas que cometem os crimes cuja repressão se impõe como sanção do direito internacional”. (Grifou-se)

Ou seja, uma vez que são os próprios indivíduos que cometem as violações contra a humanidade, estes é que devem responder pelos seus atos. A responsabilização internacional do Estado é uma responsabilização ‘cível’, por meio de indenizações, ou então, o Estado acaba sofrendo retaliações, o que faz sofrer mais ainda a sua população em geral, enquanto os verdadeiros criminosos acabam não sofrendo privações algumas.

Esta questão já havia também sido levantada por Paul Guggenheim[31] e Constantin Eustathiades,[32] em 1952 e 1953, quando defenderam que o indivíduo também tinha deveres perante o direito internacional, podendo ser responsabilizado por seu desrespeito, como forma também de proteger os outros indivíduos. (TRINDADE, 2002)

Nesta linha de evolução também se insere a tendência atual de “criminalização” de violações graves dos direitos da pessoa humana, paralelamente à consagração do princípio da jurisdição universal. Neste início do século XXI testemunhamos o processo de humanização do direito internacional -, que passa a se ocupar mais diretamente da realização de metas comuns superiores em benefício de todos os seres humanos. (TRINDADE, 2002, p. 30)

Verifica-se, portanto, que, aceitando-se o indivíduo como sujeito de Direito Internacional, ele pode ser visto sob dois enfoques: como sujeito ativo, no âmbito dos direito humanos, já que este ramo do direito internacional tem por escopo “consagrar direitos subjectivos, em favor das pessoas, ao nível deste sector jurídico” (GOUVEIA, 2008, p. 29); ou como passivo, no âmbito do Direito Internacional Penal, quando se pune “aqueles que tenham infringido os mais altos valores protegidos pelo Direito Internacional Público, submetendo-os, assim, a penas de prisão, por terem cometido crimes internacionais.” (GOUVEIA, 2008, p. 59)

Enfim, para que seja reconhecida a personalidade jurídica internacional de um ente ou pessoa, não é necessário que este(a) compartilhe as mesmas características e capacidades que possuem os Estados. O simples fato de estar obrigado ou possuir prerrogativas emanadas do Direito Internacional, já é suficiente, em muitos casos, para que seja reconhecido tal status. No caso particular do indivíduo – além de poder vindicar seus direitos no âmbito dos tribunais de Direitos Humanos –, por ele estar obrigado a se abster de determinadas condutas previstas no Direito Internacional, seja por normas positivadas, seja pelo direito consuetudinário, é possível se reconhecer nele um sujeito de Direito Internacional Penal já que, como será visto na sequência do trabalho, mesmo que não esteja diretamente submetido a um Estado que concordou com tais normas, pode ser punido por desrespeitar estas ‘leis’ internacionais.


2 CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA INTERNACIONAL PENAL

Muito embora os primeiros intentos de se realizar um julgamento criminal com base em normas internacionais datem do século XV, foi somente no século XX que se conseguiu a materialização de um tribunal internacional penal. A evolução da justiça internacional penal não se deu de forma linear, mas finalmente, já no século XXI, tem-se um tribunal permanente para julgar os chamados ‘maiores criminosos da humanidade’. 

Nesse sentido, apesar da idéia remontar de tempos anteriores, foi só após o final da II Guerra Mundial que os primeiros tribunais realmente internacionais penais foram concretizados. O mais notável foi o de Nuremberg, onde foram julgados altos oficiais e membros do governo da Alemanha considerados responsáveis por várias atrocidades cometidas antes e durante a grande guerra. No mesmo período foram realizados os julgamentos no Extremo Oriente, dos japoneses que teriam também cometidos diversos delitos condenados pelo Direito Internacional.

Em seguida houve um lapso na evolução desta justiça, em razão da Guerra Fria. Foi apenas na década de 1990 que as atividades no sentido de criação de um tribunal permanente voltaram a se realizar. Antes que os trabalhos estivessem terminados, porém, foram criados ainda dois tribunais ad hoc para julgar os crimes cometidos nos territórios da ex-Iugoslávia e de Ruanda no início daqueles anos. Mas enfim, em 1998, foi aprovado o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o qual entrou em vigor em julho de 2002.

Este tribunal tem como objetivo julgar os maiores criminosos da humanidade. Muito embora sua idealização tenha se dado no âmbito das Nações Unidas, é uma organização independente. Tendo em vista a sua natureza e a dificuldade para muitas nações soberanas aceitarem sua jurisdição, para que o Estatuto fosse aprovado, muitas concessões foram feitas durante as negociações. A sua forma final não satisfez os que esperavam uma corte com mais poderes e com competências mais abrangentes. Todavia, já é um grande passo e, apesar das limitações impostas pelo Estatuto, vem funcionando regularmente e, espera-se, que o continue fazendo, de forma a demonstrar a sua importância, agregando novos signatários, e quem sabe, chegue a ter uma jurisdição universal.   

 Assim, neste capítulo busca-se apresentar a evolução da justiça internacional penal. Em um primeiro momento trata-se das primeiras tentativas, bem como dos primeiros tribunais criados após a II Guerra. Em seguida serão tratados os tribunais ad hoc da década de 1990 e os intentos para criação de um tribunal permanente. Por fim, apresentam-se os aspectos destacados do Tribunal Penal Internacional.

2.1 PRIMEIRAS TENTATIVAS E A II GUERRA MUNDIAL

O direito internacional penal desenvolveu-se pela necessidade de se punir os exageros cometidos nas guerras. “A guerra é um status jurídico definido em evolução durante séculos” (JANKOV, 2009, p.10), e, assim sendo, deveria ser feita de acordo com as regras criadas para regulá-la. As atrocidades cometidas durante os conflitos armados, principalmente quando atingiam populações civis, passaram a ser vistos como “crimes contra as leis da humanidade” (JANKOV, 2009, p. 23), havendo, portanto, a necessidade da criação de um meio de punição destes crimes.

A primeira notícia que se tem de um julgamento militar internacional, foi o do comandante Peter von Hagenbach, em 1474, em Breisach, na Alemanha. Este cavaleiro foi julgado por uma corte composta de 28 juízes, originários de Estados aliados do Sacro Império Romano-Germânico. Ele foi considerado culpado pelo cometimento de crimes contra as leis de Deus e dos homens durante a ocupação militar da cidade, e condenado à forca. (JANKOV, 2009, p. 22; CRETELLA NETO, 2008, p. 29). No entanto, isso ocorreu antes da já citada Paz de Vestfália – a partir da qual se estabeleceu a doutrina da soberania estatal – que influenciou o posterior desenvolvimento do Direito Internacional.

Foi somente no século XIX que se falou na constituição de uma corte criminal internacional. Gustave Monnier, um dos fundadores da Cruz Vermelha, “preconizava um estatuto provisório para uma corte internacional criminal. Sua tarefa seria processar e julgar graves violações da Convenção de Genebra de 1864 e outras normas de direito humanitário.” (JANKOV, 2009, p. 22) No entanto, essa idéia não se concretizou.

Ao final da I Guerra Mundial, durante a Convenção de Paz de Paris, discutiu-se seriamente a possibilidade de punição dos responsáveis pelos crimes de guerra. No artigo 227[33] do Tratado de Paz assinado em Versalhes, em 28 de junho de 1919, restou prevista a criação de um tribunal penal internacional para julgar o imperador Guilherme II da Alemanha por ter iniciado a guerra. Contudo, ele refugiou-se na Holanda, que não aceitou extraditá-lo, e o referido artigo não pode ser aplicado. (JANKOV, 2009, p. 22-23; CRETELLA NETO, 2008, p. 29; BAZELAIRE; CRETIN, 2004, p.15-16)

Os artigos seguintes, artigo 228 e 229 do Tratado de Versalhes, reconheciam o direito dos aliados para julgar quem fosse acusado de crimes contra as leis e costumes da guerra. Foram nas discussões que chegaram a estes dispositivos que se iniciou a construção do Direito Internacional Penal e do conceito de crime de guerra. Dessa forma, abriu-se uma fenda na soberania estatal, havendo a previsão explícita da possibilidade de julgamento de indivíduos por um tribunal internacional (CRETELLA NETO, 2008, p. 94)

Na seqüência, no âmbito acadêmico e também na Sociedade das Nações, iniciaram-se projetos e para a criação de uma corte penal internacional. “Durante 1º Congresso Internacional de Direito, realizado em Bruxelas, entre 26 e 29.6.1926, sob os auspícios da Association Internationale de Droit Pénal-AIDP [...] foi analisada a possibilidade de se estabelecer uma Corte Penal Internacional.” (CRETELLA NETO, 2008, p. 95) No ano seguinte a AIDP submeteu a proposta à Sociedade das Nações para “a criação de uma câmara criminal na Corte Permanente de Justiça Internacional-CPJI, que seria dotada de jurisdição universal[34].” (CRETELLA NETO, 2008, p. 95)

Houve ainda outros esforços no entre-guerras para a criação de uma justiça internacional penal. Desses esforços nasceram tratados sobre o combate à falsificação de moeda (1929), ao tráfico de mulheres e crianças (1921), ao tráfico de publicações obscenas (1923), e ao terrorismo (1937), mas esta última não entrou em vigor. Além disso, em 1938, concluiu-se uma Convenção para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, o qual teria competência apenas para julgar os crimes previstos na convenção contra o terrorismo, mas também não entrou em vigor (CRETELLA NETO, 2008, p. 96-97).

Dessa forma, o início de uma justiça internacional penal efetiva foi adiado para o fim da II Guerra Mundial. Entretanto, estes intentos, especialmente os debates da Convenção de Paris e os efetuados no entre-guerras, foram importantes para o amadurecimento da disciplina. Um tribunal penal internacional, talvez não como imaginado por Gustave Monnier, mas efetivo, só foi criado em 1945, em Nuremberg, na Alemanha.

2.1.1 O Tribunal Internacional Militar de Nuremberg

Antes mesmo do fim da II Grande Guerra, os países aliados manifestaram sua intenção de punir os nazistas pelos crimes por eles cometidos. Foi a chamada Declaração de Moscou[35], adotada por Roosevelt, Stalin e Churchill[36], em 1º de novembro de 1943, que se considera o marco preparatório para a constituição do Tribunal de Nuremberg. (CRETELLA NETO, 2008, p. 98)

A decisão definitiva de criação do Tribunal de Nuremberg foi tomada em 08 de agosto de 1945, quando foi selado o acordo de Londres, que constituiu o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg[37]. Estes acordos foram assinados inicialmente por EUA, URSS, Reino Unido e França, e depois por mais 19 Estados. Restou determinado que a sede permanente do Tribunal seria Berlim, desejo da URSS, mas os julgamentos ocorreriam em Nuremberg, em razão da capital alemã estar totalmente devastada, e o Palácio da Justiça de Nuremberg estar praticamente intacto. (CRETELLA NETO, 2008, p. 99)

O Estatuto do Tribunal de Nuremberg (Charter of the International Military Tribunal for the Trial of the Major War Criminals) foi aprovado em 06 de outubro de 1945 e continha 30 artigos. Estabeleceu-se que a corte seria composta por juízes dos países aliados, devendo cada país enviar um juiz titular e um suplente. Além disso, os juízes não poderiam ser recusados pelos advogados de defesa e nem pela promotoria. (CRETELLA NETO, 2008, p. 99) De acordo com o artigo 6º do Estatuto, o Tribunal tinha competência para julgar: (a) os crimes contra a paz; (b) os crimes de guerra; e, (c) os crimes contra a humanidade.

Foram feitas diversas acusações de que o Tribunal estaria punindo os criminosos por crimes tipificados após o cometimento, em desrespeito ao princípio da anterioridade penal (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege). Em resposta a estas acusações, “o tribunal referiu-se às Convenções de Haia para os crimes de guerra e ao Tratado de Renúncia à Guerra (Pacto de Paris ou Briand-Kellog, de 1928).”[38] (JANKOV, 2009, p. 25)

O maior mérito, porém, de Nuremberg, foi a previsão da possibilidade de punição de chefes de Estado, responsáveis oficiais por departamentos governamentais. Além disso, não foi aceita a teoria do respondeat superior[39] como justificativa de isenção total de culpa pelos crimes cometidos por estes agentes.

O artigo 7º do Estatuto previa expressamente que:

A condição oficial dos acusados, seja como chefes de Estados, seja como altos funcionários, não será considerada nem como escusa absolutória, nem como motivo para diminuição da pena. (GONÇALVES, 2004, p. 81)  

Na seqüência, o artigo 8º dispunha que:

O fato de que o acusado tenha agido em conformidade com as instruções de seu governo ou de um superior hierárquico não o livrará de sua responsabilidade, mas poderá ser considerado como motivo para diminuição da pena, caso o Tribunal decida que a justiça o exija. (GONÇALVES, 2004, p. 81)

Dessa forma é que se abriram as portas para a possibilidade de punição de indivíduos pela justiça internacional penal. Mais importante, foi rejeitada teoria pela qual os Chefes de Estado, ou agentes desempenhando funções oficiais, estariam imunes perante qualquer tribunal pelos crimes cometidos em tempos de guerra ou de paz, devendo a responsabilidade ser imputada ao Estado, o qual, perante o Direito Internacional até hoje existente, só responde civilmente por qualquer ilícito praticado em seu nome. (CRETELLA NETO, 2008, p. 101).

Foram vinte e quatro os acusados no Tribunal de Nuremberg. Destes, três foram absolvidos, doze foram condenados à morte, três foram condenados à prisão perpétua, quatro condenados à prisão por tempo determinado, Gustav Krupp von Bohlen und Halbach, dirigente das indústrias Friedrich Krupp AG, teve as acusações contra si retiradas devido a seu frágil estado de saúde, e Robert Ley, doutor em química e Chefe do Deutsche Arbeitsfront-DAF (Frente Alemã do Trabalho), enforcou-se após ler seu libelo acusatório. (CRETELLA NETO, 2008)

Destes, pode-se citar como exemplo paradigmático o caso de Karl Dönitz:

Karl Dönitz (1891-1980) – Almirante-chefe da Kriegsmarine (Marinha de Guerra) desde 1943, quando substituiu Albert Raeder. Sucedeu Hitler como presidente da Alemanha, após a morte do líder nazista máximo. Em sua defesa contra a acusação que ordenara a guerra marítima total, empregando técnicas irrestritas no Atlântico, inclusive sem resgatar náufragos, demonstrou, exibindo um documento do almirante Chester Nimitz (1885-1966), que os americanos haviam feito o mesmo no Pacífico. Foi julgado culpado de violação ao 2º Tratado Naval de Londres e condenado a 10 anos de prisão; foi libertado em 1956. De todos os acusados presentes em Nuremberg, entretanto, o veredito contra Dönitz foi provavelmente o mais controverso. Ele sempre manteve a posição de que jamais fez uso de quaisquer estratégias que almirantes Aliados não tivessem empregado. Ao ficarem sabendo da polêmica decisão, numerosos oficiais Aliados enviaram cartas para Dönitz, lamentando a sentença condenatória. Dönitz cumpriu integralmente a pena. No livro que publicou, Zehn Jahre und Zwanzig Tage: Errinerungen [sic] 1935-1945[40], dedicou-se a explicar a preparação da Marinha, as táticas marítimas alemãs e as batalhas travadas durante a guerra, do ponto de vista da Alemanha. (CRETELLA NETO, 2008, p. 104-105)

Este exemplo serve para verificar que, apesar de ter sido considerado Chefe de Estado por um período e ser, antes disso, um alto oficial, essas condições não serviram de diferenciação para julgá-lo perante o tribunal. Apesar de todas as polêmicas que giram em torno dos julgamentos feitos em Nuremberg, não se pode desconsiderar o valor que eles têm como sendo os primeiros julgamentos internacionais de indivíduos, imputando penalidades a estes especificamente, sem a escusa de que o faziam em nome do Estado.

2.1.2 O Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente

Enquanto o Tribunal de Nuremberg foi instituído por uma Convenção entre os países aliados, foi o General norte-americano Douglas MacArthur, comandante geral das forças aliadas na região, que anunciou a criação do Tribunal para o Extremo Oriente[41]. O Estatuto era composto por 17 artigos, e tinha previsões muito parecidas com as do Estatuto do Tribunal de Nuremberg. (CRETELLA NETO, 2008, p. 99)

O tribunal era composto por onze juízes das nações aliadas (Austrália, Canadá, China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Índia, Países Baixos, Nova Zelândia, Filipinas e União Soviética). Foram processados apenas vinte e oito dos oitenta criminosos considerados ‘classe A’ e que estavam presos. Ao final, houve vinte e cinco condenações, tendo um acusado sido liberado por problemas de saúde mental e outros dois falecido durante o processo. (BAZELAIRE; CRETIN, 2004)

São feitas duras críticas a este tribunal instalado em Tóquio. Os julgamentos ali proferidos são considerados típicos de uma justiça de vencedores contra vencidos,[42] já que nenhuma absolvição foi proferida e os americanos controlavam quase toda a corte (os recursos seriam julgados pelo General Mac Arthur, o qual também tinha o poder de escolher os juízes, e o procurador-geral era americano, sendo os outros apenas assistentes). (BAZELAIRE; CRETIN, 2004)

Apesar disso, o Tribunal também foi considerado ‘brando’ por muitos, uma vez que liberou diversos acusados e não chegou a imputar nenhuma conduta criminosa ao imperador Hirohito. Isso se justificou muito pelo momento político no pós-guerra, no qual Mao Tsé-Tung chegou ao poder na China e os EUA reforçavam os seus programas anti-comunistas. (BAZELAIRE; CRETIN, 2004) Para muitos, “o resultado dos processos de Tóquio pode ser considerado como insatisfatório em larga medida.” (BAZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 39)

Apesar de tudo, estes dois tribunais, com destaque para Nuremberg, devem ser considerados como marcos importantes no desenvolvimento da justiça internacional penal, e na responsabilização internacional do indivíduo por crimes considerados cometidos em tal condição, e não apenas como um agente do Estado. Tanto o Estatuto da Corte de Nuremberg quanto a Carta do Tribunal de Tóquio foram explícitos em não admitir a condição oficial como excludente de responsabilidade pelas condutas a eles imputadas. Desta forma, pela primeira vez, indivíduos foram julgados criminalmente por uma corte internacional, por terem cometidos crimes que se consideram praticados contra a humanidade como um todo.

2.2 OS TRIBUNAIS AD HOC PARA EX-IUGOSLÁVIA E RUANDA

Pouco após a criação da Organização das Nações Unidas[43], em 1948 já se iniciaram os esforços para a criação de um Tribunal Penal Internacional permanente, contudo, até 1998 esses esforços ainda não haviam obtido êxito.[44] Nesse meio tempo, sob os auspícios da ONU, por resoluções do Conselho de Segurança, foram criados outros dois tribunais penais internacionais ad hoc, um para a ex-Iugoslávia e outro para Ruanda.

Ainda no âmbito da ONU, existiram várias manifestações e esforços no sentido de criar uma Corte Criminal Internacional. Todavia, pelo advento da Guerra Fria e o ‘congelamento’ de muitas relações e projetos causado por ela, durante praticamente cinqüenta anos a idéia de um tribunal que fosse julgar os maiores criminosos da humanidade não pode se concretizar.

 Foi apenas na década de 1990 que novas atitudes foram tomadas nesse sentido. Iniciaram-se novamente os debates sobre a matéria que levariam à criação do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 1998 e, enquanto este não era concluído, com uma estratégia até hoje muito criticada, foram criados os tribunais ad hoc que, por sua importante atuação e importância para o desenvolvimento de uma justiça penal internacional, acabaram tendo sua atuação legitimada pela comunidade internacional.

2.2.1 Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia

O Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia (TPI-ex-I), que tem sede em Haia, nos Países Baixos, foi criado em 1993 pela Resolução 827 do Conselho de Segurança da ONU para apurar os crimes[45] cometidos a partir de 1991 no território da ex-Iugoslávia durante as guerras que dividiram esta região. Esse tribunal tentou sanar as principais críticas aos seus antecessores, aplicando o princípio da legalidade e da ampla defesa, mas mesmo assim não escapou de críticas (BAZELAIRE; CRETIN, 2004).

Questionou-se principalmente: a legitimidade do tribunal, por ele ter sido criado pelo Conselho de Segurança; o número exagerado de acusados sérvios em comparação com os de outras nacionalidades; a falta de poderes para capturar acusados; a possibilidade de fazer acusações secretas; a utilização de um idioma único; o não processamento de cidadãos de países da OTAN; a exacerbação de tensões; seu alto custo; a duração excessiva dos julgamentos; e, a falta de um resultado que de alguma forma afetasse positivamente as populações vítimas (BAZELAIRE; CRETIN, 2004).

Apesar disso, segundo Bazelaire e Cretin (2004, p. 53):

Ele é muito mais uma resposta simbólica dos membros do Conselho de Segurança diante de sua impotência em pôr um fim aos massacres na Bósnia. [...] Entretanto, o TPII não permanece apenas como um símbolo; ele conhece até mesmo um sucesso rápido cuja apoteose é a incriminação de Slobodan Milosevic e de quatro de seus próximos em plena guerra de Kosovo. O mínimo que podemos dizer é que o símbolo é a partir daí profundamente impresso na realidade da vida internacional.

Este tribunal conseguiu reconhecimento internacional e vem cumprindo seus objetivos,[46] tendo, inclusive, sido o primeiro tribunal a processar um Chefe de Estado por crimes de guerra.[47] Portanto, não obstante todas as falhas que ainda podem ser apontadas, o TPI-ex-I já se mostra uma grande evolução para a justiça penal internacional.

2.2.2 Tribunal Penal Internacional para Ruanda

Por fim, o outro tribunal penal internacional ad hoc criado antes da Corte permanente foi o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com sede em Arusha, na Tanzânia.

Este Tribunal foi criado por causa do genocídio ocorrido durante a guerra civil entre as tribos Hutus e Tutsis, em 1994 e que, embora previsível, não foi satisfatoriamente diagnosticada pela ONU, levando a morte de mais de meio milhão de pessoas em poucos meses. Por conta disso, o próprio governo ruandense pediu que fosse tomada alguma atitude para punir os responsáveis por aqueles crimes bárbaros e, em novembro de 1994, ao adotar a Resolução 955, o Conselho de Segurança estabeleceu o TPIR. (BAZELAIRE; CRETIN, 2004)[48]

O Tribunal Internacional para Ruanda, contudo, foi logo rechaçado pelos nacionais deste país, pois eles não concordavam que a pena máxima possível para os maiores responsáveis pelos crimes, que seriam processados por este tribunal, fosse a prisão perpétua, enquanto que os julgados pelos tribunais nacionais seriam provavelmente condenados à pena capital. Porém, mesmo sem a cooperação do país, o Tribunal foi instalado e vem funcionando, não com a mesma atividade do TPI-ex-I, porém, levando-se em conta a realidade em que está inserido e as dificuldades enfrentadas, seus resultados são satisfatórios.[49]

2.3 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Enfim, após meio século da criação do primeiro Tribunal Penal Internacional, foi aprovado, em 17 de julho de 1998, em Roma, o Estatuto da primeira Corte Internacional Criminal permanente. “A proposta do Tribunal Penal Internacional é de uma Corte permanente com jurisdição global e com objetivo de investigar e trazer a julgamento indivíduos – não Estados –, que tenham cometido os chamados grandes crimes internacionais [...]” (GONÇALVES, 2004, p. 251, grifo no original). Nesse sentido, apesar de o texto final do Estatuto não ter satisfeito grande parte dos anseios dos que esperavam uma Corte com jurisdição universal ou primazia sobre os tribunais nacionais, a sua aprovação e, posteriormente, a sua instalação e seu regular funcionamento, já são consideradas grandes vitórias para a justiça internacional penal.

Todos os Estados e instituições especializadas da ONU puderam participar da preparação deste Estatuto para a criação do TPI. Os trabalhos de elaboração do Estatuto iniciaram em 1995, com a criação de um Comitê Preparatório (PrepCom) pela Assembleia Geral das Nações Unidas. O PrepCom elaborou um relatório que foi submetido à Assembléia Geral em 1996, momento em que esta estendeu seu mandato por mais dois anos, para que pudessem elaborar um texto consolidado de todas as propostas dos interessados, o que serviria de base para as discussões na Conferência Diplomática que ocorreria entre 15 de junho e 17 de julho de 1998. (CRETELLA NETO, 2008). Houve muitas questões polêmicas a serem dirimidas durante a elaboração final do Estatuto e muitas concessões foram feitas para que se chegasse a um texto aceitável para a maioria dos Estados.[50] Por isso, apesar da resolução satisfatória da maioria dos problemas, restaram ainda muitas lacunas e muitas imprecisões no texto.

Apesar disso, ainda se tem muitas expectativas com relação ao TPI. “Segundo os próprios idealizadores da Corte, ‘pela primeira vez, há uma perspectiva de criação de uma obrigação global positivada para que indivíduos respeitem a lei’.” (GONÇALVES, 2004, p. 251) Tal obrigação foi enfim criada e, a partir da entrada em vigor do Estatuto, em 1º de julho de 2002, quem cometer os crimes nele descritos poderá, ao menos em tese, ser sujeito a um julgamento criminal na esfera internacional. Sabe-se que a efetividade do TPI ainda encontra-se restringida pelos limitadores impostos no Estatuto de Roma, como o princípio da complementaridade e a limitação da competência espacial aos Estados signatários e alguns outros casos específicos. Apesar disso, “com uma Corte Internacional Criminal permanente, afirmam seus defensores, grandes ditadores poderiam ser influenciados a não cometer abusos contra seus cidadãos.” (GONÇALVES, 2004, p. 252)

Outro ponto destacado por Gonçalves (2004, p. 252) sobre a necessidade do TPI é o de que:

até sua criação, não existia qualquer mecanismo permanente que conduzisse indivíduos a prestar contas por violações de leis internacionais. Em tais casos, os recursos disponíveis à comunidade internacional eram a imposição de embargos, sanções ou o uso da força militar. Não obstante, quando são utilizados estes instrumentos, na maioria das vezes afeta-se muito mais a inocentes do que aos criminosos propriamente. Daí porque o direcionamento mais preciso das sanções tornaria o direito penal internacional mais justo e efetivo. Com o TPI, populações deixariam de ser punidas por crimes cometidos por alguns indivíduos, ao menos é esse um dos principais objetivos da Corte.

Essa observação é relevante, tendo em vista que, além de se evitar a punição indireta de inocentes, muitas vezes as próprias vítimas dos crimes cometidos, a justiça internacional penal permite que os Chefes de Estado sejam julgados como indivíduos, independente de qualquer imunidade ou justificativa, deixando-se de lado resquícios de princípios absolutistas de que a figura do soberano se confundia com a figura do próprio Estado ou com alguma divindade. Enfim, a ordem internacional passou a vincular diretamente os indivíduos como tais, e não mais indiretamente, como representante dos Estados.

2.3.1 Aspectos destacados do Tribunal Penal Internacional

Durante a Conferência de Roma foram enfim definidas as estruturas e as competências do Tribunal Penal Internacional. O Tribunal ficaria sediado em Haia, nos Países Baixos, seria composto por 18 juízes de diferentes nacionalidades eleitos para um mandato único de nove anos.[51] O Ministério Público, de acordo com o art. 42 do Estatuto, atua de forma independente e é o responsável por dar início às investigações e à ação penal perante o Tribunal. Há um Procurador-Geral[52], com um mandato único de nove anos, que pode contar com a ajuda de Procuradores adjuntos. O TPI ainda conta com uma Secretaria, que é encarregada dos assuntos administrativos e a Assembléia de Estados Parte, que toma as principais decisões relativas ao tribunal, por consenso, nos termos do art. 112 do Estatuto. (GONÇALVES, 2004)

O artigo 4º do Estatuto determinou que a Corte pudesse exercer seus poderes e funções “no território de qualquer Estado-Parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado.” O art. 12, por sua vez, determina que o TPI exerça jurisdição, além dos signatários do Estatuto, também sobre o Estado em cujo território tenha tido lugar a conduta em causa, o Estado de que seja nacional a pessoa a quem é imputado um crime e os Estado submetidos pelo Conselho de Segurança. Nos dois primeiros casos, se os Estados não forem signatários do Estatuto, eles podem optar pela jurisdição do Tribunal, enquanto no último caso não há essa opção. (KAUL, 2000)

Já a competência material do TPI, delimitada no art. 5º, ficou restrita ao crime de genocídio (descrito no art. 6º), os crimes contra a humanidade (tipificado no art. 7º), crimes de guerra (delineado no art. 8º) e o crime de agressão (o qual ainda não foi descrito). Além desses, o TPI poderia julgar outros crimes internacionais (e.g. terrorismo, pirataria, etc.) desde que haja um tratado expressamente delegando esta competência para o Tribunal (GONÇALVES, 2004, p. 269).

Quanto à competência temporal, de acordo com o art. 11, o TPI só tem competência para julgar crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, o que ocorreu em 1º de julho de 2002, mas sendo garantida a aplicação da lei mais benéfica, caso haja modificações antes de proferida sentença definitiva (art. 24(2)). Também restou decidido que o Tribunal seria regido pelo princípio da complementaridade (art. 17), ou seja, ele só atuará quando o fato não for, ou não puder ser, devidamente processado na justiça nacional. Quanto às formas de requisitar a persecução de alguém (art. 13), pode o procurador começar uma investigação ex officio (art. 15), a requerimento de um Estado-parte (art. 14), ou a requerimento do Conselho de Segurança, nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas[53] (art. 13(b)).

O Estatuto trouxe também expressamente alguns dos princípios de direito penal que devem ser observados na corte de forma a isentá-la de várias das críticas que foram feitas aos tribunais anteriores. No art. 20 está previsto o princípio do non bis in idem, ou seja, nenhuma pessoa poderá ser julgada duas vezes pelo mesmo fato; no art. 22 está previsto o princípio nullum crimen sine lege, enquanto no artigo 23 está o nulla poena sine lege, os quais, em suma, determinam que só poderá ser criminalmente responsável e, por conseqüência, ser criminalmente punido pelo TPI, a pessoa que praticar uma conduta que for de sua competência no momento e no local em que ocorrer e nos termos previstos no Estatuto.

  Ainda no Capítulo III do Estatuto – Princípios Gerais de Direito Penal – encontram-se as disposições sobre a responsabilidade criminal individual (art. 25), irrelevância da qualidade de oficial (art. 27), e a responsabilidade dos chefes militares e outros superiores hierárquicos (art. 28). Sobre a responsabilidade individual, o art. 25 do Estatuto dispõe expressamente que “a Corte será competente para julgar as pessoas físicas” e que “quem cometer um crime de competência da Corte será considerado individualmente responsável e poderá ser punido”. Nesse sentido, fica claro que é a responsabilidade individual de pessoas físicas que serão objeto de investigação e que a sanção será direcionada para o indivíduo. Sobre este artigo, Gonçalves (2004, p. 278) comenta que:

Não há como contestar o fato de que a responsabilidade individual – talvez a maior contribuição da Carta de Nuremberg –, finalmente, meio século depois, passa a constituir-se norma formal do moderno Direito das Gentes. O art. 25 do Estatuto de Roma põe termo a qualquer discussão a respeito de responsabilidade penal do indivíduo no Direito Internacional.

Reforçando a noção de que qualquer pessoa física que cometer um crime sob a competência (material e territorial) da corte poderá por está se julgada, o artigo 27 dispõe que:

1.  O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade de chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá per se motivo de redução da pena.

2.   As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar que a Corte exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.[54]    

“Assim, homens de Estado, mesmo Chefes de Estado ou Governo, bem como altos oficiais das forças armadas, podem ser indiciados, independentemente do argumento de estarem agindo pela ‘razão de Estado’.” (GONÇALVES, 2004, p. 278-279) Ou seja, quando do cometimento de crimes previstos no Estatuto de Roma, estas autoridades não estarão acobertadas por qualquer imunidade decorrente de seu posto ou função, devendo ser processados da mesma forma que qualquer outro indivíduo, na medida de sua participação.

Além disso, como em Nuremberg, o fato de um crime ter sido cometido em cumprimento a uma decisão do Governo ou de um superior hierárquico, segundo o artigo 33 do Estatuto, não isenta o agente de responsabilidade, a não ser que “a) estivesse obrigado por lei a obedecer a decisões emanadas do Governo ou superior hierárquico em questão; b) não tivesse conhecimento de que a decisão era ilegal; e c) a decisão não fosse manifestamente ilegal.” É ressaltado ainda, no mesmo artigo, que qualquer decisão de cometer os crimes de genocídio ou contra a humanidade será considerada manifestamente ilegal.

  Sobre o procedimento no âmbito do TPI, ele se inicia com a abertura do inquérito pelo procurador (art. 53), o qual, para isso, analisará se há “motivo razoável” para realizar as investigações. O art. 54 dispõe sobre as funções e poderes do procurador em matéria de inquérito, dentre as quais está colher provas, interrogar pessoas, buscar a cooperação de Estados e organizações, adotar as medidas necessárias para assegurar a confidencialidade das informações, etc. O Estatuto ainda prevê o direito das pessoas no âmbito do inquérito (art. 55), as quais não poderão ser obrigadas a depor contra si mesmas e nem ser submetidas a qualquer tipo de coação, intimidação ou ameaça, deverão ser acompanhadas de um intérprete quando forem interrogadas em uma língua que não compreendam ou não falem fluentemente e não poderão ser detidas arbitrariamente.

Após a abertura do inquérito o procurador pode também requerer a expedição de mandado de detenção ou notificação para comparecimento à Câmara Preliminar (art. 58). Esta Câmara é responsável por proferir os despachos e mandados durante o curso do inquérito, procurar obter cooperação dos Estados para adoção de medidas cautelares, e zelar pela proteção do processo e das testemunhas e vítimas, dentre outras coisas (art. 57). De acordo com o art. 59, o Estado-Parte que receber o pedido de prisão ou detenção e entrega deverá adotar imediatamente as medidas necessárias (art. 59).

Com a detenção da pessoa, ou sua apresentação voluntária, inicia-se a fase instrutória (art. 60), na qual será dada ciência ao acusado de todas as imputações que lhe estão sendo feitas e este poderá requerer sua liberdade. Antes do julgamento a Câmara “realizará uma audiência para apreciar os fatos constantes da acusação com base nos quais o procurador pretende requerer o julgamento” (art. 61). Esta audiência deverá ocorrer com a presença do acusado, a menos que ele renuncie a este direito ou tenha fugido, ou ainda, não seja possível encontrá-lo, sendo, contudo, sempre garantida a presença de um defensor (art. 61(2)). Conforme a apuração dos fatos na audiência, a Câmara decidirá pela procedência ou improcedência da acusação, podendo ainda requerer que o procurador apresente novas provas ou modifique a acusação (art. 61(7)). Procedente a acusação, a Presidência do Tribunal designará uma Câmara de Primeira Instância que estará encarregada da fase seguinte do processo (art. 61(9)).

 Segundo o art. 63 do Estatuto, no julgamento o acusado deverá estar presente. A Câmara de Primeira Instância, responsável pelo julgamento, deverá conduzi-lo de forma a que seja célere e de que todos os direitos do acusado sejam respeitados, bem como que as vítimas e testemunhas estejam protegidas (art. 64). No caso de confissão, analisadas determinadas condições, a Câmara poderá condenar o acusado pelo crime, ou ainda solicitar mais informações (art. 65). É garantida ao acusado a presunção de inocência (art. 66). Além disso, ele deve ser ouvido em audiência pública, ser informado detalhadamente de todas as acusações, ter tempo suficiente para preparar a sua defesa, ser julgado sem atraso, ser assistido por um defensor, inquirir as testemunhas, entre outras garantias (art. 67).

As penas aplicáveis aos acusados, segundo o art. 77 do Estatuto são: pena por tempo determinado, por no máximo trinta anos, ou prisão perpétua, “se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem” (art. 77(1)(b)). Além dessas penas, poderá ainda ser cominada uma pena de multa, bem como “a perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa-fé” (art. 77(2)(b)).

É possível ainda, no âmbito do TPI, o recurso da sentença ou da pena aplicada (art. 81) bem como de outras decisões (art. 82), que será julgado pela Câmara de Recursos que tem todos os poderes da Câmara de Primeira Instância (art. 83). Confirmada a condenação, as penas serão cumpridas em um Estado que será indicado pela Corte, que tenha se disposto a receber os condenados (art. 103).

Nestes termos é que deverão acontecer os julgamentos pelo TPI. Para seu regular funcionamento é muito importante o apoio e a cooperação da comunidade internacional, uma vez que ele não possui poderes de polícia, questão que limita, de certa forma, a sua efetividade. Apesar disso, existem hoje já alguns réus que foram detidos pelas polícias de países signatários, bem como outros que se apresentaram voluntariamente, que estão já em fase de julgamento perante o tribunal.    

2.3.3 Casos em andamento perante o Tribunal Penal Internacional[55]

Desde que iniciou o seu funcionamento, já foram abertas investigações relacionadas a sete diferentes situações e existe ainda muitas outras denúncias apresentadas frequentemente ao Procurador. Se este as entender plausíveis e de acordo com as competências do tribunal, irá iniciar novas investigações.  

A primeira situação investigada é a da República Democrática do Congo, a qual foi comunicada ao procurador pelo próprio Presidente deste país, informando que, desde a entrada em vigor do Estatuto, no seu território, estariam ocorrendo crimes de competência do TPI. Após receber outras comunicações, de indivíduos e organizações não-governamentais o procurador passou a acompanhar o caso e requereu autorização para investigá-lo ainda em 2003. Atualmente são cinco os investigados neste caso: Thomas Lubanga Dylo[56]; Germain Katanga[57] e Mathieu Ngudjolo Chui[58]; Bosco Ntaganda[59]; e Callixte Mbarushimana[60].

A segunda situação é a de Uganda. Esta situação também foi submetida ao procurador pelo próprio Presidente do país, em 2004, e se refere ao Lord’s Resistance Army. O procurador entendeu que existiam elementos suficientes para iniciar a investigação e, alguns meses depois, passou a tomar as providências cabíveis. Neste caso estão sendo investigados Joseph Kony, Vincent Otti, Okot Odhiambo,  Dominic Ongwen e Raska Lukwiya.[61]

A terceira situação é a da República Central Africana, a qual chegou a conhecimento do procurador por meio de uma carta do Governo deste país. Com base nas informações dadas, o procurador foi em busca de outras e em 2007 decidiu-se pela abertura das investigações. Até agora o único acusado é Jean-Pierre Bemba Gombo, presidente e comandante-chefe do Mouvement de Libération du Congo (MLC).[62]

A quarta situação é a do Sudão e será tratada mais detidamente no próximo capítulo. A quinta, por sua vez, é a da República do Quênia no qual estão sendo acusados William Samoei Ruto (Ministro suspenso da educação, ciência e tecnologia), Henry Kiprono Kosgey (membro do Parlamento) e Joshua Arap Sang (chefe de operações da Kass FM de Nairobi). Todos são acusados da prática de crimes contra a humanidade, tendo a audiência para confirmação das acusações se realizado em 1-8 de setembro de 2011.

A sexta situação é a da Líbia a qual foi submetida ao TPI pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas por meio da resolução nº 1970, de 2011, nos termos do art. 13(b) do Estatuto, por entenderem que neste país estão acontecendo várias violações aos direito humanos. Os principais investigados neste caso são Muammar Gaddafi[63] (comandante das Forças Armadas da Líbia e mantendo o título de líder da Revolução, agia como Chefe de Estado), Saif Al-Islam Gaddafi (agia como Primeiro Ministro), Abdullah Al-Senussi (coronel das forças armadas da Líbia e chefe da inteligência militar). Em 27 de junho de 2011 foi expedido mandado de prisão contra os três, sendo que as principais acusações concernem em crimes contra a humanidade.

A sétima situação se refere à Costa do Marfim que, em 18 de abril de 2003 enviou uma declaração ao TPI reconhecendo a sua competência para julgar os crimes em seu território, nos termos do art. 12(3) do Estatuto de Roma, e, em 14 de dezembro de 2010 enviou nova declaração confirmando o reconhecimento, após ter havido mudança no governo. Em 03 de outubro de 2011, a Câmara preliminar autorizou o procurador a iniciar as investigações sobre possíveis crimes cometidos a partir de 28 de dezembro de 2010 no território deste país.

Apesar de ainda não ter sido proferida nenhuma sentença definitiva no âmbito do TPI, este vem trabalhando incessantemente nas investigações que realiza, enfrentando diversos obstáculos que, com certeza, servirão de exemplos para eventuais futuras reformas do Estatuto que tornem o Tribunal mais efetivo, e, assim, digno de maior credibilidade pelos países que ainda não o aceitaram.


3 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL: O CASO OMAR AL-BASHIR

Como pode ser visto nos capítulos anteriores, é cada vez mais difícil negar a subjetividade jurídica do indivíduo no âmbito do Direito Internacional, especialmente no seu ramo penal. O indivíduo passou a ter direitos e obrigações que emanam diretamente do Direito Internacional, assim como os demais sujeitos. A possibilidade da sua responsabilização por um órgão internacional é a principal prova disso. Dessa forma, com base no caso do Presidente do Sudão, Omar Al-Bashir, poderão ser analisados alguns aspectos destacados que corroboram este pressuposto.

O Sudão, como grande parte dos países africanos, tem desde a sua independência graves problemas com guerras civis. No caso de Darfur, as tensões foram agravadas por problemas climáticos e por políticas de governo que privilegiaram determinados grupos. O presidente Al-Bashir está sendo acusado de crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra como perpetrador indireto, por ter se utilizado das estruturas do Estado, bem como de milícias para, especialmente, deslocar populações, cometer assassinatos, destruir cidades e vilas, e destruir os meios de subsistência dessas populações.

Em razão de ser Chefe de Estado e de o Sudão não ser signatário do Estatuto de Roma, são levantadas algumas questões sobre a responsabilização do e a vinculação do indivíduo, no caso, Omar Al-Bashir, pela justiça internacional penal. Uma primeira questão é sobre a natureza das normas penais internacionais, as quais, especialmente no que concerne aos crimes internacionais contra a humanidades, de guerra e o genocídio, são consideradas jus cogens, ou seja, normas imperativas de direito. Desta forma, essas normas não podem ser revogadas e permitem o reconhecimento da chamada jurisdição universal, já que são violações que atingem a comunidade internacional como um todo. A segunda questão é sobre a vinculação do indivíduo ao Estatuto de Roma no caso de o seu país não ser signatário, pois, se as normas deste forem consideradas substantivas, poderia ser considerado que a lei penal estaria retroagindo no tempo quando aplicada a fatos anteriores à Resolução da ONU que submeteu o caso ao Tribunal e, caso as normas fossem consideradas jurisdicionais, a defesa dos acusado poderiam alegar que as condutas a eles imputadas não estavam abrangidas pelo jus cogens. A terceira questão é sobre a responsabilização individual, como contraponto à tradicional responsabilização coletiva que acontece no Direito Internacional, a qual, via de regra, acaba afetando toda uma população, e não apenas os responsáveis pelos delitos praticados. 

Nesse sentido, para atingir o objetivo deste capítulo foi necessário subdividi-lo em três partes: primeiramente foi feita uma contextualização sobre a situação do Sudão, especialmente no que concerne aos conflitos de Darfur e foram apresentados os principais aspectos do procedimento investigatório que se tem contra Al-Bashir; em seguida foram trazidas algumas reflexões sobre as questões apontadas com relação à situação o indivíduo no âmbito da justiça internacional penal; e, por fim, foram analisados os principais aspectos dessas reflexões com base no caso de Omar Al-Bashir.

3.1 A SITUAÇÃO DO SUDÃO[64]

A ONU, com base na Resoução 1564 de 18 de setembro de 2004, instaurou uma Comissão Internacional para Investigação sobre Darfur, a qual gerou um relatório que serviria de base para a adoção da Resolução 1593, que submeteu a situação em Darfur, no Sudão, à apreciação do Procurador do TPI e, posteriormente, serviu de base também para que este iniciasse suas investigações. De acordo com este relatório, quando as investigações foram iniciadas, estimava-se que havia 1,65 milhões de pessoas deslocadas internamente em Darfur e mais de 200 mil refugiados de Darfur no Chade. Além disso, haviam sido apurados casos de destruição em larga escala de vilas e aldeias na região.

A República do Sudão era, em 2005, o maior país da África[65]. Contava com uma população de aproximadamente 39 milhões de habitantes de maioria islâmica e que viviam na zona rural. A economia é basicamente voltada para agricultura e pastoreio, além da exploração de alguns limitados recursos naturais. A região de Darfur, que corresponde à porção oeste do país, é uma das regiões mais marginalizadas e negligenciadas pelo governo.

Após sua independência, em 1956, o Sudão teve poucos anos de regimes democráticos. Os principais governos ditatoriais tentaram impor a religião islâmica e a língua árabe a todo o país, o que exacerbava os conflitos internos, especialmente com o sul, que eram constantes desde esta época[66]. Nesse mesmo contexto pode-se inserir Omar Al-Bashir, o qual chegou ao poder em 1989, após mais um golpe de Estado. Em seu governo propriedades foram confiscadas e os partidos políticos foram banidos e, assim como no governo de seus predecessores, foi instituída uma política islâmica.

A região de Darfur tem aproximadamente 250.000 km2, e uma população estimada em 6 milhões de habitantes. A maior parte da população vive em pequenas vilas ou aldeias e vive de uma economia basicamente de subsistência, de agricultura industrial limitada e alguma pecuária. Por isso mesmo, a terra sempre foi uma questão central na política dessa região. A propriedade era tradicionalmente comunal e seu uso determinado pelas lideranças tribais. Todavia, na década de 1970, as leis sobre a terra foram modificadas e a propriedade individual passou a ser possível. Muito embora esta tenha passado para o Estado, aqueles que possuíssem terra por pelo menos um ano poderiam reclamar o título de propriedade. Os que não tinham terra recebiam ‘um incentivo’ para demonstrar lealdade para com o governo, de forma a adquiri-la.

Além disso, nos últimos anos transformações ecológicas e demográficas tiveram um impacto nas relações entre as tribos. A seca e a desertificação intensificaram-se nas décadas de 1970 e 1980 e com elas as lutas pelos recursos. Somando-se a isso, o governo passou a inserir novas formas de resolução de conflitos na região, substituindo o regime que se regia pelas leis tradicionais das tribos, baseado na autoridade dos líderes, mas de forma pouco imparcial, acirrando, assim, as disputas entre tribos.

Nesse contexto começaram a surgir as milícias e grupos de defesa de vilas e de suas respectivas tribos. Muitos dos conflitos se davam entre nômades árabes e os povos sedentários da região, sendo que o governo, o qual deveria mediar os conflitos, acabava gerando maiores controvérsias ao rotulas as tribos entre árabes e africanas e demonstrar certa predileção sobre aquelas. As populações destas tribos ‘africanas’ passaram então a apoiar os movimentos armados rebeldes que ganharam cada vez mais força. Os dois principais grupos rebeldes de Darfur, o Sudan Liberation Movement/Army (SLM/A) e o Justice and Equality Movement (JEM) começaram a se organizar durante os anos de 2001 e 2002 em oposição ao governo de Cartum, capital do Sudão, que era visto como o principal causador dos problemas de Darfur. Apesar de não terem conexões fortes, os dois grupos apresentam as mesmas razões para sua rebelião, especialmente questões sócio-econômicas e marginalização política de Darfur e seu povo.

Estes grupos passaram a atuar intensivamente a partir de 2002. Costumavam atacar delegacias para saquear propriedade do governo e armamento. Inicialmente, o governo pareceu ter sido surpreendido e não estar em posição para retaliar tais ações, tendo perdido o controle efetivo de grande parte do território, especialmente nas regiões rurais. Como grande parte das forças armadas era formada por ‘darfurnianos’ que, provavelmente, não aceitariam lutar contra seu próprio povo, o governo passou a chamar por assistência de tribos locais, e se aproveitar das tensões já existentes entra diferentes tribos para responder aos ataques.

Em resposta ao chamamento do governo, várias tribos nômades árabes, sem uma terra tradicional e desejando se assentarem, se apresentaram, vendo nisso uma oportunidade para se alocarem. O governo passou a dar subsídios e presentes aos líderes de algumas tribos como recompensa ao pessoal que estes recrutassem, bem como a pagar as Forças de Defesa Popular (Popular Defense Forces – PDF) através desses líderes. Estes novos recrutas foram chamados pelo povo de Darfur de ‘Janjaweed’[67].

Os esforços para uma solução pacífica do conflito se iniciaram em agosto de 2003, sob mediação do Presidente do Chade. Posteriormente, foram também feitos acordos sob os auspícios da União Africana na Etiópia e na Nigéria, especialmente sobre questões humanitárias e segurança. Mas durantes as negociações as partes não lograram superar as suas diferenças e identificar uma solução global para o conflito. Apesar de todos os esforços dos acordos de cessar-fogo assinados, lutas e violações entre os rebeldes e o governo continuavam sendo relatadas em janeiro de 2005. Independentemente da luta entre os grupos, o elemento mais significante do conflito são os ataques a civis, que levou a destruição e queima de vilas inteiras, bem como ao deslocamento de grande parte da população.

3.1.2 As investigações e o processo contra Omar Al-Bashir

O processo referente à situação do Sudão, assim como a da Líbia, foi submetido ao TPI por resolução do Conselho de Segurança da ONU. A Resolução 1593 (S/RES/1593) foi adotada em 31 de março de 2005. O Conselho de Segurança entendeu que a situação no Sudão constituía uma ameaça à paz internacional e à segurança e, assim, com base no Capítulo VII da Carta da ONU, decidiu submeter a situação em Darfur, desde 1º de julho de 2002, ao Procurador do TPI. (CONSELHO, 2005) Assim, em junho de 2005 foi publicada a decisão de abertura das investigações. O Procurador entendeu que, com base no relatório da Comissão Internacional de Investigação sobre Darfur, outras informações de fontes diversas, e opinião de diversos experts, havia elementos suficientes, nos termos do Estatuto para que fossem iniciadas as investigações. (TPI, 2005)

Com relação a esta situação, estão sendo investigados: Ahmad Muhammad Harun, ex-ministro de Estado para o Interior do Governo do Sudão (teve mandado de prisão expedido em 27 de abril de 2007, mas ainda está solto); Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman, líder de milícia (também teve mandado de prisão expedido, mas continua solto); Bahar Idriss Abu Garda, presidente e coordenador geral de operações militares do United Resistence Front (teve as acusações contra si recusadas pela Câmara Preliminar); Abdallah Banda AbaKaer Nourain, comandante-chefe do Justice and Equality Mouvement e componente do United Resistence Front; e, Saleh Mohammed Jerbo Jamus, ex-chefe do pessoal do SLA-Unity e atual integrante do Justice and Equality Mouvement. Por fim, está também sendo investigado Omar Hassan Ahmad Al-Bashir, Presidente da República do Sudão, contra o qual já foram expedidos dois mandados de prisão, o primeiro em 4 de março de 2009, e o segundo em 12 de julho de 2010, mas até o momento nenhum foi cumprido.[68]

Omar Al-Bashir está sendo acusado por cinco crimes contra a humanidade: assassinato (art. 7(1)(a)), extermínio (art. 7(1)(b)), transferência forçada (art. 7(1)(d)), tortura (art. 7(1)(f)), e estupro (art. 7(1)(g)); dois crimes de guerra: dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades (art. 8(2)(e)(i)), e pilhagem (art. 8(2)(e)(v)); e três crimes de genocídio: genocídio por morte (art. 6(a)), genocídio por ofensas graves à integridade mental ou física (art. 6(b)), e genocídio por sujeição intencional de grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física (art. 6(c)). [69]

De acordo com o requerimento do Procurador para que fosse expedido o primeiro mandado de prisão contra Omar Al-Bashir, este fomentava as disputas entre diferentes tribos, rotulando uma parte de ‘árabes’ e os outros, principalmente as tribos Fur, Masalit e Zaghawa, os quais ele percebia como principais ameaças, de ‘africanos’. O documento ressalta que, tanto os perpetradores quanto as vítimas são africanos e falam árabe. Al-Bashir usou como pretexto para atacar essas tribos a ‘contra-insurgência’ em razão de membros destes grupos fazerem partes de grupos rebeldes que questionavam o seu poder político na região, todavia, seu verdadeiro intento era o genocídio. (TPI, 2008) “Um Governo tem direito a usar a força para controlar seu território, mas ele não pode usar genocídio ou crimes contra a humanidade como meios para fazer isso.”[70] (TPI, 2008, p. 7-8, tradução livre)

Sobre os crimes imputados a Omar Al-Bashir foi afirmado o seguinte (TPI, 2008, p. 8, tradução livre):

A Acusação alega que as evidências mostram motivos razoáveis para crer que AL BASHIR pretendia destruir uma parte substancial dos grupos étnicos Fur, Masalit e Zaghawa como tais. Para isto, ele usou todo o aparato estatal, as Forças Armadas e a Milícia/Janjaweed [...]. Forças e agentes controlados por AL BASHIR atacaram civis em cidades e vilas habitadas principalmente pelos grupos alvo, cometendo assassinatos, estupros, tortura e destruindo os meios de sustento. AL BASHIR, portanto, forçou o deslocamento de parte substancial dos grupos alvo e então continuou a visá-los nos campos para pessoas deslocadas internamente [...], causando-lhes sérios danos físicos e mentais – através de estupros, tortura e deslocamento forçado em condições traumatizantes – e deliberadamente infligindo a uma parte substancial destes grupos condições de vida calculadas para levá-los a destruição física, em particular por obstruir a entrega de assistência humanitária.[71] (grifos no original)

Concluíram, por fim, que essas condutas configuram os crimes de genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. (TPI, 2008)

Com base nessas acusações, corroborados por argumentos embasados nas investigações realizadas, a Câmara Preliminar I expediu mandado de prisão contra Omar Al-Bashir em 4 de março de 2009, reconhecendo que havia indícios suficientes de que, nos termos do art. 25(3)(b) do Estatuto de Roma, ele havia sido perpetrador indireto ou co-perpetrador indireto de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Afirmou-se que, como Presidente do Estado do Sudão e Comandante das Forças Armadas desse país, Al-Bashir tinha um papel essencial na coordenação, projeto e implementação da campanha de contra-insurgência contra os rebeldes e que, ainda, havia motivos para crer que seu papel ia além, que ele estava no controle de todo aparato estatal, bem como da milícia e outros grupos, e que usou este controle para assegurar a implementação do plano comum. Dessa forma, entendeu-se cabível a expedição do mandado, nos termos do art. 58(1) do Estatuto para garantir que Al-Bashir se apresentasse à Corte, que não obstruísse ou pusesse em risco a investigação e, ainda, para que não continuasse cometendo os mesmos crimes. (TPI, 2009)

Apesar da expedição desse mandado, tendo em vista que o Sudão não é país signatário do Estatuto de Roma e nem os principais países com os quais ele tem relação e para onde Al-Bashir costuma viajar, ele não foi detido. Então, como as atrocidades cometidas contra as populações de Darfur continuavam, em 12 de julho de 2010 foi expedido novo mandado de prisão contra ele, desta vez incluindo as acusações de genocídio (TPI, 2010).

Até o final de 2011, Omar Al-Bashir ainda não havia sido preso e nem havia perspectiva de que fosse. Todavia, a sua inclusão entre os investigados e o reconhecimento de que existem elementos suficientes para imputar-lhe a responsabilidade, ao menos, como perpetrador indireto de crimes previstos no Estatuto já é muito importante, já que é um Chefe de Estado e de um país que sequer aceitou a jurisdição do TPI.

3.2 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL

Como visto na primeira parte deste trabalho, basicamente, um sujeito de direito é aquele que possui direitos e é capaz de contrair obrigações, sendo que, no âmbito internacional, alguns autores somam a isso a necessidade de se demonstrar a capacidade de interagir nessa plano jurídico. Na segunda parte, então, foi descrito o desenvolvimento da justiça internacional penal, perante a qual o indivíduo responde individualmente pelos delitos cometidos nessa condição. Por fim, foi apresentado o caso de Omar Al-Bashir, o qual esta sendo investigado por crimes descritos no Estatuto de Roma, porém é Presidente de um Estado que não aceitou este tratado internacional. Pode-se dizer que, se o indivíduo pode ser punido por uma justiça internacional é porque, de alguma forma, ele está obrigado por esta justiça. Entretanto, para ele estar obrigado, deve, de alguma forma, estar vinculado a este sistema jurídico.

3.2.1 Jus cogens e jurisdição universal

As normas de direito internacional podem ser de duas naturezas: positivas ou consuetudinárias, sendo que, entre ambas, há algumas que são consideradas jus cogens. Jus cogens são as chamadas normas imperativas de direito, as quais não podem ser derrogadas. De acordo com o artigo 53 da Convenção de Viena de 1969: “uma norma imperativa de Direito Internacional geral é a que for aceite e reconhecida pela comunidade internacional de Estados no seu conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de Direito Internacional geral com a mesma natureza.” (PELLET, 2003, p. 206)

A prática do genocídio, dos crimes contra a humanidade, bem como dos crimes de guerra são considerados condutas reprováveis pelo jus cogens. Estas normas imperativas visam à proteção da comunidade internacional como um todo. Nesse sentido, a necessidade de uma reparação, ou punição pelo cometimento destes crimes também são normas desta natureza. (ORAKHELASHVILI, 2008)

Em geral, essas normas são relacionadas às questões tratam de direitos humanos, ou seja, direitos de indivíduos. Segundo Orakhelashvili (2008, p. 246, tradução livre):

[...] a grande maioria das situações referentes a reparação de violações dos jus cogens dizem respeito aos direitos dos seres humanos. Isto é natural, porque a maioria dos casos de jus cogens são ‘casos em que a posição do indivíduo está envolvida, e nas quais as normas violadas são normas instituídas para a proteção do indivíduo’.[72]

Sendo desta forma, é defendido que estas normas criam obrigações erga omnes, ou seja, por mais que estejam vinculadas a um tratado específico, uma reclamação contra elas não necessita obrigatoriamente estar vinculada às partes envolvidas no tratado ou nos fatos. Um terceiro Estado poderia reclamar contra atos de violação do jus cogens ocorrendo em outro Estado e contra nacionais de outros ainda, mesmo que não tenha relação alguma com a situação, pois, como já destacado, o jus cogens são normas que visam proteger a comunidade internacional como um todo e, assim sendo, todos teriam legitimidade de reclamá-las. Além de outros Estados, esta natureza do jus cogens também justifica o acesso dos próprios indivíduos aos tribunais internacionais de direitos humanos, muito embora não sejam eles formalmente parte do tratado. (ORAKHELASHVILI, 2008)

No caso do cometimento dos crimes referidos anteriormente, entende-se que parte da reparação devida por um Estado seria a persecução e punição dos responsáveis por estes crimes. Ainda, de acordo com Orakhelashvili (2008, p. 265, tradução livre):

Da perspectiva do jus cogens, este aspecto da satisfação adquire uma importância específica. A persecução dos crimes contra a paz e a segurança da humanidade é um tema de interesse da comunidade internacional como um todo. Parece estar estabelecido que a jurisdição universal esteja disponível no caso de violação do jus cogens. Os Estados estão, em algumas circunstâncias, sob o dever de exercer a jurisdição universal através da extradição ou persecução do acusado, e é alegado que a responsabilidade individual dos perpetradores de crimes de guerra e crimes contra a humanidade está baseada em uma norma imperativa.[73]

Desta forma, admitindo-se que a punição dos perpetradores de crimes de guerra e contra humanidade é uma norma de jus cogens, é necessário que se admita a jurisdição universal[74] para que haja alguma aplicabilidade destas normas. Em geral, a questão da jurisdição universal é abordada sob o enfoque da sua aplicação por um terceiro Estado, e a discussão gira em torno da legitimidade deste Estado julgar um crime cometido em circunstâncias que normalmente não permitiriam a aplicação da sua jurisdição.

Todavia, com a instituição do Tribunal Penal Internacional, também se passou a debater a possibilidade deste organismo exercer a jurisdição universal. Inclusive, isto foi uma das questões mais debatidas na conferência de Roma, mas por força de algumas potências, não foi estabelecida no texto final (KAUL, 2000). A jurisdição universal permitiria que os crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra, previstos no Estatuto, fossem investigados pelo TPI, qualquer que fosse o local do cometimento e não importando a nacionalidade do agente ou das vítimas, o que, combinado com o princípio da complementaridade, poderia trazer mais legitimidade e efetividade ao Tribunal.

O argumento usado na conferência de Roma pelos alemães, que defendiam a jurisdição universal para os crimes principais, é muito plausível quando se entende como jus cogens o direito de punir os perpetradores dos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra:

[...] de acordo com o moderno direito internacional penal, genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, seguindo-se o princípio da jurisdição universal, são puníveis em qualquer lugar, observada a nacionalidade do suspeito, da vítima ou do local em que o crime foi cometido. Desde que os Estados membros das Nações Unidas podem exercitar a jurisdição universal para os crimes mencionados, eles podem, igualmente, pela ratificação do Estatuto, transferir esta jurisdição internacional para o Tribunal Penal Internacional. (KAUL, 2000)

Nesse sentido, a legitimidade do Tribunal para julgar estes crimes estaria garantida pela ‘transferência’ do direito ao exercício da jurisdição universal pelos Estados signatários do Estatuto ao TPI. Todavia, como já destacado, não foi essa a solução final adotada na conferência. Somente nos casos submetidos pelo Conselho de Segurança é que o Tribunal teria, ao menos em tese, uma jurisdição próxima à universal.

Essa prerrogativa do Conselho de Segurança é legitimada se for entendido que, ao aceitar a Carta das Nações Unidas, os Estados conferiram ao Conselho determinados poderes. A criação dos Tribunais ad hoc, pode ser um exemplo desses poderes implícitos do Conselho de Segurança. Foi considerado como uma forma pacífica de zelar pela paz e a segurança da comunidade internacional. Com este mesmo intuito é que lhe foi outorgado o poder de submeter Estados não signatários ao TPI (CRETELLA NETO, 2008).

Enfim, os crimes internacionais: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra são condenados pelo jus cogens, o qual, da mesma forma, legitima a chamada jurisdição universal para a persecução dos perpetradores destes crimes. Entretanto, no Estatuto de Roma não ficou determinado que o TPI tivesse este tipo de jurisdição. Seu alcance só passa a ser universal, na medida em que o Conselho de Segurança pode denunciar qualquer situação ao Tribunal, tendo em vista os poderes a ele conferidos na Carta das Nações Unidas.

Assim, levando-se em consideração que o Sudão é signatário da Carta das Nações Unidas, ele admitiu os poderes conferidos ao Conselho de Segurança. Então, indiretamente ele foi vinculado ao Estatuto de Roma, quando neste foi determinado que o Conselho de Segurança pudesse submeter situações em países não-signatários do Estatuto, já que se entende que isto está dentro das prerrogativas deste órgão de manutenção da paz e da segurança internacionais. Além disso, o fato de os crimes a serem julgados serem considerados jus cogens, resolve a questão do princípio do nullun crimen, já que são normas preexistentes. Portanto, com base no jus cogens e nos poderes do Conselho de Segurança, estaria o TPI legitimado a julgar os fatos ocorridos no Sudão e, por consequência, dos indivíduos nacionais deste país.

Essa é conclusão que se pode tirar de uma maneira mais prática com relação à forma como está sendo aplicado o Estatuto e a vinculação do país, no caso, o Sudão, ao TPI. Outra abordagem, mais voltada para a vinculação do próprio indivíduo é trazida pelo estudioso Marko Milanovi? (2011) que questiona a natureza das normas do Estatuto de Roma para analisar a vinculação dos indivíduos a este, conforme descrito na próxima seção.  

3.2.2 Estatuto de Roma: norma substantiva ou jurisdicional?

Para responder a questão de se o Estatuto de Roma vincula os indivíduos ou não, Marko Milanovi? (2011) propõe uma análise da natureza do tratado, se ele seria um estatuto substantivo ou jurisdicional. Para este autor, a problemática se encontra na questão de entender se as normas do Estatuto definem quando um indivíduo é criminalmente responsável ou se elas apenas dizem quando o corte pode estabelecer a sua jurisdição sobre violação de um indivíduo a normas que emanam de outras fontes do direito internacional, como o costume. O problema, segundo ele, de se considerar o Estatuto como norma substantiva é que, nesse caso ele estaria vinculando os indivíduos, os quais nunca consentiram em ser vinculados por ele, nem poderiam ter feito isso. (MILANOVI?, 2011)

 Para Milanovi? (2011) os estatutos dos tribunais anteriores ao TPI eram jurisdicionais, uma vez que não criavam nenhuma nova lei, apenas deveriam aplicar as leis costumeiras (e por vezes tratados) preexistentes. Assim, se for considerado o Estatuto de Roma como uma norma substantiva, para ele, este seria talvez o primeiro tratado a vincular diretamente os indivíduos, mas sendo o texto do Estatuto ambíguo no que diz respeito a esta questão, não se pode chegar a uma conclusão definitiva. Todavia, dependendo da interpretação que se der, diferentes serão as implicações. (MILANOVI?, 2011)

Apesar dessas ponderações, tendo em vista o princípio da legalidade, nullun crimen sine lege, e das expressas disposições de que os crimes a serem investigados pelo tribunal só poderiam ser aqueles cometidos após a entrada em vigor do Estatuto, ou da sua ratificação pelo país específico, faz com que haja uma maior tendência pela interpretação do mesmo como uma norma substantiva. Na decisão de confirmação de acusações contra Thomas Lubanga Dyilo, da República Democrática do Congo, a Câmara se manifestou confirmando uma interpretação do Estatuto como norma substantiva, afirmando que ele poderia ser acusado já que, no momento do cometimento dos crimes, já estava em vigor o Estatuto e descrita a conduta a ele imputada. (MILANOVI?, 2011)

A questão mais interessante investigada, porém, é o caso do Sudão, já que, este não aceitou a jurisdição do tribunal e esta foi, inclusive, estendida, retroativamente até o dia 1 de julho de 2002, quando o Estatuto entrou em vigor, mesmo tendo a resolução que submeteu o caso sido adotada apenas em 2005. Milanovi? (2011) pergunta-se se os acusados, neste caso, estavam vinculados ao Estatuto ao tempo em que se alega que cometeram seus crimes, ou, até mesmo, se poderiam estar. Um entendimento seria o de que, desde a entrada em vigor do Estatuto, todos os indivíduos estariam a ele vinculados, mas, para o autor, essa não seria uma resposta óbvia. Nem a submissão do Conselho de Segurança poderia impor aos indivíduos a responsabilidade individual. Assim, a solução encontrada por alguns poderia ser a de ser considerar que a responsabilidade dos acusados neste caso se dariam com base no direito consuetudinário, e não no Estatuto, o que daria abertura para que eles discutissem a questão da acusação ser feita com base nos crimes descritos no Estatuto. (MILANOVI?, 2011)

[...] se Omar al-Bashir for (um dia) processado criminalmente por violação de leis consuetudinárias, em vez do Estatuto de Roma, então Bashir deverá poder contestar as acusações que se baseiam nas previsões do Estatuto e que vão além da lei consuetudinária. Por exemplo, o mandado de prisão de Bashir aprova a sua acusação sob a perpetração indireta ou perpetração por meio da teoria da responsabilidade, de acordo com o artigo 25(3)(a) do Estatuto [...][75] (MILANOVI?, 2011, p. 33, tradução livre)   

O autor parte do pressuposto de que as normas consuetudinárias podem vincular indivíduos bem como terceiros, afastando assim os argumentos voluntaristas que alegam que os tratados só vinculam os Estados que os aceitaram, pois, uma vez que as normas consuetudinárias podem ser estendidas a terceiros e vincular indivíduos, os tratados também poderiam. Como exemplo de tratado que vincula terceiros, seja indivíduos ou atores não-estatais, ele cita o artigo 3 da Convenção de Genebra de 1949 que vincula todas as partes de um conflito armado não-internacional. Por fim, rejeitando o absoluto voluntarismo, e aceitando que os indivíduos podem ser vinculados por tratados, o autor aponta como próxima questão a ser respondida quando isso pode ocorrer. (MILANOVI?, 2011)

Nesse caso, para se admitir que o Estatuto de Roma vincule indivíduos nos casos como o do Sudão, deve-se admitir que o Estatuto substantivo deixe de ser aplicado e somente os vestígios das normas jurisdicionais persistam, fazendo-se necessária a referências às normas consuetudinárias; ou, admite-se que o Estatuto substantivo é mais amplo em seu escopo que a jurisdição da corte, aplicando-se universalmente e vinculando todos os indivíduos no mundo desde que entrou em vigor. Nesse sentido, de uma análise doa artigos 11, 12(3) e 24, pode-se perceber que o Estatuto permite que a sua competência seja estendida para antes de quando o Estado, que não era parte, aceitou a jurisdição do tribunal. (MILANOVI?, 2011) Assim, a explicação possível apontada pelo autor seria a de que:

[...] os Estados-partes do Estatuto de Roma não vinculam indivíduos por obrigações substantivas de direito criminal com base na sua nacionalidade ou presença no território do Estado. Pelo contrário, eles poderiam ter exercido jurisdição universal prescritiva, vinculando todo indivíduo no mundo desde 1 de julho de 2002 e, assim, evitando quaisquer problemas relativos ao nullum crimen, mesmo se a jurisdição da corte ela mesma fosse por planejamento mais delimitada.[76] (MILANOVI?, 2011, p. 40, tradução livre)

O autor conclui então que a parte substantiva do Estatuto deve ser aplicada com base na territorialidade e na nacionalidade. Nos outros casos, como no do Sudão o Estatuto deve ser considerado jurisdicional. Nesses casos os indivíduos estariam vinculados apenas com base no direito consuetudinário e a corte precisaria estabelecer em que medida as acusações feitas estão de acordo com os costumes. (MILANOVI?, 2011)

A análise feita por Milanovi? corrobora a visão de que a vinculação do indivíduo, no caso de um Estado não-signatário do Estatuto, ocorre em razão das normas costumeiras, o que se poderia delimitar para as normas imperativas, o jus cogens. Essa análise esclarece, entretanto, que, considerando que as acusações sejam feitas com base nessas normas consuetudinárias, a defesa dos acusados pode alegar que algumas das condutas a eles imputadas não são reprovadas pela comunidade internacional como um todo e, portanto, eles não poderiam ser por elas punidos.

Esse raciocínio não exclui o fato da vinculação ao Tribunal se dar pelo Conselho de Segurança, pois esta vinculação serve para legitimar o Tribunal a julgar esses indivíduos de países não-signatários, mas não vincula aos tipos penais que a eles podem ser imputados. Por isso é importante o debate trazido por Milanovi? sobre a natureza das normas do Estatuto. Não se poderiam julgar estes indivíduos, por mais que o Sudão, por exemplo, estivesse vinculado ao Estatuto, se não se considerar que a proibição do cometimento de tais crimes era anterior a prática deles também para os seus perpetradores.

Por fim, resta estudar os tipos de responsabilidade do direito, especialmente do Direito Internacional, para se compreender a mudança dos tipos de sanções aplicadas nesse âmbito, de um plano coletivo para o individual, nos casos de violação das normas internacionais.

3.2.3 Responsabilidade Coletiva x Responsabilidade Individual

No Direito Internacional, por muito tempo, a responsabilização por um ato ilícito, ou delito internacional, só poderia ocorrer por meio de uma sanção coletiva (fosse com a imposição do pagamento de uma indenização pelo Estado, fosse por meio de retaliações ou da guerra). Em outras palavras, o Estado era responsabilizado, mas, indiretamente, quem sofria a sanção eram todos os cidadãos, mesmo que em nada tivessem contribuído para o ato, unicamente por terem um vínculo jurídico com o responsabilizado. (KELSEN, 2010)

Nesse sentido, Kelsen considerava o Direito Internacional uma forma de direito primitivo, já que, além de as punições serem voltadas para a coletividade, o que imperava era o princípio da auto-ajuda. Ou seja, a aplicação da sanção não era feita por um órgão especial com poderes jurisdicionais, era descentralizada: quem teve seus interesses violados pelo autor do delito, poderia aplicar-lhe a sanção. (KELSEN, 2010) Isso é o que ocorria, via de regra, nas situações de guerra. Ao Estado que tinha um interesse violado, era considerado legítimo, pela comunidade internacional, que aplicasse uma sanção contra o Estado que lhe infligiu o dano, iniciando-se, normalmente, uma guerra.

 Os povos primitivos costumavam aplicar e acreditar nas sanções coletivas, fosse um castigo divino, fosse a punição de toda uma família ou clã em razão do delito cometido por apenas um de seus membros. A sanção coletiva também costuma ser aquela voltadas para as pessoas jurídicas que é, via de regra, o que ocorre no caso dos Estados, pessoas jurídicas de Direito Internacional por excelência. (KELSEN, 1995)

Quando um Estado comete um delito, toda a comunidade de pessoas a ele vinculadas pode sofrer os efeitos das sanções. Por exemplo, se um Estado invade parte do território de outro, além deste poder vir a sofrer com uma guerra, pode ser que venham a ser impostas outras sanções, como sanções econômicas, bloqueios comerciais, ou impedimentos de manter relações com outros países, etc. Nesse sentido, quem vai acabar realmente sofrendo com as sanções aplicadas, seja a guerra, sejam as demais represálias, é o povo que vai ter que se defender e que vai ser privado de meios para importar e exportar, por exemplo. Portanto, já que o Estado é uma entidade abstrata, uma pessoa jurídica, quem sofre com as sanções são os indivíduos, mas não como tais, e sim como uma coletividade vinculada juridicamente aquele Estado delinqüente.[77] (KELSEN, 1995)

Nesse sentido Kelsen ainda afirma (1995, p. 109):

As sanções específicas do Direito internacional, guerra e represálias, têm esse caráter [coletivo]. Na medida em que implicam privação forçosa de vida e liberdade de indivíduos, elas são dirigidas contra seres humanos, não porque esses indivíduos tenham cometido um delito internacional, mas porque são sujeitos do Estado cujo órgão violou o Direito internacional. No direito criminal moderno, porém, prevalece o princípio da responsabilidade individual.

Por outro lado, o mesmo autor afirma que no direito dos povos civilizados os indivíduos são responsabilizados pelas condutas por eles cometidos como tais. Nesses casos, para apurar a responsabilidade é averiguada a intenção, ou seja, a culpa do delinqüente, enquanto com relação à responsabilidade coletiva, esta é considerada sempre absoluta, não havendo como se mensurar os diferentes níveis de culpa para aplicar as sanções. (KELSEN, 2010)

Os indivíduos podem agir como órgãos do Estado quando as obrigações e direitos do Estado são suas obrigações e direitos. Todavia, agir em conformidade com esta ordem jurídica é um dever do indivíduo e, quando não o faz, a sanção deve se dirigida contra ele como tal, e não contra o Estado “já que um indivíduo é órgão [...] do Estado apenas na medida em que sua conduta se conforme com as normas jurídicas que determinam sua função. No momento em que um indivíduo viola uma norma jurídica, ele não é um órgão do Estado” (KELSEN, 1995, p. 199-200) Assim, quando um indivíduo comete um crime, violando a ‘vontade’ do Estado, a sua responsabilização, seja no âmbito interno ou internacional, deve ser feita de maneira individual e não coletiva, caso contrário estar-se-á a punir inocentes pela conduta de um único criminoso. Isso pode ser considerado ainda mais grave quando se está diante de países que possuem regimes ditatoriais apoiados apenas por uma minoria, já que as sanções internacionais com caráter coletivo irão atingir todos os indivíduos vinculados àquele Estado, tenham eles concordado ou não com as atitudes tomadas por seus governantes.

Por outro lado, há algum tempo já existem situações que o Direito Internacional impõe obrigações diretamente aos indivíduos, mas, estes primeiros casos, não se confundem com os crimes tratados anteriormente, como de guerra ou contra a humanidade, que podem ser imputados ao próprio Estado e praticados em nome dele. É o que acontece, por exemplo, como já referido no primeiro capítulo, nos casos de pirataria, quando o Direito Internacional permite que os Estados punam os agentes desse tipo de crime da forma que lhes convier, pois de acordo com o Direito Internacional essa conduta é criminosa e deve ser punida (KELSEN, 1995). Mesmo assim, é um primeiro sinal da imposição de um ‘dever’ pelo Direito Internacional diretamente ao indivíduo como tal. Muito embora não haja uma sanção específica a ser imposta, caso o indivíduo cometa atos de pirataria, poderá ser punido em qualquer lugar do mundo e esta punição será aceita pela comunidade internacional como legítima.

Na época em que Kelsen teceu essas reflexões, a instituição de um Tribunal Internacional Penal permanente ainda era um sonho muito distante. Todavia, com base nessa análise por ele feita é possível verificar de certo modo, uma evolução do direito, tanto interno, quanto internacional. Assim como nos povos primitivos as sanções eram coletivas e, com o passar do tempo foram se individualizando até que se chegou, ao menos nas civilizações ocidentais modernas, ao princípio de que uma sanção não pode ultrapassar a pessoa que praticou o delito, direta ou indiretamente, no âmbito do Direito Internacional, pode-se dizer que também há uma evolução nesse sentido.

Atualmente, muito embora as sanções contra os Estados como um todo, sejam retaliações ou guerras, ainda sejam comumente aceitas e aplicadas pela comunidade internacional, questiona-se cada vez mais a sua efetividade, já que quem normalmente acaba sofrendo é a população e não os governantes que tomaram as atitudes consideradas violadoras do Direito Internacional. Nesse sentido, a aplicação e a efetividade da justiça internacional penal são muito importantes, especialmente quando os ilícitos são cometidos por Chefes de Estado, como Omar Al-Bashir, que normalmente se considerariam cobertos pelas imunidades, já que tentam enquadrar suas atitudes como políticas de Estado para isentar-se de qualquer responsabilidade individual e acabam prejudicando toda uma população por atitudes cometidas com o apoio de apenas uma parte desta.

A responsabilização individual é importante também na medida em que muitas das violações praticadas não acontecem contra um Estado diferente. Grande parte dos crimes de genocídio, contra a humanidade e até de guerra, são cometidos por grupos, sejam do governo ou não, dentro do território de um mesmo Estado, contra nacionais deste mesmo país. Dessa forma, uma sanção coletiva seria, além de provavelmente ineficaz, injusta, pois atingiria tanto os perpetradores dos crimes quanto as suas vítimas, sendo que estes existem em ambos os lados de uma luta, normalmente. Com a identificação e persecução dos indivíduos responsáveis, por mais que não sejam de todos eles, ao menos serão poupados os inocentes, e os líderes e mentores das práticas criminosas, espera-se, sentir-se-ão ao menos um pouco mais vulneráveis, pois haverá a possibilidade de serem responsabilizados individualmente por suas condutas.  

Bianchi (2009, p. p. 24, tradução livre) ressalta que:

Em geral, a dualidade dos regimes de responsabilidade do estado e individual não devem ser vistas como um desenvolvimento negativo. Apesar de sua operação diferente, os dois regimes podem agir de forma complementaria e aumentar a eficácia da justiça internacional penal. O caráter predominantemente indenizatório da responsabilidade do estado e o caráter punitivo do direito processual penal contra indivíduos são parte e parcela da estrutura dos remédios contemporâneos do direito internacional.[78]

Em outras palavras, tanto a responsabilização do Estado quando a dos indivíduos é importante e devem sem aplicadas de forma complementar. Ao Estado pode ser aplicada uma sanção, no âmbito de tribunais de direitos humanos, por exemplo, de indenização. Já os perpetradores de condutas que violam estes direitos, quando configurarem crimes internacionais, deverão por estes serem julgados, sejam nos seus países, quando possível, seja por um tribunal internacional, pois a garantia da impunidade é vista como um dos incentivos a, especialmente, altos membros de governo e forças armadas, para o cometimento das mais diversas atrocidades, muitas vezes, contra o seu próprio povo.

3.3 OMAR AL-BASHIR E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Apresentados estes aspectos, volta-se ao caso de Omar Al-Bashir, para ilustrar o que foi explanado. Pelos fatos apurados pela Comissão Internacional para investigação sobre Darfur e pelo Procurador do TPI, Omar Al-Bashir seria perpetrador indireto de crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Sua situação foi submetida ao TPI pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, já que o Sudão não é signatário do Estatuto de Roma e, apesar de ele ser um Chefe de Estado, as condutas criminosas são imputadas a ele como indivíduo, sendo que como tal deverá sofrer as devidas sanções.

Os crimes imputados têm natureza de jus cogens. Assim, tanto a proibição da sua prática, quanto a imposição de sua persecução, são normas imperativas de direito internacional. Do mesmo modo, entendeu o TPI-ex-I no caso Tadi? que “certos crimes como crimes de guerra e crimes contra a humanidade ofendem o interesse da comunidade transcendendo o interesse de um Estado individual e chocam a consciência da humanidade, e consequentemente justificam a ação no interesse da comunidade para processar e suprimir esses crimes.[79]” (ORAKHELASHVILI, 2008, p. 291, tradução livre) Essa afirmação serve também para o caso do Sudão. Os crimes ali cometidos ofendem a comunidade internacional como um todo e, portanto, pelo próprio Direito Internacional, há um dever imperativo de suprimir estes crimes e processar os seus responsáveis.

Nesse caso, algum Estado poderia ter invocado a jurisdição universal. Já que:

A criminalização e subsequente jurisdição universal sob tratados humanitários refletem o fato de que os crimes jus cogens estão sujeitos a persecução em qualquer lugar e quem quer que o tenha cometido, independentemente de qualquer ligação com o Estado do foro para o crime em questão. Essa jurisdição universal reflete a natureza da jurisdição universal para os crimes do jus cogens – persecução sem qualquer vínculo com o crime. Isso corre em paralelo ao fato que os tratados humanitários operam no interesse da comunidade e incorporam obrigações integrais não divisíveis em relações bilaterais, ou seja, eles incorporam o jus cogens e prevêem a sua jurisdição universal para as violações que eles declaram objetivamente repreensíveis.[80] (ORAKHELASHVILI, 2008, p. 292)

Todavia, como essa é uma questão ainda controversa e, no caso em apreço, as violações, em geral, não ultrapassaram as fronteiras do próprio Estado, ou quando o fizeram – como no caso do contingente populacional que se deslocou de Darfur para o Chade – o país envolvido também não teria força ou estrutura para exercer essa jurisdição, a viabilidade deste princípio ser posto em prática é muito baixa, além de politicamente não ser interessante para nenhum país específico assumir a responsabilidade.

 Deste modo é que se mostrou pertinente a previsão de que o Conselho de Segurança pudesse submeter casos ao TPI. Este órgão assim, com base nos poderes que lhe foram outorgados na Carta das Nações Unidas, aceita, inclusive, pelo Sudão, pode investir o TPI de legitimidade para julgar os crimes ocorridos no território desse país, muito embora o Tribunal não tenha jurisdição universal. Desta forma, independentemente de ter o Sudão aceito ou não o TPI, a combinação do fato de os crimes praticados serem jus cogens, com os poderes de manutenção da paz e da segurança internacionais conferidos ao Conselho de Segurança, permitem que Omar Al-Bashir seja investigado e processado perante o tribunal, bem como, caso consigam o deter para julgamento, ser condenado e penalizado individualmente pelos crimes que foi responsável e que, como sempre ressaltado por Orakhelashvili, são de interesse da comunidade internacional como um todo.

Ainda, como já adiantado na exposição dos questionamentos de Milanovi?, apesar dessa combinação anteriormente exposta legitimar o julgamento de Omar Al-Bashir, no que concerne à questão material dos crimes, considerando-os como jus cogens e, portanto, que o julgamento se daria não com relação aos tipos descritos no Estatuto de Roma, mas sim nas condutas já condenadas pela comunidade internacional, entende-se que permitirá, a sua defesa, alegar que certas condutas a ele imputadas não tem caráter de jus cogens e portanto, não poderiam ser processadas. Na prática, entretanto, como são várias as condutas imputadas e, a maior parte delas é realmente considerada reprovável pelo jus cogens, seu processamento, considerando-se o Estatuto como uma norma jurisdicional, não teria qualquer problema.

Por outro lado, se fosse feita uma análise positivista do Estatuto e considerá-lo apenas como norma substantiva, tornar-se-ia mais difícil legitimar a punição de Al-Bashir pelos crimes cometidos antes de 2005, já que, nesse período, ele não estaria vinculado ao TPI e, portanto, seu processamento estaria violando o princípio exposto no próprio Estatuto do nullum crimen, nulla poena sine praevia lege. Porém, esta questão ainda deverá ser levantada pelos defensores dos acusados nessa situação para que seja possível uma análise mais completa, tanto teórica quanto prática, desta questão que é bastante complexa e cria inúmeros questionamentos. No caso de Omar Al-Bashir, verifica-se, no entanto, que apesar de os mandados de prisão serem requeridos e deferidos com bases nos crimes previstos no Estatuto, poder-se-ia dizer que o embasamento e a legitimação para a sua persecução estão, na verdade, no jus cogens, já que praticados antes dele ter qualquer vinculação com o Estatuto.

Por fim, cumpre explicar a importância da responsabilização individual no caso do Sudão. Primeiramente, o que é importante destacar é que os crimes ocorreram dentro do território do Estado, contra nacionais deste mesmo. Ainda, conforme visto, por estas violações serem de interesse da comunidade internacional como um todo, haveria a permissão do Direito Internacional para a aplicação de sanções, mas, com base no princípio da auto-ajuda isso seria inviável, já que não houve outro Estado envolvido, sendo então, com base no próprio jus cogens a legitimação da aplicação dessa sanção.

A sanção, entretanto, caso fosse coletiva, iria atingir toda a população do país, o qual já é bastante pobre, causando mais sofrimento aos inocentes do que aos verdadeiros responsáveis pelas atrocidades cometidas. Muito embora desde antes da instituição do TPI sanções, especialmente econômicas, tenham sido aplicadas ao país, em nada contribuíram para a resolução dos conflitos no local, além de não serem muito eficazes neste caso, já que a China, maior parceira comercial do país, continua suas relações normalmente. (BBC, 2007)

Nesse caso, muito embora pelo estágio de desenvolvimento ainda não completo da justiça internacional penal, a qual não possui um poder de polícia ou qualquer outro que pudesse forçar a prisão de Omar Al-Bashir onde quer que ele esteja, a sua persecução, ao menos, poupa a população inocente de mais privações dos que a que já vem sendo impostas pelo exterior e pelo próprio governo. Muito embora seja essa a intenção, sabe-se que, na prática, a penalização de condutas não tem o condão de evitar que outras iguais sejam cometidas. Todavia, tendo em vista a natureza dos crimes cometidos e o fato de seus perpetradores em geral, acreditarem na sua impunidade, a eventual condenação de Omar Al-Bashir poderá servir de exemplo para outros criminosos que acreditam que nunca serão punidos, pois acobertados pelas razões de Estado.

Enfim, apesar de ainda haver quem acredite que os indivíduos sequer são sujeito de Direito Internacional, verifica-se que este vem, juntamente com os mecanismos de sua implementação, evoluindo no sentido de vincular todo e qualquer indivíduo às suas normas. O reconhecimento do caráter de jus cogens às normas que proíbem a cometimento dos crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra, e a criação de mecanismos para a existência de uma ‘quase-jurisdição universal’ no âmbito do TPI, demonstram a preocupação da comunidade internacional em responsabilizar individualmente os responsáveis por estes, e não apenas aplicar sanções de caráter coletivo contra a população, ou indenizatório em favor das vítimas.

Assim os indivíduos, especialmente aqueles que estão em posição de comando dentro de suas comunidades, sejam Estados reconhecidos ou não, não podem mais justificar suas condutas criminosas com base nas razões de Estado, pois nem a este, nem ao indivíduo, é permitida a violação das normas reconhecidas como de interesse de toda a humanidade. Portanto, apesar das muitas inconsistências que ainda existem com relação à aplicabilidade das normas de Direito Internacional Penal, torna-se patente que a comunidade internacional não tolera mais atos de tamanha atrocidade e está em busca de uma forma de punir os responsáveis por elas sem penalizar ainda mais as comunidades que já foram vítimas dos crimes e, injustamente, acabam sendo também ‘vítimas’ das sanções aplicadas ao seu Estado.


CONCLUSÃO

Há uma convergência na doutrina no sentido do reconhecimento do indivíduo como sujeito de Direito Internacional. Todavia, tendo em vista que existem diferentes graus de subjetividade jurídica nesse âmbito, ainda existem muitos debates sobre a forma de interação do indivíduo com esse plano jurídico. Na esfera do Direito Internacional Penal, especialmente por ser um ramo relativamente recente e a sua primeira estrutura jurisdicional permanente estar ainda se firmando, muitas questões são levantadas sobre a natureza, a legitimidade e a forma de vinculação do indivíduo às suas normas, bem como sobre como se dá a  responsabilização em razão delas. Nesse sentido, o caso de Omar Al-Bashir se mostrou bastante pertinente para o estudo que se propôs no presente trabalho, já que, além de ser um Chefe de Estado, seu país não é signatário do Estatuto que instituiu e rege o Tribunal Penal Internacional, mas mesmo assim sua persecução está sendo realizada.  

Um sujeito de Direito Internacional é aquele que é titular de direitos e pode contrair obrigações com base nessa esfera jurídica. Nesse sentido, os Estados são os principais sujeitos de Direito Internacional, uma vez que estas normas são voltadas para regular as relações entre eles, criando direitos e obrigações aos quais estão vinculados. Ainda, são eles mesmos os criadores destas normas, além de, via de regra, serem os entes que têm amplo acesso aos tribunais internacionais. Bem como os Estados, as Organizações Internacionais são reconhecidas como sujeitos de Direito Internacional, já que podem assinar tratados e estão obrigadas a se pautar conforme as normas de Direito Internacional. Todavia, é dito que sua subjetividade é derivada, já que sua própria existência é condicionada pela vontade dos Estados. Nesse sentido, o Estado seria o sujeito originário, enquanto as Organizações Internacionais seriam sujeitos derivados, tendo aquele o grau máximo de subjetividade neste âmbito, enquanto estas, apesar de não haver mais controvérsia sobre o fato de serem ou não sujeitos de direito, o são em um grau inferior ao daqueles.

Outras entidades, chamadas coletividades não estatais, como as coletividades beligerantes, a Santa Sé e a Cruz Vermelha, entre outras, são consideradas por grande parte da doutrina como sujeitos de Direito Internacional porque, em alguma medida, possuem direitos e obrigações criados por este. Assim como as Organizações Internacionais essas comunidades têm um menor grau de subjetividade e seu reconhecimento, bem como a amplitude dos seus direitos e obrigações, em geral, são definidas por normas determinadas pelos Estados. Mesmo assim, com base no conceito de que sujeitos são todos que são titulares de direitos e podem contrair obrigações, percebe-se que estas entidades se enquadram como tais, já que têm sua própria existência e suas relações regidas pelo Direito Internacional.

Os indivíduos, por sua vez, muito embora ainda existam autores que afirmam que não possuem subjetividade internacional, estão também vinculados a normas de Direito Internacional. Desde os primeiros estudiosos do Direito Internacional existe uma corrente de pensadores que defendem que, assim como os outros ramos do direito, este cria direitos e obrigações para os indivíduos, pois são estes que, no fim, formam e movimentam as sociedades e os Estados. Segundo a corrente contrária, os indivíduos não seriam sujeitos, pois, de uma forma ou de outra dependem dos Estados para interagirem com a esfera jurídica internacional, já que mesmo quando a eles é permitido acessar diretamente os tribunais internacionais, só irão conseguir fazê-lo se, de alguma forma, estiverem vinculados a um país que aceitou a jurisdição de tal tribunal. Esse argumento, entretanto, é rechaçado pelos autores que entendem que o fato de o indivíduo ter acesso direito às Cortes de Direitos Humanos, bem como poder ser individualmente punidos pelos Tribunais Penais Internacionais, é suficiente para lhe garantir o status de sujeito de Direito Internacional, já que nesses casos, estaria de acordo com a definição mais aceita do que é um sujeito de direito.

Concluiu-se, desta forma, no primeiro capítulo do trabalho que, tendo em vista a possibilidade do acesso direto de indivíduos a algumas cortes internacionais de Direitos Humanos, notadamente a CEDH e, o fato de indivíduos poderem ser punidos como tais pelos tribunais penais internacionais, mesmo sem a aceitação formal do Estado ao qual estão vinculados (como no caso Al-Bashir), o indivíduo pode ser considerado sujeito de Direito Internacional. Esta subjetividade não está no mesmo grau que a dos Estados, mas é suficiente para lhe garantir a possibilidade de ser sujeito ativo ou passivo perante cortes internacionais como pessoa física, sem a necessidade de endosso ou qualquer outro instituto de representação.

Muito embora tenha havido tentativas anteriores, a violação de deveres impostos pelo Direito Internacional ao indivíduo como tal, só pode ser punida por um órgão internacional ao final da II Guerra Mundial. Em Nuremberg, altos oficiais foram acusados e condenados por um tribunal criado pela vontade conjugada de vários Estados que reconheceu como crimes contra a humanidade, várias das condutas praticadas por estes indivíduos. Não foram aceitas como excludentes da responsabilidade alegações de que os fatos foram praticados como atos de Estado ou sob ordens superiores. Deste modo, permitiu-se pela primeira vez que indivíduos fossem punidos criminalmente por crimes internacionais e por uma justiça internacional institucionalizada. De modo parecido, foram realizados na mesma época também os julgamentos em Tóquio. A partir daí se iniciou o desenvolvimento concreto de uma justiça internacional penal que seria responsável por punir indivíduos que praticassem crimes condenados pela comunidade internacional como um todo.

Apesar desse início, no período pós-guerra, não houve desenvolvimento no sentido da concretização de uma justiça internacional penal permanente, tendo em vista o cenário criado pela Guerra Fria. Foi apenas na década de 1990 que se voltou a estudar a possibilidade de criação de um Tribunal Penal Internacional permanente. Enquanto este não saia do papel, a partir de duas resoluções do Conselho de Segurança da ONU foram criados os tribunais ad hoc para ex-Iugoslávia e para Ruanda, que continuam funcionando até hoje. Algum tempo depois, enfim, em 1998, foi aprovado o Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional, sendo que este só entrou em vigor em 2002, após a sexagésima ratificação.

O Estatuto para o Tribunal Penal Internacional tentou sanar as maiores críticas feitas aos seus antecessores, mas não atingiu as expectativas de muitos entusiastas da idéia. Entretanto, tendo em vista a sua natureza, o fato de ter sido aprovado, entrado em vigor e o Tribunal ter sido instalado e estar funcionando, já é uma grande vitória. Assim como em Nuremberg, no TPI não é aceito, em geral, como excludente, o fato de um indivíduo agir em nome do Estado ou sob ordens de superiores. O Estatuto deixou bem claro, ainda, que é competente para julgar pessoas físicas. Uma questão controversa, entretanto, e que foi motivo de muitos debates na conferência de Roma, foi a delimitação da competência territorial do TPI. A regra geral é que ele pode julgar crimes ocorridos no território dos países signatários, ou praticados por nacionais destes países. Por outro lado, no caso da ocorrência de crimes previstos no Estatuto em um país não signatário do mesmo, o Conselho de Segurança pode agir com base no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas e submeter o caso ao TPI, podendo, como fez no caso do Sudão, determinar que sejam investigados os fatos desde a data em que o Estatuto entrou em vigor. Desta forma, criou-se uma possibilidade de ampliação da jurisdição do Tribunal para uma abrangência quase que universal.  

Essa evolução histórica da justiça internacional penal, demonstrada no segundo capítulo, serviu para evidenciar como se deu o desenvolvimento do Direito Internacional Penal e, consequentemente, a possibilidade de punição de indivíduos por violações ao Direito Internacional por um órgão jurisdicional internacional. Além disso, ficou claro que estes tribunais visavam punir especificamente os indivíduos, e não os Estados ou grupos aos quais estavam vinculados, demonstrando o caráter de vinculação individual das normas penais internacionais.

Nesse sentido, visando à responsabilização individual dos culpados pelas atrocidades cometidas na região de Darfur, no Sudão, o Conselho de Segurança da ONU submeteu a situação deste país ao TPI. No caso, em razão de problemas de terras e políticas protecionistas com relação a alguns grupos, os outros, que se sentiam rechaçados pelo governo, organizaram-se em grupos que faziam ataques contra estruturas estatais. Sob a justificativa de que estavam apenas contra-atacando e defendendo as estruturas do Estado, o governo o os grupos que o apoiavam iniciaram atividades que extermínio de populações, não só por meio de assassinatos, mas especialmente pela destruição de cidades e vilas e dos meios de sobrevivência dessas populações, forçando-as a se deslocarem para países vizinhos ou regiões com poucos recursos naturais. Omar Al-Bashir, como presidente do país, passou a ser investigado como perpetrador indireto de crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra, nos termos do Estatuto de Roma e contra ele já foram expedidos dois mandados de prisão.

Dessa forma, pode-se verificar que Omar Al-Bashir , como indivíduo, muito embora seu Estado não seja signatário do Estatuto de Roma, está sendo investigado e pode ser processado perante o TPI. No entanto, a possibilidade dele ser processado por estes crimes, pode ser justificada pela natureza de jus cogens das normas que proíbem a prática de tais crimes e, portanto, permitem a sua persecução. Os crimes considerados reprováveis pelo jus cogens são considerados crimes cometidos contra a comunidade internacional como um todo e, portanto, ensejariam a aplicação da jurisdição universal. Defenderam alguns, que em razão dessa prerrogativa de jurisdição universal criada pelo jus cogens para os Estados, estes poderiam transferi-la para o TPI, mas isso não foi aceito no Estatuto de Roma. Por outro lado, foi concedido o poder ao Conselho de Segurança, o qual estaria legitimado pela Carta das Nações Unidas, para submeter casos ao Tribunal, mesmo quando se relacionem especificamente a um Estado não-signatário. Desse modo, além de o Conselho de Segurança estar legitimado a submeter o caso por força da Carta da ONU, a natureza de jus cogens dos crimes investigados, considerados assim existentes inclusive antes da entrada em vigor do Estatuto, justificariam a permissão de que casos anteriores à Resolução que os submeteu ao Tribunal possam ser investigados e julgados por este.

De outro enfoque, a questão da vinculação do indivíduo ao Estatuto de Roma pode ser analisado com base na verificação da natureza deste tratado. As normas ali contidas podem ser substantivas ou jurisdicionais. Se consideradas substantivas, isso implicaria, no caso do Sudão, que não poderiam ser aplicadas antes da aprovação da Resolução do Conselho de Segurança, sob pena de se estar violando o princípio de nullum crimen sine lege. Por outro lado, se o Estatuto for considerado como uma norma jurisdicional, os crimes imputados aos acusados seriam aqueles reprovados pelo direito consuetudinário e não os do Estatuto e dariam margem para que a defesa alegasse que determinadas condutas imputadas aos acusados não eram normas de direito consuetudinário e, portanto, eles não poderiam ser punidos por elas. Entendeu-se, sobre isso, que no caso das competências gerais do TPI, as normas devem ser consideradas substantivas, mas no caso das situações submetidas pelo Conselho de Segurança, as normas devem ser consideradas jurisdicionais e a imputação dos crimes deve se dar com base no direito consuetudinário e não nos descritos no Estatuto.  

Além disso, as normas de Direito Internacional Penal trouxeram uma nova perspectiva de responsabilização dentro do Direito Internacional. Pelo Direito Internacional, normalmente, as sanções aplicadas a algum delito cometido por um de seus sujeitos é aplicada coletivamente, ou seja, quando um Estado é punido, todos os indivíduos a ele vinculados acabam sendo punidos junto, mesmo que em nada tenham contribuído para o delito. Desta forma, assim como o direito interno evoluiu de um direito primitivo pautado na auto-ajuda a na responsabilização coletiva para um direito de responsabilização individual, o Direito Internacional segue no mesmo caminho. Entretanto, tendo em vista as peculiaridades da esfera internacional, nesse âmbito a responsabilização coletiva e a responsabilização individual são vistas como complementares.

De tal modo, com base no caso narrado e nas reflexões tecidas, pode-se, ao final do terceiro capítulo, enfim analisar a questão do indivíduo como sujeito do Direito Internacional Penal, com base no caso de Omar Al-Bashir, e responder a questão de como pode o indivíduo ser vinculado e responsabilizado com base nesse ramo do direito.

Concluiu-se, então, que os crimes imputados ao presidente do Sudão têm natureza de jus cogens e, portanto, considerados cometidos contra a comunidade internacional como um todo. Nesse sentido, sua persecução também era uma norma imperativa de direito. Já que na prática seria praticamente impossível algum Estado evocar o princípio da jurisdição universal para investigar e punir os crimes por ele cometidos, mostrou-se pertinente a possibilidade de o Conselho de Segurança da ONU poder submeter tal caso ao Tribunal Penal Internacional, e, assim o fazendo, investiu o tribunal de legitimidade para efetuar o julgamento do caso. Além disso, conforme a análise feita da natureza do Estatuto, percebeu-se que, para que haja coerência no que ali está descrito, é necessário que no caso de Al-Bashir suas normas sejam entendidas como jurisdicionais – ou seja, os crimes a ele imputados devem ser os do direito consuetudinário e não os tipificados no Estatuto – para que ele possa ser processado por crimes cometidos antes da adoção da Resolução pelo Conselho, para não haver ofensa ao princípio nullum crimen sine lege. Por fim, verificou-se a importância da passagem da responsabilização coletiva para a responsabilização individual no âmbito do Direito Internacional, pois, muito embora ainda não tenha havido o julgamento de Al-Bashir, a possibilidade de punição individual de um Chefe de Estado por crimes cometidos no território do seu próprio país, pode ser visto como uma forma de intimidar outros criminosos deste porte, que se sentiam imunes a qualquer responsabilização por sua posição privilegiada diante do Direito Internacional tradicional.

O indivíduo, por mais que não esteja diretamente vinculado a um tratado internacional, está vinculado ao Direito Internacional, especialmente às normas jus cogens, e pode, portanto, ser punido individualmente, qualquer que seja a sua posição, pelas violações que praticar. Enfim, muito embora na prática ainda não possam ser sentidos os resultados das atividades do Tribunal Penal Internacional, espera-se que o vislumbre da possibilidade de uma eventual punição individual por líderes governamentais, chefes de grupos armados ou exércitos revolucionários, entre outros, sirva como motivo de reflexão e permita que muitos deles enxerguem um caminho mais pacífico para resolver as suas mazelas, poupando inúmeros inocentes e tornando o mundo mais pacífico e seguro.


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Notas

[1] O termo Direito Internacional usado durante todo este trabalho é o referido usualmente como Direito Internacional Público, não tendo a pretensão de englobar aspectos do chamado Direito Internacional Privado.

[2] Em 1932, George Scelle, ao intitular sua obra Précis de droit des gens, esclareceu que desejava retomar o termo ‘Direito das gentes’ que não se encontrava desvalorizado mas apenas caído em desuso. Advertiu, depois, que a palavra ‘gens’ não devia ser tomada exclusivamente na sua etimologia latina, que visa as coletividades organizadas, mas ‘no seu sentido vulgar e corrente de indivíduos considerados isoladamente enquanto tais e, coletivamente, enquanto membros das sociedades políticas’. Na sua opinião, o termo ‘direito internacional’ é inexacto, pois a sociedade internacional não deveria ser senão uma sociedade de indivíduos. (PELLET, 2003, p. 38) Segundo Mello (2004, p. 808) o “’jus gentium’ de Roma, [...] era um direito entre indivíduos.”

[3] No mesmo sentido, Carlos Roberto Husek (2007, p. 49) define pessoas internacionais como “os entes destinatários das normas jurídicas internacionais e têm atuação e competência delimitadas por estas”.

[4] O Clássico da política mundial ‘Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma República Eclesiástica e Civil’, de Thomas Hobbes, faz uma analogia do Estado com um grande monstro mitológico. “Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã que se chama República, ou Estado (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimentos ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, atados à sede de soberania, todas as juntas e todos os membros se movem para cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e a prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus Populi (a segurança do povo) é a sua tarefa; os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas, são a memória; a eqüidade e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a doença; e a guerra civil é a morte. Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes do Corpo Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação.” (HOBBES, 2008, p.12-13. Destaques no original.)

[5] Já Rousseau, na sua obra ‘Do Contrato Social’, defende que o Estado surgiu de uma espécie de associação de indivíduos para defenderem-se e garantirem a sua própria liberdade individual. “Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado. (ROUSSEAU, 2002, p. 26)

[6] Importante destacar que a definição de população não se confunde com a de povo ou nação. Estes últimos não podem ser considerados como elementos caracterizadores do Estado, já que dentro de um Estado pode haver diversas nações ou povos, não existindo um acordo, porém, sobre o que seria realmente uma nação ou um povo (PELLET, 2003.)

[7] A generalidade da jurisdição significa que o Estado exerce no seu domínio territorial todas as competências de ordem legislativa, administrativa e jurisdicional. A exclusividade significa que, no exercício de tais competências, o Estado local não enfrenta a concorrência de qualquer outra soberania. Só ele pode, assim, tomar medidas restritivas contra pessoas, detentor que é do monopólio do uso legítimo da força pública. (REZEK, 2010, p. 166)

[8] Hans Kelsen se opunha a teoria de que a soberania é qualidade essencial do Estado. Para o autor, “dizer que o Estado é soberano significa que a ordem jurídica nacional é uma ordem acima da qual não existe nenhuma outra.” (KELSEN, 1995, p. 372) Nesse sentido, conclui o estudioso que a soberania “não é um fato que pode, ou não, ser observado. Não se pode dizer que o Estado ‘é’ ou ‘não é’ soberano; pode-se apenas pressupor que ele é ou não é soberano, e essa pressuposição depende da teoria que usamos para abordar a esfera dos fenômenos jurídicos.” (KELSEN, 1995, 372-373). As teorias a que o autor se refere trazem a hipótese da primazia do direito nacional e da primazia do direito internacional.  

[9] Existem debates neste aspecto sobre a questão dos chamados micro-Estados, como Mônaco, San Marino, Luxemburgo, Lichteinstein, Andorra, os quais possuem uma dependência muito grande dos Estados que estão ao seu redor. (BROWNLIE, 1997; REZEK, 2010)

[10] Isto, inclusive, esta positivado na Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados, que dispõe: “Artigo 1 O Estado como pessoa de Direito Internacional deve reunir os seguintes requisitos:  I. ter uma população permanente; II. possuir território definido; III. possuir um governo; e IV. ter capacidade para estabelecer relações com outros Estados.” (BRASIL, 1937)

[11] O principal requisito normalmente exigido é um número mínimo de ratificações para que a organização passe a existir.

[12] A exigência de um acordo explica-se facilmente: os Estados querem ter a oportunidade de exprimir o seu consentimento ao aparecimento de uma pessoa jurídica cujo funcionamento terá sempre, mesmo que seja em graus variáveis, incidências sobre o conteúdo ou o exercício das suas próprias competências. Cada Estado está, assim, em condições de só participar numa organização internacional depois de ter expresso esse desejo [...] por ratificação, aprovação, adesão à carta constitutiva, mais excepcionalmente, por simples assinatura. (PELLET, 2003, p. 594)

[13] “A Comissão do Reno (Tratado de Paris de 1814 e Ato Geral de Viena de 1815) é a mais antiga delas; em 1956 (Tratado de Paris) foi criada a Comissão do Danúbio. Ambas deveriam assegurar a liberdade de navegação nos rios internacionais de que tratavam. Em 1865 foi criada a União Telegráfica Universal e em 1878 o Bureau da Organização Internacional Metereológica, etc.” (MELLO, 2004, p. 626-627)

[14]Em seu parecer consultivo, de 11 de abril de 1949, referente às reparações por danos sofridos a serviço das Nações Unidas, a CIJ concluiu que “a Organização [das Nações Unidas] possuindo como possui, direitos e obrigações, tem, ao mesmo tempo, uma grande medida de personalidade internacional e a capacidade de operar no plano internacional, mesmo certamente não sendo um super-Estado”. (CIJ, 1949) Tradução livre. No original: “the Organization possessing as it does rights and obligations, has at the same time a large measure of international personality and the capacity to operate upon an international plane, although it is certainly not a super-State”. 

[15] Segundo Ian Brownlie (1997, pp. 73-76) são “Pessoas Jurídicas reconhecidas pelo Direito Internacional”: os Estados; as Entidades políticas juridicamente próximas dos Estados; Condominia; os Territórios internacionalizados; as Organizações Internacionais; as Representações dos Estados; e, as Agências das organizações internacionais. Conforme o mesmo autor (1997, pp. 76-79), existem “tipos especiais de personalidade jurídica”, que seriam os: dos povos não autonómos; dos Estados em status nascendi; das Interpretações jurídicas; das Comunidades beligerantes e insurrectas; das Entidades sui generis; e dos indivíduos.

[16] “Ela mantém relações diplomáticas com quarenta países e pode oferecer os seus bons ofícios como potência protetora em conflitos armados (art. 5º do Protocolo I, de Genebra, de 1977).” (MELLO, 2004, p. 565)

[17] Mello (2004) defende que o Vaticano não tem personalidade internacional, enquanto Mazzuoli (2011) entende que tem personalidade e que esta é distinta da atribuída à Santa Sé.

[18] Segundo Mazzuoli (2011, p. 419) “essa personalidade, que tais países lhe atribuem, é uma pseudo personalidade, uma vez que a Cruz Vermelha é uma associação de direito privado, que não se enquadra na roupagem das organizações internacionais intergovernamentais.” (grifos no original)

[19] “Criado [o Estado] pelos próprios seres humanos, por eles composto, para eles existem para a realização de seu bem comum.” (TRINDADE, 2002, p. 05)

[20] O Direito internacional regulamenta a conduta mútua de Estados, mas isso não significa que o Direito internacional imponha deveres e confira direitos apenas a Estados, e não a indivíduos. É errônea a opinião tradicional de que os sujeitos do Direito internacional são apenas Estados, não indivíduos, de que o Direito internacional, pela sua própria natureza, é incapaz de obrigar e autorizar indivíduos.(KELSEN, 1995, p. 334)

[21] Mello (2004, p. 809) também traz este exemplo: “Basta exemplificarmos com o caso da pirataria, hoje regulamentado pela Convenção de Genebra sobre o alto-mar, de 1958 e a convenção de Direito do Mar de 1982; suponhamos que o nacional de um Estado que não faça parte de convenção se transforme em pirata. Este indivíduo será punido por qualquer outro Estado, uma vez que existe para ele um ‘dever’ de não ser pirata, que é independente do Estado. Existe sobre o assunto uma norma costumeira internacional que impõe deveres diretamente ao indivíduo.”

[22] Essa mesma opinião é compartilhada por Husek (2007, p. 51), o qual afirma que “na verdade, qualquer ordenamento jurídico, por mais rarefeito que se apresente, tem por destinatário o Homem”.

[23] Celso Mello (2004, p. 808) também defende essa posição filosófica: “Direito, seja ele qual for, se dirige sempre aos homens. O homem é a finalidade última do Direito. Este somente existe para regulamentar as relações entre os homens. Ele é um produto do homem. Ora, não poderia o DI negar ao indivíduo a subjetividade internacional. Negá-la seria desumanizar o DI e transformá-lo em um conjunto de normas ocas sem qualquer aspecto social. Seria fugir ao fenômeno da socialização, que se manifesta em todos os ramos do Direito.”

[24] “Na concepção de Vitoria, o direito das gentes regula uma comunidade internacional constituída de seres humanos organizados socialmente em Estados e coextensiva com a própria humanidade; a reparação das violações de direitos (humanos) reflete uma necessidade internacional atendida pelo direito das gentes, com os mesmos princípios de justiça aplicando-se tanto aos Estados como aos indivíduos ou povos que os formam.” (TRINDADE, 2002, p. 02)

[25] Cançado Trindade (2002) ainda cita Francisco Suárez, Alberico Gentili, Samuel Pufendorf e Christian Wolff como estudiosos que seguiam esta mesma linha de raciocínio nos primórdios do Direito Internacional, enquanto no período seguinte, de ascensão do positivismo jurídico, os opositores da idéia de que só o Estado era sujeito de Direito Internacional foram Jean Spiropoulos, G. Jèze, H. Krabbe, N. Politis e G. Scelle, entre outros.

[26] “É preciso lembrar, entretanto, que o indivíduo e empresas – diversamente dos Estados e das organizações – não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relação direta e imediata com essa ordem.” (REZEK, 2010, p. 155)

[27] É da mesma opinião Marcelo Varella (2009, p. 149), o qual apresenta como únicos sujeitos de DIP os Estados e as organizações internacionais, sendo que o primeiro “é o único que apresenta plena capacidade jurídica, ou seja, habilidade de munir-se de direitos e de obrigações.”

[28] O endosso é “a outorga de proteção diplomática de um Estado a um particular” (REZEK, 2010, p.289) o que significa dizer que o Estado assume a reclamação do particular como se sua fosse. Nesse sentido, “o Estado transforma aquilo que até então vinha sendo uma reclamação particular numa reclamação própria. Ele se torna dominus litis, o senhor da demanda, com todas as conseqüências daí resultantes.” (REZEK, 2010, p. 296)

[29] Artigo 34 Petições individuais: “O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem - se a não criar qualquer entrave ao exercício efectivo desse direito.” (CEDH, 2010, p. 8)

[30] Guido Soares (2002) também sustentava que havia uma tendência ao reconhecimento personalidade jurídica internacional à pessoa humana em razão da instituição do Tribunal Penal Internacional e por conta da abertura da Corte Européia de Direitos Humanos a reclamações feitas diretamente pelas pessoas, sem a necessidade de representação pelo seu Estado.

[31] “Paul Guggenheim [chegou a conclusão de que] como o indivíduo é ‘sujeito de deveres’ no plano internacional, não há como negar sua personalidade jurídica internacional, reconhecida inclusive pelo próprio direito internacional consuetudinário.” (TRINDADE, 2002, p. 08)

[32] “[…] Constantin Eustathiades vinculou a subjetividade internacional dos indivíduos à temática da responsabilidade internacional (dos mesmos, a par da dos Estados). Como reação da consciência jurídica universal, o desenvolvimento dos direitos e deveres do indivíduo no plano internacional, e sua capacidade de agir para defender seus direitos, encontram-se vinculadas a sua capacidade para o delito internacional; a responsabilidade internacional abarca, assim em sua visão, tanto a proteção dos direitos humanos como a punição dos criminosos de guerra (formando um todo).” (TRINDADE, 2002, p. 08)

[33] A referida cláusula assim dispunha: “As potências aliadas e associadas acusam Guilherme II de Hohenzollern, ex-imperador da Alemanha, por ofensa suprema contra a moral internacional e a autoridade sagrada dos tratados. Um tratado especial será formado para julgar o acusado, assegurando-lhe garantias essenciais do direito de defesa. Ele será composto por cinco juízes, nomeados por cada uma das potências, a saber: Estados Unidos da América, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão. O tribunal julgará com motivos inspirados nos princípios mais elevados  da política entre as nações, com a preocupação de assegurar o respeito das obrigações solene e dos engajamentos internacionais, assim como da moral internacional. Caberá a ele determinar a pena que estimar que deve ser aplicada. As potências aliadas e associadas encaminharão ao governo dos Países Baixos uma petição solicitando a entrega do antigo imperador em suas mãos para que seja julgado.”  (in BAZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 15)

[34] Conforme Jankov (2009, p. 105): “[...] a jurisdição universal, ou, melhor denominado, princípio da jurisdição universal, configura-se como a possibilidade de o Estado exercer a jurisdição prescritiva na ausência de qualquer outro vínculo jurisdicional aceitável na época da ocorrência do crime em questão.” (grifos no original)

[35] A Declaração de Moscou de Outubro de 1943 assim dispunha: “[...] Ao acordar qualquer armistício com qualquer governo que possa ser estabelecido na Alemanha, os oficiais e praças alemães e membros do Partido Nazista que sejam responsáveis pelas atrocidades, massacres e execuções descritas acima ou nelas tomaram parte consentânea, serão reconduzidos aos países onde seus abomináveis atos foram cometidos, a fim de que possam ser julgados e punidos conforme as leis destes países libertados e dos governos livres que ali sejam estabelecidos. […] Que aqueles que até o momento não banharam a mão no sangue dos inocentes resguardem-se de reunir-se ao rol dos culpados, porque podemos afirmar que as Três Potências aliadas lhes perseguirão até as mais longínquas regiões da terra e irão enviar-lhes de volta a seus acusadores a fim de que seja feita a justiça. Esta declaração é feita sem prejuízo dos casos dos principais criminosos de guerra, cujos delitos não tenham definição geográfica particular e que serão castigados por decisão comum dos governos aliados.” (in GONÇALVES, 2004, p. 69-70)

[36] Representantes, respectivamente, de EUA, URSS e Reino Unido.

[37] Artigo 1º Um Tribunal Militar Internacional será estabelecido, depois de consultado o Conselho de Controle para a Alemanha, para o julgamento dos criminosos de Guerra, cujos delitos não têm região geográfica determinada, se forem eles acusados individualmente ou na qualidade de membros de organizações ou grupos, ou de ambos. (in BAZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 119)

[38] Convém destacar que as Convenções de Haia e o Pacto de Paris não prevêem a punição penal por quaisquer crimes. Nestes tratados são descritas condutas ilícitas, consideradas “crimes de guerra”, mas as previsões determinam apenas a punição dos Estados no âmbito da responsabilidade civil.

[39] “A tradicional teoria do respondeat superior considera a obediência cega a ordens superiores uma defesa automática e completa contra a persecução criminal” (CRETELLA NETO, 2008, p. 101)

[40] Em tradução livre: Dez anos e vinte dias: Memórias 1935-1945.

[41] Convém ressaltar que em convenções anteriores (Cairo e Postdam) americanos, britânicos e chineses já haviam manifestado seu interesse em punir os japoneses e, a Comissão de Crimes das Nações Unidas recomendou a criação de um tribunal para julgamento destes. Todavia, quem entabulou o projeto foi o Departamento de Estado Americano, através do Comando Supremo das Forças Aliadas e, nesse contexto, o General Douglas Mac Arthur, no papel de comandante-chefe, aprovou a Carta do Tribunal. (BAZELAIRE; CRETIN, 2004)

[42] [...] sobre os dois tribunais militares de Nuremberg e de Tóquio, as primeiras etapas efetivas da justiça penal internacional, aparecem, por um lado, exemplos de justiça de vencedor; mais ainda, se evocarmos apenas o caso de Tóquio. Entretanto, esse julgamento deve ser atenuado no que diz respeito a Nuremberg: ninguém pode contestar de que se trata de justiça penal, visto que três absolvições foram pronunciadas. Uma pura justiça de vencedor não teria certamente chegado a isso.” (BAZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 39)

[43] A Organização das Nações Unidas foi fundada ao término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, sucedendo a falida Liga das Nações.

[44] As realidades políticas resultantes do mundo bipolar originário de Yalta constituem durante muito tempo um freio ao desenvolvimento do direito penal internacional. Elas deixam às duas superpotências o cuidado de ocupar a cena internacional nas áreas econômica, diplomática, militar e ideológica, abafando as veleidades além das fronteiras das populações postas à prova, aspirando sinceramente por uma ordem penal internacional capaz de garantir a segurança, a paz e a fraternidade entre os povos. (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 18-19)

[45] A competência material do TPI-ex-I era para punir graves violações das Convenções de Genebra de 1949, violações das leis e costumes da guerra, genocídio e crimes contra a humanidade.

[46] Desde a primeira audiência, em sobre o caso Tadi?, em 8.11.1994, até setembro de 2007, o Tribunal havia acusado formalmente cerca de duas centenas de pessoas, das quais apenas seis estavam foragidas; 85 casos haviam sido concluídos, dos quais 43 foram declarados culpados e 5 absolvidos. Retiraram-se as acusações contra 25 e 6 morreram destes últimos três na prisão e três em liberdade condicional. Quatro casos foram enviados a tribunais nacionais para serem localmente julgados. Quinze condenados já haviam cumprido as respectivas penas ate março de 2006, e foram soltos. Os processos continuam em relação a 60 acusados. (CRETELLA NETO, 2008, p. 190)

[47] Entre os indiciados encontram-se desde soldados rasos até generais e comandantes políticos, inclusive o Primeiro-Ministro foi acusado. Realmente, Slobodan Miloševi? foi o primeiro Chefe de Estado acusado de crimes de guerra. (CRETELLA NETO, 2008, p. 190)

[48] O TPIR é competente para julgar crimes de guerra e crimes contra a Humanidade cometidos no território de Ruanda contra cidadãos ruandenses, por atos e violações cometidas no território daquele país entre 1º.1.1994 e 31.12.1994. (CRETELLA NETO, 2008, p. 192)

[49] Situação em meados de 2008: 28 prisioneiros em julgamento; 8 aguardando julgamento; 2 apelações pendentes; 7 condenados cumprindo pena; 5 absolvidos; 4 libertados; 2 mortos; 2 transferidos para jurisdição nacional; 1 aguardando transferência para o TPIR; 35 acusados cujos processos já encerraram; e, 32 decisões proferidas após apelação. O total de prisioneiros é 74. (CRETELLA NETO, 2008, p. 199)

[50] Esses debates foram muito bem expostos por Hans-Peter Kaul, que foi negociador da Alemanha em Roma, no artigo A Corte Internacional Criminal: a luta pela sua instalação e seus escopos (in CHOUKR; AMBOS, 2000, p. 109-124). 

[51] Entre os primeiros juízes eleitos está a brasileira Sylvia Steiner.

[52] O primeiro eleito foi Luis Moreno-Ocampo, da Argentina.

[53] Uma outra prerrogativa do Conselho de Segurança, disposta no art. 16 do Estatuto de Roma, é que este órgão pode adiar um inquérito ou procedimento criminal por um período de 12 meses, por meio de uma resolução. Esta prerrogativa já foi usada, por exemplo, na resolução 1422, que vem sendo renovada ano a ano, e não permite que sejam investigadas as condutas praticadas por membros de tropas de manutenção da paz oriundos de países não-signatários. (Cf. STAHN, Carsten. The Ambiguities of Security Council Resolution 1422 (2002). European Journal of International Law. Vol. 14, No. 1, p. 85-104, 2003. Disponível em: <http://www.ejil.org/>. Acesso em: 04 de maio de 2009.)

[54] Via de regra, Chefes de Estado ou de Governo e outras autoridades, especialmente as diplomáticas, tem imunidade penal, ou seja, não podem ser julgadas em um país estrangeiro, devendo seus crimes serem devidamente processados no país de origem.

[55]Todos os dados desta seção foram retirados da página oficial do Tribunal Penal Internacional: <http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Home>.

[56] É fundador da Union des Patriotes Congolais (UPC) e das Forces patriotiques pour la libération du Congo (FPLC). As acusações de cometimento de crimes de guerra foram confirmadas em 29 de janeiro de 2007 e seu julgamento iniciou-se em 26 de janeiro de 2009. Encontra-se na central de detenção, em Haia.

[57] Comandante da Force de résistance patriotique en Ituri (FRPI). As acusações de cometimento de crimes de guerra e crimes contra humanidade foram confirmadas em 26 de setembro de 2008 e seu o julgamento iniciou-se em 24 de novembro de 2009. Encontra-se na central de detenção.

[58] Líder do Front des nationalistes et intégrationnistes (FNI). Está sendo julgado juntamente com Katanga. Encontra-se na central de detenção.

[59] Chefe-Adjunto das Forces Patriotiques pour la Libération du Congo (FPLC). Foi solto em 2008.

[60] Secretário Executivo das Forces Démocratiques pour la Libération du Rwanda – Forces Combattantes Abacunguzi (FDLR-FCA, FDLR). Foi preso em outubro de 2010. É acusado de cinco crimes contra ahumanidade e seis crimes de guerra. A audiência de confirmação ocorreu nos dias 16 – 21 de setembro.

[61] Todos tinham posições de comando no Lord’s Resistance Army, mas encontram-se atualmente soltos. Raska Lukwiya foi retirado do caso e seu mandado de prisão está sem efeito.

[62] É acusado de dois crimes contra a humanidade e três crimes de guerra. A decisão que confirmou as acusações foi proferida em 15 de junho de 2009 e o julgamento iniciou-se em 22 de novembro de 2010.

[63] Muammar Gaddafi foi morto por rebeldes em 20 de outubro de 2011.  

[64] Os dados desta seção foram todos extraídos do Report of the International Comission of Inquiry on Darfur to the United Nations Secretary-General. Disponível em: <http://www.un.org/News/dh/sudan/com_inq_darfur.pdf>. Acesso em: 14 out. 2011.

[65] Em 9 de julho de 2011 foi formalmente criado o Sudão do Sul - região onde a população é majoritariamente cristã ou animista - o qual já tinha certa autonomia desde um acordo firmada em 2005 e, em janeiro de 2011, por um plebiscito, a maioria absoluta da população da região aprovou a criação do novo país.

[66] Apesar de os maiores problemas de violações aos direitos humanos no Sudão terem, provavelmente, ocorrido nos conflitos entre norte e sul, desde 2002 os grupos tem conseguido manter diálogos e acordos de forma a outorgar uma maior independência ao sul, os quais culminaram com a independência desta região no ano de 2011.

[67] Esta expressão quer dizer bandidos ou foras da lei armados e a cavalo ou a camelo.

[68] Dados obtidos na página oficial do Tribunal Penal Internacional: <http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Home>.

[69] Dados obtidos na página oficial do Tribunal Penal Internacional: <http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Home>.

[70] No original: “There is a right for a Government to use force to control its territory, but it cannot use genocide or crimes against humanity as means to do so.”

[71] No original: “The Prosecution submits that the evidence shows reasonable grounds to believe that AL BASHIR intended to destroy in substantial part the Fur, Masalit and Zaghawa ethnic groups as such. To this end, he used the entire state apparatus, the Armed Forces and the Militia/Janjaweed […]. Forces and agents controlled by AL BASHIR attacked civilians in towns and villages inhabited mainly by the target groups, committing killings, rapes, torture and destroying means of livelihood. AL BASHIR thus forced the displacement of a substantial part of the target groups and then continued to target them in the camps for internally displaced persons […], causing serious bodily and mental harm – through rapes, tortures and forced displacement in traumatising conditions – and deliberately inflicting on a substantial part of those groups conditions of life calculated to bring about their physical destruction, in particular by obstructing the delivery of humanitarian assistance.”

[72] No original: […] the vast majority of situations dealing with reparation for violations of jus cogens deal with the rights of human beings. This is only natural, because most of the cases of jus cogens are ‘cases where the position of the individual is involved, and where the rules contravened are rules instituted for the protection of the individual’.

[73] No original: From the perspective of jus cogens, this aspect of satisfaction acquires a specific importance. Prosecution on crimes against peace and security of mankind is a subject of interest to the international community as a whole. It seems to be established that universal jurisdiction is available in case of breaches of jus cogens. States are in some circumstances under a duty to exercise universal jurisdiction through extraditing or prosecuting the accused, and it is submitted that the individual criminal responsibility of perpetrators of war crimes and crimes against humanity is based on a peremptory norm.

[74] Vide nota 34.

[75] No original: “[…] if Omar al-Bashir will (one day) be prosecuted for violating customary law, rather than the Rome Statute, then Bahsir must be allowed to challenge those charges which rely on the Statute’s provisions that go beyond customary law. For example, the arrest warrant for Bashir approves of his prosecution under the indirect perpetration or perpetration by means theory of liability, according to Article 25(3)(a) of the Statute […]”

[76] No original: “[...] the states parties of the Rome Statute did not bind individual with substantive criminal law obligations on the basis of their nationality or presence in a state’s territory. Rather, they might have exercised universal prescriptive jurisdiction, by binding every single individual in the world from 1 July 2002 onwards and thereby precluding any nullum crimen problems, even if the jurisdiction of the Court itself was by design more limited.”

[77] As represálias são uma violação limitada, e a guerra, uma violação ilimitada, dos interesses do Estado contra o qual são dirigidas. Mas as represálias, assim como a guerra, consistem na privação imposta de vida, liberdade ou propriedade de seres humanos pertencentes ao Estado contra o qual são dirigidas. Esses indivíduos não cometeram o delito, nem estavam em posição de impedi-lo. Portanto, os indivíduos que formam a população do Estado são responsáveis pelo delito por ele cometido. A chamada responsabilidade do Estado pela sua violação do Direito internacional é a responsabilidade coletiva de seus sujeitos pelo não-cumprimento dos deveres internacionais do Estado por parte dos seus órgãos. Que a responsabilidade do Estado é coletiva e não individual, torna-se manifesto se dissolvermos a personificação implícita no conceito de Estado, se tentarmos olhar a realidade jurídica por trás dessa personificação, ou seja, as relações jurídicas entre indivíduos. Se, porém, o Estado for considerado um ser real, uma espécie de supra-homem, cria-se a ilusão de que as sanções instituídas pelo Direito internacional são dirigidas contra o mesmo indivíduo que violou o Direito, em outras palavras, temos a ilusão da responsabilidade individual do Estado como uma pessoa internacional. (KELSEN, 1995, p. 346)

[78] No original: “Overall, the duality of the regimes of the state and individual responsibility should not be seen as a negative development. Despite their different operation, the two regimes may act in a complementary way and enhance the effectiveness of international criminal justice. The predominantly reparational aspect of the state responsibility and the punitive character of criminal law proceedings against individuals are part and parcel of the fabric of contemporary international law remedies.”

[79] No original: “The ICTY recognize in Tadic that certain international crimes such as war crimes and crimes against humanity offend the community interest transcending the interest of an individual State and shock the conscience of mankind, and hence justify the action in the community interest to prosecute and suppress these crimes.”

[80] No original: “Criminalization and ensuing universal jurisdiction under humanitarian treaties reflect the fact that jus cogens crimes are subject to prosecution wherever and by whomever commited, independent of any link of the forum State to the crime in question. This universal jurisdiction reflects the nature of universal jurisdiction for jus cogens crimes – prosecution without link to a crime. This runs parallel to the fact that humanitarian treaties operate in the community interest and embody integral obligations not divisible into bilateral relations, that is they embody jus cogens and provide for universal jurisdiction for its breaches which they declare objectively reprehensible.”


ABSTRACT

The debate about the legal subjectivity of the individual under international law is particularly relevant when it comes to issues of Human Rights and International Criminal Law. Focusing on this second field of law, this paper aims to examine the question of the individual as a subject of international criminal law, using as a paradigm, the case of Omar Al-Bashir. For this, the first part talks about the subjects of international law and presented the debate about the international subjectivity of the individual. In the second chapter was presented a history of international criminal justice as well as some salient issues about the International Criminal Court. Finally, the third chapter analyzes the individual's status under international criminal law, based on the case of Al-Bashir, president of Sudan, a non-signatory State to the Rome Statute. For this, it was contextualized the situation in Sudan and the crimes imputed to Al-Bashir and then presented the reflections on the theme: the jus cogens nature of international crimes and the possibility of applying the principle of universal jurisdiction, the nature of the rules of the Rome Statute, whether substantive or jurisdictional, and the differentiation of the collective responsibility of individual responsibility under international law. It was analyzed then the case and found that the binding of Al-Bashir to the International Criminal Law is due to the nature of jus cogens of the international crimes rules, and that the legitimacy of the ICC's jurisdiction occurs because of the powers granted by the Charter of the UN to the Security Council. Still, it was observed that the statute should be understood as a jurisdictional norm to be applied to the case of Sudan with no offense to the principle nullum crimen sine lege and that the possibility of individual responsibility, including of heads of state, by international justice, demonstrates to be an evolution in this legal field. It was concluded, finally, that the individual, however not directly bound by an international treaty in some cases, is bound by this juridical domain, and may be punished individually, whatever his/hers position is, for the violations that may have practiced.

Key-words: International Criminal Law; Subjects of Law; Individual; International Criminal Court; Omar Al-Bashir.

 

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Informações sobre o texto

Trabalho apresentado como monografia de conclusão do curso de Direito em novembro de 2011 na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Arisa Ribas. O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3582, 22 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24245. Acesso em: 19 abr. 2024.