Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/2486
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Mercosul: adoção do modelo supranacional

Mercosul: adoção do modelo supranacional

Publicado em . Elaborado em .

SUMÁRIO:Aspectos Introdutórios; 1. Breves Comentários sobre o Mercosul; 2. O Processo de Integração Intragovernamental; 3. O Processo de Integração Supranacional ; 4. A possibilidade de Adoção da Supranacionalidade; 5. Perspectivas e Dificuldades; Considerações Finais; Referências Bibliográficas


Aspectos Introdutórios

Diante da crise vivida pelo Mercosul e da proposta da ALCA em adiantar o processo que visa a adesão do Brasil a sua área de livre comércio, surge alguns questionamentos sobre a viabilidade de manter as relações econômicas iniciadas ou buscar efetivar uma integração com novos parceiros. Para agravar a situação, a Argentina, principal parceira do Mercosul, está numa situação de recessão com dívidas dívida externa alta e moeda desvalorizada, não conseguindo superar a crise econômica que castiga sua população e coloca novamente o projeto do Mercosul em xeque. A integração do Cone Sul apresentava um desenvolvimento lento que retroagiu em suas metas para proporcionar a Argentina um suporte econômico.

Diante deste momento delicado das relações entre dois principais parceiros do Mercosul (Brasil e Argentina) cumpre evidenciar a necessidade de fortalecer o bloco do Cone Sul para em momento posterior dar continuidade ao processo de expansões comerciais com outros blocos econômicos. A preocupação política deveria voltar-se ao fortalecimento da integração proposta para após desenvolver relações comerciais com outros blocos econômicos, interagindo numa relação interblocos e não através de países isoladamente.

Desta forma, as relações entre blocos fortalecerão ainda mais o Mercosul que permanecerá forte e estruturado diante das ingerências comerciais de outros Estados, contando com maior equilíbrio nas relações comerciais viabilizando o projeto iniciado em 1991.

Este artigo apresenta alguns questionamentos sobre o Mercosul e contempla alguns posicionamentos que visem a integração total do projeto do Cone Sul, enfraquecido diante da crise Argentina e da contínua pressão americana para que seus Estados-membros mantenham individualmente relações com a ALCA.


1.Breves Comentários sobre o Mercosul

O projeto que visa a integração econômica entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, consubstanciou-se através do Tratado de Assunção (1991), que instituiu o Mercosul. Seu principal objetivo centrou-se na proposta de eliminar os entraves alfandegários visando atingir a etapa de mercado comum entre os Estados-membros. O Tratado marco preconizou eliminar paulatinamente as barreiras alfandegárias, harmonizar as políticas macroeconômicas e setoriais, bem como as legislações internas e aplicar uma política comum com terceiros países.

Com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto (1994), o Mercado Comum do Sul adquiriu personalidade jurídica de direito internacional, fato que reconheceu formalmente a existência do bloco econômico na esfera internacional, despertando interesse de terceiros Estados, como Chile e Bolívia.

Atualmente, o Mercosul encontra-se com inúmeras dificuldades, evidenciadas principalmente pelas tentativas frustradas de eliminar os entraves alfandegários e pela impossibilidade de harmonizar as legislações em virtude da característica da intergovernamentabilidade adotada.


2.Processo de Integração Intergovernamental

A intergovernamentabilidade, adotada pelo processo de integração do Mercosul, tem como característica manter atrelada as decisões do bloco econômico à vontade política dos Estados-membros. As decisões resultam exclusivamente do consenso, sua estrutura institucional e seus funcionários dependentes exclusivamente dos interesses dos Estados-Partes[1]. Em decorrência da adoção da intergovernamentabilidade as normas produzidas no âmbito integracionista devem ser internalizadas para produzirem efeitos jurídicos. Não há distinção entre adotar no ordenamento jurídico nacional normas advindas do Mercosul ou aquelas produzidas nas relações com terceiros países. Este procedimento burocrático ocasiona excessiva lentidão, tornando-se empecilho ao desenvolvimento integracionista que busca pela celeridade na aplicabilidade de suas decisões.

O modelo intergovernamental foi adotado preliminarmente como forma de controle político do bloco econômico, possibilitando o veto de decisões que colocariam em risco a soberania dos países membros. Com a evolução do Mercosul este procedimento ocasiona sérios obstáculos a eliminação dos entraves impossibilitando atingir a integração pretendida, principalmente no concernente ao comércio intrazona.

Historicamente, a América-Latina teve exemplos de processos que visavam uma integração, mas que não conseguiram atingir estes objetivos. A ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio), que em virtude de diversas crises foi extinta e substituída pela ALADI (Associação Latino-Americana de Integração), que embora em vigor, não conseguiu evoluir em virtude das dificuldades impostas pelas barreiras protecionistas do comércio interno, não atingindo a pretendida etapa de mercado comum[2]. Ambas associações são de caráter eminentemente intergovernamental.

Nesse intento, o Mercosul, com suas características de integração econômica baseada nas decisões dos governos dos Estados-membros vêm sentindo dificuldades em evoluir. Evidências marcantes, como as rivalidades entre Brasil e Argentina, causam sérias instabilidades entre a relação econômica dos principais sócios, sendo fatores que repercutem a fragilidade deste sistema derivado exclusivamente do consenso estatal.

Vários confrontos surgem em virtude da falta de um poder sólido constituído com objetivo de solucionar as controvérsias entre os Estados-membros. As relações comerciais intrabloco já foram palco para disputas ocorridas em virtude de tarifas alfandegárias relativas aos frangos, calçados, automóveis e têxteis, constituindo-se em fatores que comprometem a estrutura e o futuro do Mercado Comum do Sul. As dificuldades evidenciadas colocam o processo em situação instável perante a comunidade internacional comprometendo sua estrutura e colocando em risco seu futuro.


3.O Processo de Integração Supranacional

Em contraposição ao modelo intergovernamental adotado pelo Mercosul, a supranacionalidade[3] surgiu inicialmente na Comunidade Econômica do Carvão e do Aço (CECA), originária da atual União Européia. O processo de integração europeu teve inicio com a assinatura do Tratado de Paris, em 1957 e revolucionou o direito internacional por criar uma nova dimensão para o direito, ou seja, o direito da integração, evidenciado a partir de órgão com poderes independentes dos Estados-membros, capazes de ditar normas tidas como obrigatórias a todos os membros.

A supranacionalidade surgiu de forma rudimentar ao atribuir plenos poderes a um órgão denominado de Alta Autoridade. Sua evolução foi constante e rápida, consagrando-se como maior paradigma de integração do mundo. Inicialmente houve dificuldades que paulatinamente foram ultrapassadas e vencidas.

Para que a supranacionalidade fosse implantada foi necessário relativizar o princípio clássico da soberania absoluta[4]. Obtém-se essa relativização através da transferência ou cedência de parcelas de soberania a um órgão comum, permitindo com que suas decisões sejam consideradas obrigatórias e adotadas pelos Estados-membros. A supranacionalidade também enseja a criação de um direito comunitário, formado por normas próprias, independentes e superiores às normas internas dos Estados-membros que compõem o processo de integração. Essas normas, além de terem a característica de superioridade, possuem aplicação direta e imediata. As decisões tidas em nível integrativo para terem vigência em todo o ordenamento jurídico comunitário não precisam passar pelo processo de incorporação das normas jurídicas. Tornam-se vigentes e exigíveis depois de passarem pelo procedimento específico na própria comunidade.

A supranacionalidade caracteriza-se pela prevalência das decisões comunitárias sobre o interesse individual dos Estados-membros, contando com uma estrutura institucional autônoma e independente e que dispõe de funcionários próprios. As normas produzidas na comunidade são dotadas de primazia e aplicabilidade direta, contando com o auxílio de um Tribunal de Justiça permanente, responsável pela aplicação uniforme das regras comunitárias[5].

A natureza supranacional foi essencial à evolução do processo de integração europeu, que surgiu inicialmente como forma de suprir as deficiências de uma economia em ruínas, após viver o holocausto de duas grandes guerras mundiais. Conseguiu superar o dogma da soberania intocável e absoluta que na antigüidade servia como princípio defensor contra agressões externas, iniciou um processo integrativo setorial, passando para um processo regional e atualmente corresponde a um processo sui generis de integração, servindo de exemplo a todos aqueles países que pretendem unir-se em torno de objetivos de crescimento econômico e social comum.


4.A Possibilidade de Adoção da Supranacionalidade no Mercosul

O Mercosul, adepto a teoria da intergovernamental, necessita de uma séria reflexão política, buscando alternativas conscientes que visam a reafirmar os objetivos do Tratado constitutivo para atingir a efetiva integração. Além desse momento preliminar faz-se necessário rever a questão normativa, no sentido de alterar preceitos constitucionais, permitindo a necessária flexibilização do conceito de soberania absoluto, inserido ainda como dogma nas constituições brasileiras e uruguaias. O Paraguai[6] e a Argentina[7] já realizaram estudos e alteraram suas Cartas Magnas prevendo a institucionalização de órgãos supranacionais comunitários na integração da América-Latina. Medidas que antecipam uma decisão coletiva visando reduzir tempo para atingir os patamares propostos para o Mercosul. No Brasil já houve estudos e discussões, porém, o projeto que visava dar um novo significado a soberania resultou fracassado[8]. O Uruguai, na sua Constituição, faz apenas menção a prioridade à integração latino-americana, mas não prevê a possibilidade de adequação para um conceito mais flexível, impossibilitando a criação de órgãos superiores ao de seu Estado soberano[9]. A soberania no Brasil quanto no Uruguai ainda é tida como forma de garantia de defesa do Estado em virtude de possíveis intervenções externas.

Ultrapassando estes obstáculos, o processo de integração do Cone Sul poderá desenvolver-se atingindo elevado nível integrativo em virtude de que as características de independências possibilitam a tomada de decisões que visem primordialmente o desenvolvimento e o bem estar da Comunidade, atingindo de forma indireta os interesses de seus Estados-membros e conseqüentemente de seus cidadãos.


5.Perspectivas e Dificuldades

A viabilidade da implementação da supranacionalidade no Mercosul é meta a ser atingida no momento em que o bloco econômico consiga implementar a etapa de união aduaneira e em momento anterior a efetivação da etapa mercado comum. Neste momento, a supranacionalidade será essencial, amenizando as dificuldades, garantindo um espaço comum entre os países-membros, superando os entraves alfandegários e permitindo a conclusão de todos os objetivos do Mercosul.

O exemplo da União Européia serve como parâmetro ao Mercosul, mas não pode se aplicado de forma igualitária, pois possuem características próprias que devem ser respeitadas. Dessa forma, o principal obstáculo à criação de um espaço único no Mercosul está evidenciado na questão cultural, ponto que deverá ser trabalhado de forma exaustiva, revendo antigos conceitos e abandonando a idéia de rivalidade inserida em momentos históricos, mas que permanecem vivas e atuantes, buscando a união.

A mudança constitucional do conceito de soberania clássica mostra-se como barreira sólida que deverá ser reavaliada, como forma de permitir que o Mercosul tome uma nova postura frente à realidade econômica mundial. As deficiências econômicas dos países integrantes, como a crise vivenciada atualmente pela Argentina[10], fazem rever questões comerciais do bloco, colocando em risco o destino e sobrevivência do Mercosul.

A ALCA surge como uma possível solução para as exportações do Brasil com Estados Unidos, Canadá e México, mas sob outro ângulo, torna-se mais um obstáculo ao Mercosul. Evidencias demostram que o projeto do Cone Sul está momentaneamente em segundo plano pelo deslumbramento provocado em virtude da possibilidade de manter relações com grandes mercados consumidores protecionistas, o que deveria ocorrer em relações entre blocos e não individualmente.


Considerações Finais

Diante dos evidentes obstáculos e da crise pela qual passa o Mercado Comum do Sul tornam-se imprescindíveis algumas reflexões sobre a sobrevivência do projeto integracionista. A primeira questão é saber se o Mercosul deve prosperar ou ser extinto, como ocorreu com a ALALC. Se a opção for à permanência questiona-se sobre quais medidas devem ser adotadas para permitir a efetiva evolução do processo de integração.

Este estudo referente a modelo de integração adotada pelo Mercosul levanta novamente a discussão sobre a adoção da supranacionalidade pelo Mercosul como forma de superar os obstáculos que impedem atingir uma efetiva integração econômica. Atualmente, as decisões integrativas permanecem vinculadas as vontades estatais, desprovidas dos interesses comunitários, ficando pendente a permanência e evolução do processo de integração do Cone Sul.

A adoção da supranacionalidade não esgotará os problemas ocasionados pela integração, mas amenizará as dificuldades em virtude de decisões voltadas exclusivamente aos interesses comunitários. Dessa forma, o Mercosul passará a tomar decisões que serão obrigatórias aos Estados-membros e que visem a melhoria das condições do bloco e não de peculiaridades específicas dos Estados-membros, passando a atuar no cenário internacional como um bloco econômico promissor.

A supranacionalidade no Mercosul ensejará adoção de decisões enérgicas, mas necessárias. Dessa forma, o bloco econômico do Cone Sul poderá evoluir e consolidar a necessária etapa de mercado comum, ampliando suas metas e proporcionando padrão de vida elevado e melhor condição aos seus cidadãos.


NOTAS

1.MELO, Adriane Cláudia. A supranacionalidade e a intragovernamentabilidade no Mercosul. In: ILHA, Adayr da Silva; VENTURA, Deisy De Freitas Lima (Org.). O Mercosul em movimento II. p. 14-15.

2.As fases clássicas de integração econômica são as seguintes: a) Zona de Livre Comércio: busca eliminar gradativamente as barreiras alfandegárias visando a sua eliminação; b) União Aduaneira: constitui como segunda fase de integração, onde os países objetivam eliminar as tarifas aduaneiras e estabelecer uma Tarifa Externa Comum, relativa a terceiros países; c) Mercado Comum: caracteriza-se pela livre circulação dos fatores de produção, capital e trabalho, que ensejará, o livre estabelecimento e a livre prestação de serviço pelos seus nacionais. ALMEIDA, Elizabeth Accioly Pinto de. Mercosul & União Européia. Estrutura Jurídico-institucional. p. 19-30.

3.O significado do termo supranacional expressa um poder de mando superior aos Estados, resultando da transferência de soberania operada pelas unidades estatais em benefício da organização comunitária, permitindo-lhe a orientação e a regulação de certas matérias, sempre tendo em vista anseios integracionistas. STELZER, Joana. União Européia e supranacionalidade. Desafio ou realidade ? p. 67-68.

4.Sobre a evolução do conceito de soberania ver: LOCATELI, Cláudia Cinara. Soberania e Integração: possibilidades no âmbito do Mercosul. In: Espaço Jurídico. Revista Jurídica de Direito. Vol. 2. P. 103-116. No mesmo sentido, MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Internacional da Integração. p. 120-123.

5.OLIVEIRA, Odete Maria de. União Européia: processo de integração e mutação. p. 173.

6.O Paraguai possui um ordenamento jurídico tecnicamente mais flexível. Ver: art. 137, 141, 143 e 145 da Constituição Nacional da República do Paraguai.

7.Ver: art. 75, inciso 24, da Constituição Nacional da Argentina.

8.A tentativa de formular um novo conceito de soberania para o Brasil ocorreu em 1995, ocasião em que foi apresentado um projeto de emenda constitucional pelo deputado federal Adroaldo Streck, tentando inserir um conceito mais flexível, com objetivo voltado ao Mercosul.

9.Ver: art. 6º, parágrafo 2º, da Constituição da República Oriental do Uruguai.

10.O Brasil com objetivo de ajudar a Argentina permitiu que fossem aplicadas restrições comerciais no comércio intrazona, aumentando os índices da TEC, prejudicando o desenvolvimento do Mercosul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 1998.

ALMEIDA, Elizabeth Accioly Pinto de. Mercosul & União Européia. Estrutura Jurídico-institucional. Curitiba: Juruá, 1996.

CANTERO, Carlos Marcial Russo. El Mercosur ante la necessidad de organismos supranacionales: visión de la integración latinoamericana. Asunción: Intercontinental, 1999

LOCATELI, Cláudia Cinara. Soberania e Integração: possibilidades no âmbito do Mercosul. In: Espaço Jurídico. Revista Jurídica de Direito. Vol. 2. São Miguel do Oeste: UNOESC, 2000.

MELO, Adriane Cláudia. A supranacionalidade e a intragovernamentabilidade no Mercosul. In: ILHA, Adayr da Silva; VENTURA, Deisy De Freitas Lima (Org.). O Mercosul em movimento II. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito Internacional da Integração. Rio de janeiro: Renovar, 1996.

OLIVEIRA, Odete Maria de. União Européia: processo de integração e mutação. Curitiba: Juruá, 1999.

MOLINA DEL POZO, Carlos Francisco. Manual de derecho de la Comunidad Europea. 3 ed. Madrid: Trivium, 1997

PIMENTEL, Luiz Otávio (Coord). Mercosul no cenário internacional: direito e sociedade. Curitiba: Juruá, 1998.

PROENÇA, Alencar Mello; BIOCCA, Stela Maris. La integración hacia el siglo XXI. V Encontro internacional de Direito da América do Sul. Pelotas: Educat, 1996.

STELZER, Joana. União Européia e supranacionalidade. Desafio ou realidade ? Curitiba: Juruá, 2000.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOCATELI, Cláudia Cinara. Mercosul: adoção do modelo supranacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2486. Acesso em: 23 abr. 2024.