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Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na teoria direta

Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na teoria direta

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Se é verdade que a autonomia da vontade, como um direito fundamental está presente nas relações privadas, não é menos verdade que direitos como igualdade, dignidade da pessoa humana e devido processo legal, como exemplo, podem coexistir com aquele em uma mesma relação.

"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."

Friedrich Wilhelm Nietzsche

Resumo: Essa monografia objetiva analisar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Inicialmente, buscou-se apresentar um conceito para os direitos fundamentais, discorrendo sobre suas origens e importância em um estado democrático de direito. Em seguida, fez-se uma exposição das gerações ou dimensões em que são apresentados os direitos fundamentais, com suas origens e peculiaridades. Posteriormente, abordou-se a questão da titularidade dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988,  com ênfase nos principais entes titulares desses direitos. Em seguida, analisou-se a influência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, com a exposição das duas principais teorias que buscam explicar o tema, bem como as críticas a que estão sujeitas. E finalmente, após pesquisa bibliográfica e jurisprudencial acerca das vantagens e desvantagens apresentadas por cada uma das teorias apresentadas, apresentou-se uma conclusão em defesa da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares em conformidade com a teoria da eficácia direta.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Titularidade. Eficácia entre particulares.


CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para conceituar os direitos fundamentais, é de fundamental importância a reflexão acerca de sua importância em um estado, não só com a previsão no texto constitucional, mas principalmente com o oferecimento de instrumentos que garantam uma implementação eficaz na sociedade.

Assim, podemos afirmar que não há estado democrático de direito, sem uma proteção efetiva aos direitos fundamentais. Assim, no dizer de Alexandre de Moraes(2003, p. 58), “os direitos fundamentais cumprem  a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implica, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente os direitos fundamentais(liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos(liberdade negativa)”.

Ele ressalta ainda que o estabelecimento de constituições escritas está diretamente ligado à edição de declarações de direitos do homem. Com a finalidade de estabelecimento de limites ao poder político, ocorrendo a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário.

Assim, podemos afirmar que a história dos direitos fundamentais teve início com as declarações de direitos pelos estados americanos no século XVIII, ao firmarem sua independência  em relação à Inglaterra. A primeira declaração foi emitida pelo estado da Virgínia, em 12 de junho de 1776.

Posteriormente, a positivação dos direitos fundamentais ganhou concreção a partir  da revolução Francesa de 1789, onde fora consignada de forma precisa a proclamação da liberdade, da igualdade, da propriedade e das garantias individuais liberais. A revolução Francesa desempenhou o relevante papel de universalizar os direitos fundamentais, muito embora ela tivesse um caráter individualista.


CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais são tradicionalmente classificados em gerações(ou dimensões), levando-se em conta o aspecto temporal, ou seja, o momento do surgimento ou reconhecimento de determinados direitos pelos ordenamentos constitucionais.

Assim, conforme ensina Jairo Schafer(2005, p. 14/15), essa classificação doutrinária dos direitos fundamentais utiliza a evolução histórica como elemento essencial à própria caracterização e individualização dos direitos fundamentais, considerando-se a progressiva afirmação da respectiva juridicidade, pois esta espécie de direito é obra da civilização jurídica e pressupõe a existência de uma forma política – o estado – que ordene a sociedade e assegure as suas condições de validade e de exercício, consoante as exigências dos tempos, partindo-se  do módulo inicial(consenso sobre a limitação do poder) até o módulo atual(pluralismo democrático com efetiva interligação responsável entre Estado e cidadão).

Os direitos fundamentais, com base nesse critério temporal, possuem uma tríplice classificação: a) direitos fundamentais de primeira geração; b) direitos fundamentais de segunda geração; c) direitos fundamentais de terceira geração.

Apesar da existência de comentários sobre a existência  de uma quarta e quinta gerações de direitos fundamentais, no presente trabalho monográfico optou-se por adotar o modelo tradicional, que divide os direitos fundamentais em somente três gerações, pois ainda não se formulou um critério científico que autonomize os chamados “novos direitos” daqueles integrantes das três gerações já citadas neste trabalho.

Os direitos fundamentais das três gerações, nessa teoria classificatória aqui adotada, diferenciam-se estruturalmente entre si, em virtude do elemento preponderante que lhes compõem: enquanto os direitos de primeira geração exigem um não-agir do Estado, a implementação dos direitos de segunda geração está centrada em uma prestação por parte do Estado. Por sua vez, os direitos de terceira geração, possuem como traço diferenciador principal, o caráter difuso, não existente nos direitos de primeira e segunda geração.

Ou seja, é com base no magistério de  Schafer(2005, p. 16)  que afirmamos que a “classificação ocorre não somente em virtude de os direitos não serem previstos na geração anterior, mas por que os direitos emergentes trazem, estruturalmente, um elemento preponderante ausente nos direitos anteriormente classificados. Se assim não fosse, cada surgimento de um direito novo deveria ser acompanhado da formulação ou uma nova geração dos direitos fundamentais, num movimento infinito e improdutivo cientificamente”.


DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PRIMEIRA GERAÇÃO

A primeira geração de direitos fundamentais nasceu nos finais do século XVIII e prevaleceu durante todo o século XIX.

Ela agrega os direitos civis e políticos. Estes surgiram da necessidade de conter o poder absoluto do Estado. Eles representam a defesa das liberdades do individuo, exigindo a autolimitação e a não-ingerência dos poderes públicos na esfera privada do individuo.

Não exigem uma atuação positiva por parte do Estado em prol do indivíduo, pois se limitam a impor restrições à atuação do próprio Estado, frente à esfera de liberdade dos indivíduos. Daí serem denominados de “direitos negativos”.

Fica claro, dessa forma, que os direitos fundamentais nascem com forte caráter individualista. É indiscutível que o direito constitucional foi pensado preferencialmente como direito do poder político, no sentido de estabelecer limites à atuação do soberano, preservando círculos privados de intangibilidade.


DIREITOS FUNDAMENTAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO

Os direitos fundamentais de segunda geração surgem sob influência de movimentos sociais do século XIX, para suprir a necessidade de complementação aos direitos fundamentais de primeira geração. No entanto, possuíam como principal fator diferenciador da geração antecessora, o caráter positivo, vinculado ao ideal de igualdade. Isso significa que, o estado deve agir, mas com base nas necessidades e situação real dos indivíduos.

A igualdade passa a ser elemento qualificador e essencial da democracia. Isso não é diferente nos dias atuais, como podemos observar no julgamento do Mandado de Injunção nº. 58(julgado em 14 de dezembro de 1990, Relator Ministro Celso de Mello), assim ementado:

O principio da isonomia, que se reveste de autoaplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa.

Esse principio-cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios(RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que,  no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressuponde lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório.

O estado até então com forte caráter individualista – estado liberal -, passa a ter um caráter social, com a exigência de uma política ativa dos Poderes Públicos(atuação positiva), buscando a garantia do exercício desses direitos, através da implementação de políticas e serviços públicos.

Os direitos fundamentais ganharam fôlego com a previsão no art.5 º, §1º da Constituição Federal, de dispositivo que garante sua aplicação imediata, sepultando de vez as controvérsias quanto à sua eficácia.

Esses direitos reclamam uma postura positiva do Estado na obtenção de seus objetivos de justiça social, no intuito de substituir-se a igualdade e liberdade formal pela igualdade e liberdade substancial, por meio de prestações sociais, como: saúde, educação e assistência social etc.

Enfim, pode-se afirmar que os direitos sociais têm como premissa a necessidade da promoção da igualdade substantiva, a proteção do mais fraco no âmbito social.


DIREITOS FUNDAMENTAIS DE TERCEIRA GERAÇÃO

Os direitos fundamentais de terceira geração não estão direcionados a indivíduos ou grupos determinados. Aliás, essa é uma das principais distinções dos direitos desta geração em ralação aos demais, visto que eles estão voltados para o gênero humano, de uma forma indeterminada ou difusa. São direitos fundamentais cujos destinatários não são indivíduos, mas sim a coletividade, grupos humanos como a família, o povo e a própria humanidade.

Podemos afirmar  que a grande preocupação dos direitos de terceira geração é com as desigualdades entre as nações na atualidade. Pregam uma convivência pacífica entre os povos, com respeito ao meio ambiente, à paz, a autodeterminação dos povos etc.

Enfim, essa geração de direitos fundamentais, cujo lema maior é a fraternidade, surge dotada de um elevado caráter de humanismo e universalidade, extrapolando a abrangência dos demais direitos fundamentais que se destinam  à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado.


TITULARIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A constituição federal de 1988 assegura os direitos e garantias fundamentais aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. No entanto, esses não são os únicos destinatários dos direitos fundamentais assegurados pela lei maior brasileira. Não obstante, o fato de que originariamente os direitos fundamentais tenham surgido para proteger o cidadão dos poderes absolutos do estado, o estado leviatã.

 Hoje podemos afirmar que ante as diferentes espécies de direitos elencados na carta de 1988, com funções específicas diversas, não é nenhum absurdo afirmar que o rol de titulares dos direitos fundamentais é bem mais amplo, não ficando limitado às pessoas físicas.

Assim, com o objetivo de tratar desse assunto de uma forma mais detalhada, trataremos da referida problemática quanto a titularidade dos direitos fundamentais de modo específico, nos itens seguintes.

· A PESSOA FÍSICA

Iniciamos apresentando a lição de Hans Kelsen(1997, p. 191), quanto à definição da pessoa física, no que se refere à identificação do sujeito jurídico como o de pessoa:

Eis a sua definição: pessoa é o homem enquanto sujeito de direitos e deveres. Dado que, porém, não só o homem, mas também outras entidades, tais como certas comunidades como associações, as sociedades por ações, os municípios, os Estados são apresentados como pessoas, define-se o conceito de pessoa como “portador” de direitos e de deveres jurídicos, podendo funcionar como portador de tais direitos e deveres não só o indivíduo, mas também estas outras entidades. O conceito de um “portador” de direitos e deveres jurídicos desempenha na teoria tradicional da pessoa jurídica um papel decisivo. Se for o indivíduo o portador de direitos e deveres jurídicos considerados, fala-se de uma pessoa física; se são estas outras entidades as portadoras dos direitos e deveres jurídicos em questão, fala-se de pessoas jurídicas. 

Quanto ao fato das pessoas físicas serem titulares de direitos fundamentais, não há nenhuma objeção. O que é importante observar desta definição desse renomado jurista alemão, é que ele não restringe somente à elas esta titularidade. Conforme, será abordado adiante, tal posicionamento encontra-se em consonância com os princípios da máxima eficácia e amplitude dos direitos fundamentais.

Ainda no âmbito das pessoas físicas, vale ressaltar o disposto no Art.14, §2º da CF:

A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta constituição.

Os nacionais naturalizados, como titulares dos direitos fundamentais, gozam de todos os privilégios, exceto aqueles concedidos somente aos natos pela própria constituição, como os previstos no Art.12, §3º, I da CF:

§3º São privativos de brasileiro nato os cargos:

I – de presidente e Vice-Presidente da República;

2 – Os estrangeiros

O estrangeiro residente no País encontra-se contemplado pelo enunciado da regra contida no art.5º da CF, fato que, em tese,  o deixa em uma melhor posição, ou que lhe seja mais favorável, quanto à confirmação de que se trata de titular de direito fundamental, em relação ao estrangeiro não-residente no Brasil.

Nesse sentido é a doutrina de José Afonso da Silva(2000, p. 195)

O estrangeiro residente não tem só os direitos arrolados no art.5º, apesar de somente ali aparecer como destinatário de direitos constitucionais. Cabem-lhe os direitos sociais, especialmente os trabalhistas.Ao outorgar direitos aos trabalhadores urbanos e rurais, por certo que aí a Constituição alberga também o trabalhador estrangeiro residente no País, e assim se há de entender em relação aos outros direitos sociais; seria contrário aos direitos fundamentais do homem nega-los aos estrangeiros residentes aqui.

No entanto, não podemos entender essa omissão da constituição quanto aos estrangeiros não-residentes no Brasil como uma negação destes serem acorbetados sob o manto de proteção dos direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal, quando em trânsito pelo Brasil.

Nesse sentido, Moraes(2003, p. 82) lembra, com propriedade, que

A expressão residente no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente acesso às ações, como o mandato de segurança e demais remédios constitucionais.

Dessa forma, não podemos concordar com  a idéia de que, em virtude do fato de alguém não ser detentor da nacionalidade brasileira, ou não ser residente no País, não ser considerado titular de direito fundamental, em respeito ao principio da dignidade da pessoa humana.

Desse modo, Paulo Gustavo Gonet Branco(2000, p. 166) esclarece:

A declaração de direitos fundamentais da Constituição abrange diversos direitos que radicam diretamente no principio da dignidade do homem – principio que o art.1º, III, da Constituição Federal, torna fundamento do Estado democrático brasileiro e que não deixa de ter aplicação em relação a alguém pelo fato de a pessoa ter nacionalidade estrangeira.

Assim, quanto aos estrangeiros, podemos afirmar que não só os residentes, como também aqueles que se encontram de passagem pelo território nacional, são considerados titulares de direitos fundamentais previstos em nossa constituição.

· A PESSOA JURÍDICA

De inicio vale conferir o magistério  de Orlando Gomes(2003, p. 174/175), o qual considera o caráter da sociabilidade humana, através de agrupamentos de pessoas, fundamental para atingir as finalidades as quais os homens se propõem:

Ante a necessidade de personalizar tais grupos, para que participem da vida jurídica, com certa individualidade e em nome próprio, a própria norma de direito lhes confere personalidade e capacidade jurídica, tornando-os sujeitos de direitos e obrigações.

Também com propósito esclarecedor, Caio Mário da Silva Pereira(2000, p. 257), ressalta:

Pessoa jurídica é a denominação dada pelo nosso Código Civil, pelos Códigos alemão, italiano e espanhol. Sem ser perfeita, essa designação indica como vivem e agem essas agremiações, acentuando o ambiente jurídico que possibilita sua existência como sujeita de direito.

Portanto, indubitavelmente, há de se reconhecer o fato de a pessoa jurídica ser um ente sujeito de direitos e obrigações, na esfera jurídica, ou um portador de direitos subjetivos e deveres.

Embora ocorra esse reconhecimento, a titularidade de direitos fundamentais, pela pessoa jurídica, é matéria que suscita muitas questões, uma vez que não há a expressa previsão no enunciado da norma constitucional  brasileira a respeito desta entidade.

Apesar disso, a doutrina e a jurisprudência demonstram que conseguem solucionar tais indagações.

Nesse sentido é a lição de Moraes(2003, p. 82 ):

Igualmente, as pessoas jurídicas são beneficiárias dos direitos e garantias individuais, pois se reconhece às associações o direito à existência, o que de nada adiantaria se fosse possível excluí-las de todos os seus demais direitos. Dessa forma, os direitos enunciados e garantidos pela constituição são de brasileiros, pessoas físicas e jurídicas.

E o mesmo autor conclui:

Assim, o regime jurídico das liberdades públicas protege tanto as pessoas naturais, brasileiros e estrangeiros no território nacional, como as pessoas jurídicas, pois têm direito à existência,  segurança,  propriedade,  proteção tributária e aos remédios constitucionais.

Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, pelo até então exposto, não teríamos problemas ao afirmar que são titulares de direitos fundamentais, enquanto representam uma universalidade de pessoas ou de bens particulares. O problema está no reconhecimento da titularidade de direitos fundamentais pelo Poder Público, pelo fato desses direitos terem surgidos a partir da intenção de garantir uma esfera de liberdade justamente em face dos poderes públicos.

Canotilho(1998, p. 385) apresenta tese onde afirma que “para solucionar tal problema é necessário observar se o direito fundamental em questão é compatível  ou não com a natureza de pessoa coletiva”. Desse modo, admite que as pessoas jurídicas de direito público invoquem os direitos fundamentais quando não estiverem em posição de proeminência ou de poder, especialmente quando estiverem em típicas situações de sujeição.

·OS ENTES DESPERSONALIZADOS

   Os entes despersonalizados são aqueles que não se encontram sob a incidência da  criação legal acerca de quem é considerada pessoa jurídica. Entre estes, podemos exemplificar com o espólio, a herança jacente, a massa falida, as assembléias legislativas, etc.

Embora bastante restrito, em decorrência das particularidades deste ente, podemos constatar a sua titularidade sobre direitos fundamentais, como é a legitimação processual, ativa e passiva, como corolário do direito de acesso ao judiciário( art.5º, XXXV da CF).

No entanto, essa é uma legitimidade limitada, não englobando todo e qualquer tipo de procedimento judicial. Não podem ser titulares de ação popular ou Habeas Corpus, por exemplo.


DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES PRIVADAS

ASPECTOS GERAIS

Em diversas passagens deste trabalho, foi ressaltado que, inicialmente, os direitos fundamentais foram concebidos como direitos de defesa dos cidadãos em face do Estado, vinculando negativamente o poder público, que deveria se abster de violá-los.

Entretanto, alterações ocorridas tanto no domínio do próprio conceito e extensão dos direitos fundamentais quanto na configuração da sociedade impõem a superação dessa concepção própria do liberalismo.

Afirma Márcia Zollinger(2006, p.76), que “o avanço histórico de um modelo de Estado liberal de Direito para um modelo de Estado social de Direito alarga o conteúdo dos direitos fundamentais, que passa a compreender novas gerações de direitos. A positivação de direitos de segunda geração, de caráter nitidamente prestacional, imprime  nos direitos fundamentais uma dimensão objetiva, que consiste em compreendê-los como valores jus fundamentais que orientam a atuação dos poderes públicos e irradiam efeitos por toda a ordem jurídica”.

Vale frisar que o respeito aos direitos fundamentais nas relações entre particulares não está restrito aos sujeitos envolvidos na relação. Ao legislador impõem-se uma obrigação negativa de não elaborar leis que violem os direitos fundamentais. Este Poder possui também  a obrigação positiva de realizar e proteger os direitos fundamentais, conformando as relações travadas entre os particulares segundo as diretrizes dos direitos fundamentais.

Além disso, há o dever do poder judiciário de interpretar e aplicar o direito infraconstitucional em consonância com os direitos fundamentais.

Não podemos deixar de reconhecer algumas peculiaridades da sociedade contemporânea, que influenciam a aplicação dos direitos fundamentais às relações particulares. A própria configuração atual da sociedade – neoliberal, capitalista, globalizada e desigual – enfraquecem a tese de que as ameaças aos direitos fundamentais não provêm apenas do Estado, mas também podem advir dos entes privados, detentores de parcelas cada vez maiores de poder econômico e social, que num contexto de economia capitalista participam ativamente do poder e das decisões políticas.

Outro aspecto fundamental e que possui extrema relevância para a compreensão deste trabalho, é a questão da igualdade material entre os cidadãos. Nesse sentido, vale frisar mais uma vez as lições da autora baiana(Zollinger, P.77), “A eficácia horizontal dos direitos fundamentais tem conexão com a concepção material da igualdade entre os cidadãos. Considerava-se, na perspectiva liberal, que o homem travava relações com seus iguais no âmbito privado, supostamente desfrutando do gozo pleno de sua autonomia privada e liberdade de atuação, razão pela qual nem sequer havia lugar para se cogitar da incidência dos direitos fundamentais nessas relações de igualdade, visto que os direitos fundamentais eram instrumentos de defesa dos cidadãos contra as ingerências do detentor de poder, o Estado”.

Essa concepção puramente formal da igualdade entre os homens não se coaduna com a sociedade hodierna, em que os atores privados assumem efetivamente uma parcela significativa de poder econômico, social e político. A desigualdade material do homem concreto o impede de exercer plenamente sua liberdade, limita sua autonomia privada, expondo seus bens jus fundamentais diante de sujeitos privados mais fortes.

Nesse sentido, Perez Luño(1984, p. 22/23), destaca que:

[...]É um fato notório que na sociedade neocapitalista esta igualdade formal não supõem uma igualdade material, e que nela o pleno desfrute dos direitos fundamentais se vê, muitas vezes, ameaçado pela existência na esfera privada de centros de poder não menos importantes do que os que correspondem aos órgãos públicos. (tradução nossa).

Podemos afirmar que há consenso na doutrina em aceitar a eficácia das normas jus fundamentais nas relações privadas, ocorrendo divergência, entretanto, na maneira em que se dá esta eficácia, se de forma direta ou indireta. No entanto, as teorias que procuram explicar a eficácia desses direitos, aparentam consentir em que a medida ou extensão da eficácia, seja ela direta ou indireta, deve ser determinada pela ponderação dos bens jus fundamentais em conflito. Isso porque as relações entre particulares são relações que envolvem titulares de direitos fundamentais – como a autonomia privada do cidadão, por exemplo – enquanto que as relações entre cidadãos e Estado ocorrem entre um titular de direito fundamental e um que, em regra, não titulariza  direitos fundamentais.

Diante dessas premissas, podemos passar a análise das principais teorias acerca do modo como se dá a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, dividindo-as em correntes que propugnam pela eficácia de forma mediata(indireta), de forma imediata(direta). Para isso, parte-se da premissa, hoje presente de forma geral na doutrina e jurisprudência, de que os direitos fundamentais exercem alguma eficácia, também, nas relações privadas.


TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA OU INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES.

Esta teoria teve origem na Alemanha, a partir das formulações elaboradas por Günter Dürig, amplamente aceitas na doutrina Alemã e acatados pelo Tribunal Constitucional  Federal Alemão em reiteradas decisões proferidas a partir da década de cinqüenta.[1]

Em síntese, esta teoria defende a impossibilidade de invocar diretamente da constituição um direito fundamental para reger determinada relação jurídica estabelecida entre particulares. Assim, para seus defensores, os direitos fundamentais incidem sobre o legislador infraconstitucional de direito privado, como princípios ou valores fundamentais, o qual deve levar em conta valores jus fundamentais quando da elaboração das normas de direito privado.

Dessa forma, o legislador assume a primazia de dirimir eventuais conflitos entre a autonomia privada e os direitos fundamentais, através da ponderação da proporcionalidade, escolhendo e positivando a conduta privada a ser exigida dos particulares.

Por outro lado, ao Judiciário cabe a tarefa de interpretar e aplicar as normas de direito privado, bem como de integrar o conteúdo das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados em conformidade com os valores jus fundamentais.

Nesse sentido Ingo Sarlet(2003, p. 357) aduz que, de acordo com esta teoria, os direitos fundamentais apenas influenciam nas relações privadas após um processo de transmutação, ou seja, de incorporação no âmbito privado especialmente por meio da aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais e conceitos indeterminados à luz dos parâmetros axiológicos contidos nas normas de direitos fundamentais.

É fato que há em nosso ordenamento jurídico, normas que regulamentam direitos fundamentais estabelecidos em nosso ordenamento constitucional, como os direitos da personalidade previstos no código civil brasileiro, como nos artigos:           

Art.17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art.21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Mas essa teoria não está restrita a estes dispositivos, que na maioria das vezes limita-se a reproduzir, sem nenhuma margem de subjetivismo os dispositivos da constituição brasileira.

É nesse sentido que Virgílio Afonso da Silva(2005, p. 78) afirma que o principal elo entre os direitos fundamentais como sistema de valores e o direito privado, segundo o modelo de efeitos indiretos, são as chamadas cláusulas gerais.          

Essas são cláusulas que requerem um preenchimento valorativo na atribuição de sentido, pois são, para usar uma expressão difundida na doutrina jurídica brasileira, conceitos abertos, cujo conteúdo será definido por um juízo subjetivo do aplicador do direito. Esse não pode ser, contudo, ao contrário do que muitos ainda pensam, um processo baseado em valores morais extras ou supralegais, mas sim naqueles consagrados pela constituição.

E continua o ilustre professor(2005, p. 79), afirmando que é principalmente, mas não exclusivamente, por meio dessas cláusulas que os direitos fundamentais se infiltram no direito privado e por aí produzem seus efeitos.


CRÍTICA AO MODELO DE EFEITOS INDIRETOS

A teoria da eficácia mediata ou indireta vem sendo alvo de críticas formuladas especialmente por autores espanhóis, portugueses e brasileiros, que sustentam desde a desnecessidade desta construção teórica, por chegar aos mesmos resultados alcançáveis com a amplamente aceita teoria da interpretação conforme a Constituição, até a sua incapacidade de conferir a adequada proteção aos direitos fundamentais na sociedade atual.

Crítica contundente é feita por Pedro de Vega García(1996, p. 271), que, partindo da análise da sociedade corporativista atual, ataca diretamente os três dogmas do direito privado: o princípio da generalidade da lei, a igualdade formal dos cidadãos perante a lei e a consagração da autonomia privada. Primeiramente o autor desvela o caráter muitas vezes ad hoc da lei sujeita às pressões de grupos de interesses privados, dotados não apenas de poder econômico e social, mas também político. Em seguida, denuncia a conversão da igualdade formal perante a lei em pura justificação e legitimação das desigualdades e assimetrias de fato entre os sujeitos das relações privadas.

Outra forte crítica ao modelo de eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares proferida por Silva(2005, p. 85),  baseia-se  na possibilidade de proteção ineficaz dos direitos fundamentais nessas relações se seus efeitos puderem  a elas chegar apenas por meio das chamadas cláusulas gerais. Isso porque é difícil imaginar que tais cláusulas sejam sempre suficientes para servir de porta de entrada para os direitos fundamentais nas relações privadas. O mais provável é que, para um grande número de situações em que seria desejável que os efeitos dos direitos fundamentais se fizessem presentes, não haverá uma dessas cláusulas para dar vazão a esses efeitos.


TEORIA DA EFICÁCIA IMEDIATA OU DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES             

A teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas foi desenvolvida especialmente por Hans Carl Nipperdey, na Alemanha da década de cinqüenta, e, embora não seja a doutrina predominante no seu país de origem e nem a tese acatada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, vem sendo adotada pela jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho alemão, além de receber aceitação majoritária na Itália, Espanha e Portugal.

Conforme se extrai da própria denominação, os defensores desta corrente teórica sustentam que os direitos fundamentais incidem diretamente no âmbito Jurídico privado, sem necessidade de intermediação por parte do legislador, podendo ser invocados de forma direta pelos particulares nas suas relações jurídicas privadas.

 Essa possibilidade de inferirem-se direitos subjetivos privados diretamente dos direitos fundamentais importa na superação da perspectiva clássica que os compreende  como direitos públicos subjetivos, cujos únicos destinatários seriam os poderes públicos.

Conforme ressalta Zollinger(2006, p. 87), a concepção dos direitos fundamentais como direitos oponíveis unicamente ao Estado devem ser situados historicamente no contexto jurídico e político do Estado Liberal de Direito. Nesse período histórico, a tensão dialética liberdade/poder estava circunscrita ao âmbito das relações entre indivíduo e Estado, sendo que as relações travadas no âmbito privado eram relações de igualdade formal e não de poder, razão pela qual se supunha que eram relações de liberdade.

Ademais, conforme já ressaltado nesse capítulo, as novas relações entre Estado e sociedade, que começam a se desenvolver com o avanço histórico para um modelo de Estado Social, descortinam a ficção da igualdade formal dos cidadãos como fundamento da liberdade e da autonomia da vontade destes no âmbito de suas relações privadas.

Dessa forma, apesar da intervenção do Estado social na atuação positiva de implementação e proteção dos direitos fundamentais, a economia capitalista vê crescer o poder das grandes empresas e associações, que se tornam, ao lado do Estado, ameaças aos direitos fundamentais.

A teoria imediata ressalta, portanto,  a necessidade de adotar uma nova postura jurídica que enfrente essa nova realidade do poder privado e das ingerências, tanto estatais quanto privadas, no âmbito dos direitos fundamentais.

Vale frisar, ainda, um fato notório na evolução jurídica da constituição e do Estado, que vem somar aos argumentos já utilizados pelos defensores da teoria da eficácia direta, que é o caráter normativo da constituição e sua condição de norma e elemento de unidade de todo o ordenamento jurídico. Essa é uma característica do Estado Social em que vivemos.

Assim, a Constituição não é mais unicamente a carta que regula o exercício do poder público, pois contém também os princípios norteadores das relações jurídicas estabelecidas entre particulares.


CRÍTICAS À TEORIA DA APLICABILIDADE DIRETA             

Da mesma forma que a teoria da eficácia indireta, esta teoria também  é bastante criticada. Em síntese, elas estão concentradas no enfraquecimento  da autonomia privada e na perda de clareza no arcabouço conceitual do direito privado se as normas de direitos fundamentais passarem a ser aplicadas diretamente às relações entre particulares.

No que tange à autonomia privada, afirmam os críticos que, sendo este o principio básico do direito privado, esta autonomia seria colocada em perigo se as pessoas não pudessem, em suas relações entre si, contornar as disposições de direitos fundamentais.

Com relação à clareza conceitual, pregam que clareza e certeza jurídicas são essenciais às relações jurídicas privadas, e estas ficariam sensivelmente comprometidas, pois seriam ocultadas pelos efeitos peculiares das colisões entre direitos fundamentais, já que em uma disputa jurídica entre particulares, todos os participantes são protegidos pelos direitos fundamentais.

Afirmam, em síntese conclusiva, que as relações jurídico-privadas devem pautar-se por regras claras, detalhadas e de contornos bem definidos. Assim, sendo as disposições de direitos fundamentais, necessariamente de cunho aberto, eliminariam essa possibilidade.


O STF E O MODELO DE APLICABILIDADE DIRETA            

 O problema da vinculação dos particulares a direitos fundamentais não é um tema que ocupa de modo explícito a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isso não significa que casos que envolvam essa questão nunca tenham sido decididos  nesse Tribunal, mas, apenas, que o STF nunca se dedicou a desenvolver uma tese sobre o problema ou a aplicar algum modelo a tais casos. Nesse trabalho monográfico, serão apresentados dois julgamentos do STF envolvendo o tema.

·  RE 158.215 – DEVIDO PROCESSO LEGAL NAS RELAÇÕES ENTRA PARTICULARES

O STF se deparou com o seguinte caso: a Cooperativa Mista São Luiz, do Rio Grande do Sul, havia expulsado alguns de seus associados sem observar as regras estatutárias relativas a tal procedimento e, sobretudo, sem ter a eles garantido o direito a defesa previsto estatutariamente. A cooperativa alegou que a expulsão sumária decorria de um desafio nesse sentido, feito pelos próprios associados expulsos, na imprensa local.

À primeira vista, parece um caso corriqueiro de desrespeito a normas estatutárias de uma pessoa jurídica de direito privado e que, assim, poderia ter sido resolvido no âmbito do direito civil, foi encarado, pelos recorrentes no recurso extraordinário e também pelo Ministro Relator, Marco Aurélio Mello, como uma violação a um direito fundamental.

Segundo o Ministro, “ a garantia da ampla defesa está insculpida em preceito de ordem pública”, razão pela qual não pode ser desobedecido em nenhum âmbito. A aplicação direta do direito à ampla defesa no caso em questão conferiu um direito subjetivo aos associados expulsos da cooperativa a serem a ela reintegrados e serem julgados mais uma vez, respeitando-se, então, esse direito fundamental. O caso, originariamente um simples caso de direito privado, visto que houvera um desrespeito a uma norma estatutária da cooperativa, que previa um determinado procedimento para expulsão de associados, transforma-se, com as decisões de instâncias inferiores favoráveis à cooperativa, um caso envolvendo direitos fundamentais.

A seguir a ementa deste RE 158.215:

DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.

(RE 158215, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, SEGUNDA TURMA, julgado em 30/04/1996, DJ 07-06-1996 PP-19830 EMENT VOL-01831-02 PP-00307 RTJ VOL-00164-02 PP-00757)

· RE 161.243 – IGUALDADE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Não muito diferente foi a decisão do RE 161.243, relativa ao necessário respeito, mesmo nas relações entre particulares, do direito à igualdade. O caso diz respeito a um funcionário brasileiro da Air France, ao qual não haviam sido estendidos alguns benefícios, que o plano de carreira da empresa previa, porque esse plano diferenciava entre franceses e não-franceses. O STF decidiu, sem grandes preocupações com a fundamentação, que o princípio da igualdade deve ser respeitado em qualquer relação, sendo vedada, consequentemente, qualquer relativização.

No entanto, ao afirmar que a “discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca  do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso(...) é inconstitucional, o Tribunal peca por assumir com uma tendência  geral e absoluta, pretendendo de uma vez só, resolver todos os problemas relativos ao desrespeito ao principio da igualdade nas relações entre particulares, sem levar em consideração as particularidades de cada caso concreto.

A seguir a ementa deste RE 161.243:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.

(RE 161243, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 29/10/1996, DJ 19-12-1997 PP-00057 EMENT VOL-01896-04 PP-00756)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, quanto à expressão “Eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, utilizada por grande parte da doutrina, podemos concluir que sua utilização não é adequada, pois é bastante evidente que nem sempre os particulares estão em situação paritária. Para tal constatação, não podemos restringir a idéia de relações privadas, como existente apenas entre pessoas físicas, visto que no conceito de particular, também está incluído grandes empresas privadas, Partidos políticos, sindicatos ou Associações.

Com relação à omissão da constituição Federal em não dispor expressamente sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, concluímos que esta eficácia é plenamente possível.

Como fundamento desta conclusão, deve ser ressaltado as diferentes funções atribuídas aos direitos fundamentais. Esses, além das funções fundamentadora e interpretativa, devem ser utilizados para suprir lacunas do ordenamento jurídico, nos casos onde há omissões. Dessa forma, diante da ausência de disposição da nossa constituição referente à aplicabilidade ou não dos direitos fundamentais nas relações privadas, o fundamento da dignidade da pessoa humana deve ser utilizado para suprir tal omissão.

Além disso, vale ressaltar que a constituição direciona-se não só para regular o poder político, pois deve reger também a conduta do povo que integra o território submetido à constituição.

Assim, se o Poder Constituinte estabeleceu que é fundamento do nosso ordenamento jurídico a proteção aos direitos fundamentais, isto significa que todos aqueles que estiverem sob o império do ordenamento jurídico brasileiro estão submetidos aos fundamentos deve, dentre os quais se encontra o respeito aos direitos fundamentais.

É fato que a própria constituição Federal impõe a observância de diversos direitos fundamentais pelos particulares, como aqueles previstos no Art.7º da CF. No entanto, não dispõe de forma clara que outros direitos fundamentais também podem ser aplicados às relações privadas.Porém, tal objeção não pode prevalecer.Como é sabido, o artigo 5º, § 2º da CF, determina o princípio da não-taxatividade dos direitos fundamentais, de maneira que “os direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.

Ora, mesmo que o Poder Constituinte tenha enunciado algum direito fundamental que, à primeira vista, poderia parecer se aplicar apenas às relações Poder Público-particular, não nos parece que o regime e os princípios adotados pela Constituição indiquem neste sentido. Como já dissemos, um dos fundamentos de nossa constituição é a estrita observância e respeito aos direitos fundamentais, de maneira que, ao menos implicitamente, todos os direitos fundamentais, desde que sua natureza seja apta a tanto, podem tangenciar as relações privadas, fazendo-se de observância obrigatória aos particulares.

Assim, não restam dúvidas de que os direitos fundamentais também se aplicam às relações privadas, apesar da omissão do texto constitucional.

Em relação às teorias que enfrentam a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas – teoria mediata e imediata -, o que distingue uma da outra é a imprescindibilidade ou não de intermediação legislativa para a concretização dos direitos fundamentais às relações privadas.

Concluímos que a teoria mediata, apesar de possuir conceitos que devem ser observados pelo intérprete, não esgota e soluciona os problemas efetivamente relacionados à eficácia das normas de direitos fundamentais nas relações privadas.

Com relação à teoria imediata, entendemos que esta seja a mais apropriada para o enfrentamento da questão. Não nos curvamos diante dos argumentos contrários à esta teoria, quando afirmam que a sua utilização irá enfraquecer demasiadamente a autonomia da vontade, que deve nortear toda e qualquer relação entre particulares.

Tal argumento não possui substância necessária para afastar a aplicação da teoria imediata. Ora, nas relações entre particulares, todas as partes envolvidas são titulares de direitos fundamentais. Assim, se é verdade que a autonomia da vontade, como um direito fundamental está presente nas relações privadas, não é menos verdade que direitos como igualdade, dignidade da pessoa humana e devido processo legal, como exemplo, podem coexistir com aquele em uma mesma relação.

Assim, diante de um eventual conflito que venha a ocorrer entre tais princípios fundamentais, a solução estará na ponderação de direitos fundamentais a ser realizada, com base no caso concreto, a fim de extrair a solução mais adequada para o problema.

Podemos acrescentar, ainda, que toda norma constitucional, em virtude dos princípios da foca normativa da constituição e da supremacia, tem obrigatoriedade, seja dela destinatário o particular ou o Poder Público. A ausência de norma infralegal, dando inteira operatividade a preceito constitucional só terá repercussão prática nas normas constitucionais de eficácia limitada, não interferindo nas normas dotadas de aplicabilidade imediata.

Por fim, diante dos precedentes mencionados do STF, é possível afirmar que a nossa Corte Máxima já aplicou, em determinadas situações, os direitos fundamentais às relações privadas, indicando uma tendência que provavelmente se firmará, principalmente com vistas a assegurar, em sua máxima efetividade, o principio da dignidade da pessoa humana.

 


REFERÊNCIAS

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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SILVA, Virgilio Afonso da. A constitucionalização do Direito. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

VEGA GARCIA, Pedro de. Dificultades y problemas para la construccíon de um constitucionalismo de la igualdad( en caso de la eficácia horizontal de los derechos fundamentales). In: PEREZ LUÑO, Antonio Enrique (coord.). Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

SCHÄFER, Jairo. Classificação dos Direitos Fundamentais. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2005.   


Notas

[1] Uma decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, proferida no caso que ficou conhecido internacionalmente  como “caso Lüth”, formulou, em caráter inovador, a tese de que os direitos fundamentais, como ordem objetiva de valores, produzem “efeito irradiação” sobre o direito privado.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉRRER, Thiago Mendes de Almeida. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na teoria direta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3719, 6 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25235. Acesso em: 20 abr. 2024.