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Ainda existe sentido na distinção entre processo e procedimento?

Ainda existe sentido na distinção entre processo e procedimento?

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A distinção entre processo e procedimento, nos dias atuais, afigura-se desnecessária.

Inicialmente, processo e procedimento eram considerados a mesma coisa. Com o tempo e aprofundamentos jurídicos, Oskar Von Bulow publicou o livro “Teoria das Exceções Processuais” que marcou a distinção entre ambos.

A doutrina anterior a Oskar Von Bulow conceituava o processo como a mera marcha, ou avanço gradual, em direção ao provimento jurisdicional demandado.

Como afirmado por Marinoni1:

Deve-se a Oskar Bülow uma das mais importantes tentativas de explicar a natureza do processo. A sua teoria, que se tornou conhecida como teoria da relação jurídica processual, é a preferida pela doutrina clássica e pela quase totalidade dos processualistas brasileiros hoje. Dez anos após a polêmica travada entre Windscheid e Muther sobre ação, Büllow publicou [em 1868] a obra intitulada “Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias”, através da qual deu conteúdo teórico à idéia de que no processo há relação jurídica. Frise-se que a idéia de uma relação jurídica entre as partes e o juiz já era intuída à época do direito romano e pelos juristas medievais. A importância da obra de Büllow foi a de sistematizar, embora a partir da teoria da relação jurídica já edificada pelo direito privado – mas com bases em premissas de autonomia do processo em relação ao direito material e da sua natureza pública -, a existência de uma relação jurídica processual de direito público, formada entre as partes e o Estado, evidenciando os seus pressupostos e os seus princípios disciplinadores.

Na opinião Liebman2, “Na disciplina legal do processo, dois são os aspectos que requerem particular realce, por darem a ele uma precisa configuração jurídica, permitindo que se reduzam à unidade os vários elementos que em cada caso concreto concorrem para constituí-lo: trata-se da relação existente entre os seus atos e da que se estabelece entre os seus sujeitos.”

Essa ideia do processo como uma entidade complexa integrada pela relação jurídica processual e pelo procedimento remonta também a BENVENUTTI e a PAZZALARI e no Brasil foi inteiramente acatada por DINAMARCO3.

Em relação ao conceito de procedimento, Liebman assevera4:

“(...) deve-se salientar que os atos de um processo são ligados entre si como elementos de um todo, como partes de uma unidade que se protrai no tempo. O princípio dessa ligação recíproca reside na identidade do escopo formal (o ato final do processo, a sentença), para atingir o qual cada ato traz a sua contribuição, embora os sujeitos que realizam os vários atos possam ler e geralmente tenham interesses e finalidades pessoais diferentes e em parte contraditórios (cada parte visa a uma sentença de conteúdo diferente e a elas se contrapõe a posição "neutral" do juiz). Assim, tais atos são como as fases de um caminho que se percorre para chegar ao ato final, no qual se identificam a meta do itinerário preestabelecido e ao mesmo tempo o resultado de toda a operação.”

Nesse contexto, o procedimento seria o conjunto dos atos que se sucedem no tempo e que estão ligados entre si como elementos de um todo, formando uma unidade.

Já em relação ao segundo aspecto (relação que se estabelece entre os sujeitos do processo), Liebman afirma5:

“(...) deve ser realçado que a pendência do processo determina a existência de toda uma série de posições e de relações recíprocas entre os seus sujeitos, as quais são reguladas juridicamente e formam, no seu conjunto, uma relação jurídica, a relação jurídica processual”

Assim, a partir da sistematização levada a efeito por Oskar Von Bulow, o processo passou a ser concebido como uma entidade complexa, que deve ser encarado pelo dúplice aspecto da relação entre os seus atos (procedimento) e também da relação entre seus sujeitos (relação jurídica processual).

Na opinião dos processualistas tradicionais, não haveria processo quando não se cuida do exercício da função jurisdicional, uma vez que este seria puro instrumento da jurisdição.

Porém, para Candido Rangel Dinamarco, não só a jurisdição se exerce através do processo, mas também as outras formas de expressões do poder do Estado, como a legislativa e a administrativa. Deste modo, na sua opinião, seria adequado falar também em processo administrativo, sem reservar o vocábulo processo apenas em sede jurisdicional6.

Segundo Dinamarco7, o nosso Código de Processo Civil foi extremamente rigoroso no uso do vocábulo processo, chegando a evitar o seu uso quando queria designar o processo administrativo e quando queria falar de processo no trato da jurisdição voluntária, por considerar que o processo é instrumento da jurisdição e só quando se trata do exercício desta é que se pode ser aquele.

No entanto, noticia Dinamarco8 que tais preconceitos já se acham em parte superados e a doutrina mais moderna entende, a partir de uma teoria geral do processo, que o chamado procedimento administrativo é verdadeiro processo, no qual estão presentes os componentes desse complexo ente (procedimento e a relação jurídica entre o Estado e quem participa do feito). Também, nos dias atuais, fortalece-se a visão da jurisdição voluntária como verdadeira jurisdição e não administração.

No entanto, a distinção entre processo e procedimento, nos dias atuais, afigura-se desnecessária, pois se o objetivo final do processo é a entrega da prestação jurisdicional de maneira eficiente e eficaz, não faz sentido recorrer-se a uma diferenciação conceitual que não traz nenhuma consequência prática evidente.

Pelo contrário, a única consequência prática que traz é a manutenção, sobretudo no Brasil, de uma estrutura procedimental que não responde, a contento, aos anseios de nossa sociedade e que eterniza a solução dos conflitos levados ao Poder Judiciário.

A doutrina processual atual antes de ficar apegada conceitos abstratos, afastados dos fatos sociais, deve é buscar mecanismos de solução dos conflitos sociais de maneira mais rápida e eficiente.

Alias, Ovídio Baptista da Silva, ao tratar do assunto “procedimento”, revela-nos uma tendência de superação do procedimento ordinário. Para demonstrar esta tendência se refere aos processos interditais, processos sumários documentais, processos monitórios e injuncionais e as medidas de antecipação de tutela. Na opinião de Ovídio Baptista9,

Se o procedimento ordinário oferecia reconhecidas vantagens sobre os processos sumários, à medida que aquele normalmente poderia conter uma demanda plenária, capaz de trazer para o processo todo o conflito de interesses qualificador da lide, as necessidades e contingências atuais de nossa realidade têm mostrado, muito mais do que suas possíveis vantagens, as enormes e insuportáveis desvantagens desse tipo procedimental, exacerbadamente moroso e complicado, a ponto de tornar-se inadequado ao nosso tempo e às nossas exigências decorrentes de uma sociedade urbana de massa.

Segundo Ovídio Baptista10, é exatamente por este ângulo que os defeitos e inconveniências do chamado procedimento ordinário mais se destacam, porque, além de sua natural morosidade, funda-se ele igualmente num outro princípio herdado do liberalismo do século XIX, qual seja, a existência de um magistrado destituído de poderes para intervir no objeto litigioso, dando-lhe, através de decisões liminares, alguma forma de disciplina provisória enquanto a demanda se processa.

Nesse contexto, o que se observa atualmente, tanto no Brasil como nos demais países de tradição romano-canônico, é a prática, nem sempre legítima, das chamadas “sentenças liminares”, a configurar uma verdadeira rebelião contra o procedimento ordinário, acusado por muitos como um dos responsáveis pela crise em que se debate o Poder Judiciário11.

Dessa forma, se a função do processo, segundo se diz, há de ser verdadeiramente instrumental, ou seja, deverá ele ser concebido e organizado de tal modo que as pretensões de direito material encontrem, no plano jurisdicional, formas adequadas, capazes de assegurar-lhes realização específica, não há sentido em se manter uma diferenciação conceitual, que não traz nenhuma consequência prática.


Referências

COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Texto-base 1: Conceito de Ação: Da Teoria Clássica à Teoria Moderna. Continuidade ou Ruptura? Brasília - DF: CEAD/UnB, 2013. (Pós-graduação lato sensu em Direito Público). Disponível em: < http://moodle.cead.unb.br/agu/mod/folder/view.php?id=120>. Acesso em: 23 ago. 2013.

DINAMARCO, Cândido Rangel. FUNDAMENTOS DO PROCESSO CIVIL MODERNO. Tomo I. 5 Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

LIEBMAN, Erico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Notas e Tradução: Cândido Rangel Dinamarco. 2 Ed. Rio de Janeiro: Forense,1985.

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Teoria Geral do Processo. Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

SILVA, Ovídio A Baptista da. Curso de Processo Civil, Volume I, Tomo I. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.


Notas

1 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Teoria Geral do Processo. Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

2 LIEBMAN, Erico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Notas e Tradução: Cândido Rangel Dinamarco. 2 Ed. Rio de Janeiro: Forense,1985, p. 38.

3 Idem, p. 38

4 Idem, p. 39.

5 Idem, p. 40.

6 DINAMARCO, Cândido Rangel. FUNDAMENTOS DO PROCESSO CIVIL MODERNO. Tomo I. 5 Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 205.

7 Idem, p. 205.

8 Idem, p. 206.

9 SILVA, Ovídio A Baptista da. Curso de Processo Civil, Volume I, Tomo I. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 94.

10 Idem, p. 94.

11 Idem, p. 95.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Jose Domingos Rodrigues. Ainda existe sentido na distinção entre processo e procedimento?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3858, 23 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26481. Acesso em: 18 abr. 2024.