Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/27741
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A ausência de implantação de Defensoria Pública nas comarcas brasileiras

obstrução ao acesso à Justiça e violação ao princípio da dignidade da pessoa humana

A ausência de implantação de Defensoria Pública nas comarcas brasileiras: obstrução ao acesso à Justiça e violação ao princípio da dignidade da pessoa humana

Publicado em . Elaborado em .

O presente trabalho tem como objetivo, trazer a discussão o problema da ausência de Defensorias Públicas na maioria das comarcas brasileiras, o que inviabiliza aqueles que são hipossuficientes financeiros de pleitearem seus direitos perante o Estado.

A ausência de implantação da Defensoria Pública nas comarcas brasileiras: obstrução ao acesso à justiça e violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

RESUMO

O presente artigo visa discorrer sobre os reflexos ocasionados a partir da falta de implantação de Defensoria Pública na maioria das comarcas brasileiras, dentre os quais, se destacam a obstrução do acesso à justiça e a violação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Palavras-Chave:  Acesso a Justiça. Dignidade da Pessoa Humana. Defensoria Pública. Constituição Federal de 1988. Implementação.

ABSTRACT

This article aims to argue about reflexes arising from the lack of implementation of the Public Defender in most municipalties, among which stand out – the obstruction of acess to justice and the violation of the Principle of Human Dignity.

Palavras-Chave: Access to Justice. Human Dignity. Public Defender.Constituition of 1988. Implementation.

INTRODUÇÃO

            Em reportagem veiculada no site “Consultor Jurídico”[2] recentemente, constatou-se que há um déficit de 66% (sessenta e seis por cento) de Defensores Públicos Federais no país.

Em outra reportagem exibida pelo programa Fantástico no ano passado, ficaram demonstradas as consequências que decorrem da falta de criação de Defensorias Públicas em várias comarcas brasileiras.

Nesse contexto, pessoas que não possuem a sua disposição os meios necessários para reivindicar ao Judiciário as suas necessidades, ficando privadas de sua cidadania.

            A ausência de efetividade no acesso dos hipossuficientes financeiros à Justiça é o retrato claro da lacuna existente entre o Estado e seus súditos. Situação que revolta quem possui um direito e não dispõe das mínimas condições necessárias para reivindicá-lo, maculando o simples, e não menos importante, direito de petição.

            A Constituição Federal de 1988, revolucionária por trazer diversos direitos e garantias individuais, encontra-se diante de uma situação onde muitos dos direitos ali garantidos não são efetivados na realidade.

            O que será exposto a seguir é um exemplo desta crise de efetividade que vive nossa Lex Mater, onde abordaremos as consequências da ausência de implantação da defensoria pública nas comarcas brasileiras: obstrução ao acesso à justiça e violação a dignidade da pessoa humana.

1 DO INSTITUTO DA DEFENSORIA PÚBLICA
 
1.1 Da ideia de Defensoria Pública

 

A ideia mais próxima de Defensoria Pública surge nos Estados Unidos, onde em 1965, o governo americano implementou um modelo de assistência judiciária em que advogados eram remunerados pelo poder público para prestação de serviços jurídicos aqueles que não possuíam condições de arcarem com o ônus de contratar um advogado privado[3].

De acordo com este sistema, os serviços jurídicos eram prestados com o intuito de promover os interesses dos menos abastados enquanto classe social[4]. Assim, “os advogados frequentemente auxiliavam os pobres a reivindicar seus direitos, de maneira mais eficiente, tanto dentro quanto fora dos tribunais”, fazendo com que esta classe tomasse conhecimento dos direitos que possuíam, exercendo estes advogados uma função social[5].

1.2 Da previsão constitucional da Defensoria Pública e suas funções típicas e atípicas

 

Com o intuito de garantir aos que possuem hipossuficiência financeira acesso efetivo à prestação jurisdicional, a Constituição Federal de 1988 incumbiu ao Estado a implantação da Defensoria Pública em todo o país, conforme dispõe o artigo 134 in verbis:

Art. 134 – A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. (BRASIL, 2012)

 

Art. 5º Omissis

LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. (BRASIL, 2012)

 

            Desta forma, todos aqueles que comprovem sua incapacidade financeira poderão recorrer a Defensoria Pública para terem acesso a uma assistência jurídica e, consequentemente, pleitear em juízo seus direitos.

As Defensorias Públicas são instituídas por Lei Complementar nº 80/94, possuindo os Defensores Públicos a garantia de inamovibilidade, sendo vedado a estes o exercício da advocacia privada, conforme estabelece o parágrafo 1º do artigo 134 da Lex Mater.

            Além da CRFB/88, o referido diploma legal é o responsável por organizar a Defensoria Pública da União, Distrito Federal e Territórios, bem como, prescreve normas gerais para a organização da Defensoria Pública dos Estados.

            Ao observarmos a Carta Magna, verifica-se a preocupação do legislador em criar mecanismos para que o acesso à prestação jurisdicional se concretize no plano material.

            Assim, ao assumirem a causa, a Defensoria Pública pede, de imediato, ao juízo, a concessão de Justiça Gratuita ao indivíduo, de modo que, além de não ter que arcar com a assistência judicial que esta sendo prestada pela Defensoria Pública, fica este ainda isento de arcar com as custas oriundas do processo[6].

            Importante lembrarmos que, apesar de sua função típica de prestar assistência jurídica aos necessitados, a Defensoria Pública também tem por função a prestação de assistência jurídica aqueles que se encontram em estado de vulnerabilidade, seja esta processual ou organizacional[7].

            Em seu artigo intitulado Acesso à Justiça e Defensoria Pública, a Defensora Pública Federal Maíra de Carvalho Pereira Mesquita traz à baila exemplos de atuação da Defensoria Pública em sua função atípica:

Exemplos clássicos da função atípica são a defesa do réu revel no processo penal, e a atuação na qualidade de curador especial no processo civil. Em ambos os casos, o órgão é investido na função de garantir o contraditório e a ampla defesa efetivamente, em socorro aos vulneráveis processuais, independente da parte assistida[8].

 

            Deste modo, aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade não precisam comprovar sua hipossuficiência de recursos, podendo ser assistidos pela Defensoria Pública independentemente de sua renda.

2 ACESSO À JUSTIÇA

            Quando falamos de acesso à Justiça, estamos diante de um assunto discutido constantemente pela comunidade jurídica. Ademais, proporcionar a todas as pessoas acesso a um sistema onde possam reivindicar seus direitos tem sido uma grande tarefa para o Estado atualmente.

            Neste viés, impossível se falar em acesso à Justiça sem mencionarmos a clássica obra dos Professores Mauro Cappelletti e Bryant Garth Acesso à Justiça, onde os autores tratam o tema de modo exaustivo, trazendo neste livro desde a conceituação do que seria este acesso à justiça, quanto aos obstáculos a serem superados para viabilizar a justiça a todas as pessoas.

            De modo simplificado, na tentativa de buscar uma definição do que seja este acesso à Justiça, Cappelletti e Garth tratam o mesmo como sendo um “sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado”[9]

Ao falar de acesso à Justiça os autores buscam, em um primeiro momento, transmitir a ideia de um sistema cujo acesso pode se dar por qualquer pessoa, ou seja, qualquer indivíduo pode se utilizar deste meio/instrumento para a persecução de um direito ou resolução de uma controvérsia[10]

            Noutro norte, este acesso deve produzir resultados eficazes, de modo que sejam individualmente e socialmente justos[11].

            Na concepção de Cappelletti e Garth, o conceito de acesso à Justiça evoluiu com o passar do tempo. Isto porque, antigamente, este acesso dizia respeito tão somente a um “direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação”. Tal afirmação significa dizer que o acesso à Justiça era tratado como um direito natural que não precisava de uma atuação positiva estatal, por se tratar de um direito preexistente ao Estado[12].

            Neste sentido, é possível dizer que não havia uma igualdade em sentido efetivo, e sim de modo apenas formal, visto que o Estado não se preocupava em observar a incapacidade que as pessoas possuíam de utilizarem a Justiça[13]. Esta perspectiva começou a mudar a partir da transformação da concepção de direitos humanos. A visão individualista dos direitos foi superada pela visão coletiva de direitos, visão esta que passava a obrigar o Estado a atuar de modo positivo na tentativa de criar mecanismos necessários e efetivos para que as pessoas possam ter acesso ao direito pleiteado[14].

            De acordo com Cappelletti e Garth:

O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos[15].

            Interessante salientar, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 5º, incisos XXXIV e XXXV, assegura o acesso à justiça como sendo um dos direitos fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro:

Art. 5º (...)

 

XXXIV – são assegurados a todos, independentemente do pagamento de taxas:

  1. o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra  ilegalidade ou abuso de poder;
  2. a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

 

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Nesta perspectiva, o acesso à justiça deve ser visto e tratado como uma garantia que visa buscar mecanismos, de modo que, a partir destes instrumentos, os direitos preconizados no ordenamento jurídico possam ser invocados por todas as pessoas através da efetiva aproximação destas para com o Poder Judiciário.

Trata-se, assim, da possibilidade do direito de ação ser invocado por todos, de modo que, todas as pessoas, inclusive aqueles que estejam em estado de hipossuficiência financeira, possam se utilizar de meios para chegarem ao Poder Judiciário e requerer o que entendem ser de Direito.

3 DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

 
3.1 Do conceito de dignidade

  Do ponto de vista gramatical, Houaiss e Villar[16] explicam que a palavra dignidade está ligada a ideia de “consciência do próprio valor; honra; modo de proceder que inspira respeito; distinção; amor próprio”, ou seja, trata-se de características inerentes ao ser humano, sendo segundo Cruz dos Santos[17] “qualidade moral que infunde respeito”.

            O Professor Ingo Wolfgang Sarlet[18] faz alusão à ideia de dignidade segundo Kant, ao dizer que, para este “o homem é a medida de todas as coisas, e nenhum ser humano pode ser tratado como mero objeto da ação alheia, é o que distingue o ser humano das coisas”.

            Ainda neste viés em busca da definição de dignidade, Hobbes, anterior a Kant, coloca a dignidade como sendo “o preço do homem”, de modo que esta dignidade é a capacidade do ser humano de se auto determinar, traçar os destinos de sua própria história, ter a plena liberdade de fazer as suas escolhas da maneira que melhor lhe convir.[19]

            Ao recorrer aos ensinamentos de Sarlet, Rodrigues[20] discorre que o conceito está “intimamente ligado à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo – o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino”.

            Deste modo, é possível afirmar que “todo cidadão possui direito a uma vida digna, sendo - lhe assegurado o devido respeito, resguardando os seus direitos e reconhecendo seus deveres enquanto cidadão”[21].

            Por fim, Sarlet assim sintetiza o conceito de dignidade da pessoa humana:

(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co – responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida[22]

           

            De acordo com a conceituação transcrita acima, concluímos que a dignidade é qualidade inerente a todo ser humano, de modo que este tenha ao seu alcance, as condições necessárias para exercer o pleno gozo de seus direitos fundamentais, bem como, de conviver em harmonia com a sociedade na qual é componente.

3. 2 Do princípio da dignidade da pessoa humana

            A dignidade da pessoa humana parte de uma evolução histórica que se inicia por meio de sua referência nas Constituições de Weimar de 1919, Portuguesa de 1933, e Irlandesa de 1934. Entretanto, tais constituições não faziam menção à dignidade enquanto princípio normativo.[23]

Inicialmente, antes de adentrarmos no assunto da elevação da dignidade humana ao status de princípio constitucional, devemos fazer uma menção, ainda que de modo sintetizado acerca da distinção entre regras e princípios.

            Tanto as regras quanto os princípios, segundo Dworkin, se assemelham, haja vista que “ambos estabelecem obrigações jurídicas”, e o que os diferencia um do outro é “o tipo de diretiva que apresentam”[24].

            Contudo, “aplica-se a regra segundo o modo do tudo ou nada; de maneira, portanto, disjuntiva”, ao passo que os princípios “são argumentos que descrevem direitos”, ou segundo Alexy citado por Branco “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida, dentro de suas possibilidades jurídicas e reais existentes”, sendo, portanto, “comandos de otimização” (BRANCO E MENDES, 2013, p. 73 e 74)[25].

A dignidade da pessoa humana como princípio normativo, passou a ser discutida após a Segunda Guerra Mundial.

            Neste sentido, importante nos reportarmos aos ensinamentos do Professor Fábio Konder Comparato:

O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo – como um ser inferior, sob pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial[26].

            Como forma de inibir que tal situação ocorresse novamente, o Tribunal Constitucional Alemão passou a considerar a Dignidade da Pessoa Humana não apenas como um direito fundamental, mas também como um princípio fundamental, sendo inclusive cláusula pétrea[27].

            No Brasil, a Dignidade da Pessoa Humana enquanto princípio constitucional encontra sua previsão no artigo 1º, inciso III da CRFB/88, sendo um dos princípios fundamentais que norteiam a República Federativa do Brasil.

            Em seu artigo Dignidade da Pessoa Humana: do conceito a sua elevação ao status de princípio constitucional, Rodrigues[28] sintetiza a ideia do Professor André Ramos Tavares ao mencionar que, apesar de fazer menção expressa à dignidade da pessoa humana como princípio, a Constituição Federal de 1988 não a inseriu no bojo dos direitos e garantias fundamentais previstos em seu artigo 5º.

            Portanto, a dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro, assim como no direito alemão, pode atuar tanto como princípio quanto como regra[29].

            Tamanha é a importância da dignidade da pessoa humana enquanto princípio, que pode esta ser encarada como sendo “um dos fundamentos principais, senão o fundamento basilar do Estado Democrático de Direito”, de modo que, tal princípio “influenciou, senão todos, a grande maioria dos direitos fundamentais atuais”[30].

            Conclui-se, portanto, que as diferenças existentes entre os indivíduos enquanto parte integrante de uma sociedade pluralista não devem ser vistas como uma deficiência, mas, sim, como fontes valorativas positivas a serem estimuladas e protegidas[31].

                       

4 A AUSÊNCIA DE DEFENSORIA PUBLICA NAS COMARCAS BRASILEIRAS: OBSTRUÇÃO AO ACESSO A JUSTIÇA E VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

            Apesar de a Defensoria Pública ser um órgão criado para extirpar as barreiras que impedem aquelas pessoas que não possuem recursos financeiros de acionar o Judiciário em busca de seu direito, verifica-se, no entanto que, em grande parte das comarcas brasileiras este órgão ainda não foi implementado.

             A falta deste órgão tão importante a Justiça nestas comarcas acarreta consequentemente a obstrução ao acesso a justiça daqueles que não possuem condições econômicas de contratar um advogado para que possa buscar o direito no qual lhe compete.

            Mais do que isso, impossibilita aos indivíduos, muitas vezes, gozarem de todas as condições que lhes são oferecidas para que alcancem os seus anseios, seus objetivos particulares e, até mesmo, coletivos.

            Segundo André Paulo Francisco Fasolino de Menezes,

 

a Defensoria Pública é o órgão público que por excelência concretiza a dignidade da pessoa humana e efetiva o acesso à justiça, pois, invariavelmente, dá voz aos oprimidos e desfavorecidos[32].

           

            Menezes[33] afirma, ainda, que a Defensoria Pública é muito mais do que uma instituição pertencente ao Poder Judiciário, sendo também instituição cujo escopo principal seja transformar a sociedade, sendo o instrumento necessário e indispensável aos hipossuficientes financeiros para que estes possam concretizar o direito a ter direitos, este pertencente a todo e qualquer ser humano.

            Assim, não podemos falar de acesso à justiça sem que estas pessoas possam ter a sua disposição mecanismos para ter uma efetiva prestação jurisdicional do Estado, o que segundo Cappelletti e Garth, inviabiliza falar em uma igualdade material, ou igualdade de fato:

“(...) o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos”[34].

 

            Em números, apenas 754 das 2.680 comarcas brasileiras possuem Defensoria Pública, ou seja, apenas 28,13% tem este instituto implantado[35].

            A partir destes dados[36], podemos concluir que as localidades com maior carência de recursos não estão se fazendo ouvir pelo Poder Judiciário, e, ainda, que a democracia nestes lugares não se concretiza no plano material.

            Ao não conseguir exercer o direito de ação, direito público subjetivo de obter uma prestação jurisdicional do Estado, que no caso destas pessoas só pode ser exercido por meio da Defensoria Pública, estamos diante de situação na qual o indivíduo não possui a mínima condição de reivindicar e futuramente gozar de um direito que lhe assiste, o que agride a dignidade da pessoa humana no tocante ao engessamento do exercício pleno de busca a concretização de sua felicidade.

            Diante desta situação de ausência de Defensoria Pública na maioria das comarcas brasileiras, a jurisprudência tem enfrentado este problema determinando a implantação deste instituto, vejamos o exemplo do julgado abaixo:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRETENSÃO: INSTALAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO EM IMPERATRIZ (MA). DEFESA DOS NECESSITADOS EM SENTIDO AMPLO NÃO REALIZADA. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO À JURISDIÇÃO E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA NÃO IMPLEMENTADAS. NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE IMPLANTAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. VIABILIDADE. 1. A defensoria pública é órgão essencial à atividade jurisdicional do Estado, nos termos do art. 134 da Constituição. 2. O direito à jurisdição e o direito à assistência judiciária integral e gratuita são direitos fundamentais. Os pobres não podem ser privados de acionar a justiça e de ser defendidos pelo órgão constitucionalmente encarregado para tal, em razão da falta de instalação da defensoria pública da União em determinado município, sede de vara federal. 3. Apelação parcialmente provida. Demanda julgada parcialmente procedente para que seja reservado um cargo no futuro concurso da defensoria pública da União para lotação no município de Imperatriz-MA, instalando lá sua unidade administrativa. Precedente: AC 200637020018383/MA, rel. orig. desembargador Fagundes de Deus, rel. para acórdão juiz convocado Gláucio Maciel Gonçalves, 5ª T., maioria, DJ-2/12/2011, p. 213. (TRF-1 - AC: 200437010013523 MA 2004.37.01.001352-3, Relator: JUIZ FEDERAL MARCELO DOLZANY DA COSTA, Data de Julgamento: 30/07/2013, 2ª TURMA SUPLEMENTAR, Data de Publicação: e-DJF1 p.276 de 08/08/2013)[37].

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4270 de Santa Catarina[38], determinou que o estado catarinense, no prazo de um ano, implantasse a Defensoria Pública estadual, pois até 2012, o estado não havia ainda criado tal instituição:

Ementa: Art. 104 da constituição do Estado de Santa Catarina. Lei complementar estadual 155/1997. Convênio com a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC) para prestação de serviço de “defensoria pública dativa”. Inexistência, no Estado de Santa Catarina, de órgão estatal destinado à orientação jurídica e à defesa dos necessitados. Situação institucional que configura severo ataque à dignidade do ser humano. Violação do inc. LXXIV do art. 5º e do art. 134, caput, da redação originária da Constituição de 1988. Ações diretas julgadas procedentes para declarar a inconstitucionalidade do art. 104 da constituição do Estado de Santa Catarina e da lei complementar estadual 155/1997 e admitir a continuidade dos serviços atualmente prestados pelo Estado de Santa Catarina mediante convênio com a OAB/SC pelo prazo máximo de 1 (um) ano da data do julgamento da presente ação, ao fim do qual deverá estar em funcionamento órgão estadual de defensoria pública estruturado de acordo com a Constituição de 1988 e em estrita observância à legislação complementar nacional (LC 80/1994). (STF - ADI: 4270 SC , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 14/03/2012, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-188 DIVULG 24-09-2012 PUBLIC 25-09-2012)

 

Os recentes julgados acima e transcritos preconizam claramente que não se pode privar dos pobres o direito a obterem o acesso ao Poder Judiciário. Ao contrário, cabe ao Estado proporcionar meios que possibilitem às pessoas mais necessitadas se fazerem ouvidas pela Justiça.

 

CONCLUSÃO

            A partir dos argumentos expostos, concluímos que a ausência de implantação da Defensoria Pública na maioria das comarcas brasileiras, mais do que obstar o acesso ao Poder Judiciário, tem por efeito principal a impossibilidade das pessoas mais carentes de recursos financeiros poderem pleitear direitos que lhe pertencem.

            Ora, se entendemos a dignidade da pessoa humana como sendo a possibilidade do homem se utilizar de todos os meios disponíveis para alcançar todos os seus objetivos que estão a ele apresentados, os que carecem de condições financeiras se veem de mãos atadas, ou pior, não possuem a oportunidade de se fazerem ouvir pela Justiça.

            A Defensoria Pública é instituição indispensável à sociedade, sendo o instrumento, a voz e a ponte que leva os anseios da população carente ao Estado. É, ainda, responsável pela transformação social e por aproximar estas pessoas de um direito que, até então, não podia ser invocado devido a ausência de instrumentos.

            Ao contrário do que vemos idealizado por Cappelletti e Garth, estamos diante de um acesso meramente formal, escrito, que ainda não se materializou no plano material e assim, contribui para o aumento da desigualdade social.

            O que fazer então diante desta situação que vive o Estado Brasileiro?     Diante deste quadro, cumpre à sociedade o papel de se mobilizar e reivindicar ao Poder Público a instituição da Defensoria Pública nas comarcas que ainda não a possuem, fazendo valer o direito preconizado naquela que Ulysses Guimarães denominou de Constituição Cidadã.

            Uma alternativa para fomentar esta reivindicação social poderia se dar através da criação de grupos de discussão organizados por representantes da sociedade e da classe acadêmica, com o objetivo de demonstrar à população a necessidade e a importância da instalação da Defensoria Pública nestas comarcas, o que seria interessante, pois desta forma, seria possível vislumbrar a função da defensoria enquanto intermediário entre o indivíduo ao Poder Judiciário, utilizando-se desta ponte (no caso a defensoria) para reivindicar um direito que alega lhe pertencer.

            Outro caminho interessante a ser seguido para tentar resolver tal problema, seria a adoção da tese desenvolvida pelo Prof. Walter Claudius Rothemburg[39] chamada ”Troca de Sujeito”, segundo a qual, a partir da omissão do sujeito, atribui-se a outro sujeito constitucional a possibilidade de resolver o problema/omissão, ainda que de modo parcial ou temporal.

            Por fim, percebe-se que a falta de implantação da Defensoria Pública demonstra a crise de efetividade das normas constitucionais no plano material. Apesar da Carta Magna de 1988 se caracterizar por ser uma Constituição que trouxe em seu bojo uma infinidade de direitos e garantias fundamentais, a mesma padece de falta de aplicabilidade concreta, ou seja, percebe-se a dificuldade de concretizar na prática os dispositivos mencionados na Lex Mater, inclusive, a ausência deste instituto na maioria das comarcas brasileiras.

           

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASILIA. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4270 de Santa Catarina. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Julgamento em 14/03/2012. Acompanhamento Processual. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22869968/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-4270-sc-stf>. Acesso em: 7 nov. 2013.

CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1.988.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2010.

MARANHÃO. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO. Ação Civil Pública nº 200437010013523. Relator: Juiz Federal Marcelo Dolzany da Costa. Julgamento em 30/07/2013. Acompanhamento Processual. Disponível em: http://trf-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23939166/apelacao-civel-ac-200437010013523-ma-20043701001352-3-trf1. Acesso em: 7 nov. 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

MENEZES, André Paulo Francisco Fasolino de. A dignidade humana no século XXI e a Defensoria Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3723, [10] set.[2013]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25265>. Acesso em: 5 nov. 2013. Leia mais: http://jus.com.br/artigos/25265/a-dignidade-humana-no-seculo-xxi-e-a-defensoria-publica/5#ixzz2jnkpnOvY.

MESQUITA, Maíra de Carvalho Pereira. Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3491, [21]jan. [2013] . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23504>. Acesso em: 4 nov. 2013.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/23504/acesso-a-justica-e-defensoria-publica#ixzz2jhGX3rT3.

RODRIGUES, Lincoln Almeida. Dignidade da Pessoa Humana: do conceito a sua elevação ao status de princípio constitucional. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF. Acesso em: 29 nov. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.34647&seo=1>. Acesso em: 4 nov. 2013.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e o Direito a Vida. São Paulo: Rede Luís Flávio Gomes. Aula ministrada aos alunos do Curso de Pós Graduação em Direito Constitucional da Universidade Anhanguera – Uniderp / Rede LFG.

[1] Lincoln Almeida Rodrigues, Advogado; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera – UNIDERP; Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; E-mail: [email protected].

[2] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-abr-07/deficit-defensores-publicos-federais-chega-66-pais. Acesso em 10. abr. de 2014

[3] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 40

[4] Ibidem

[5] Ibidem

[6] MESQUITA, Maíra de Carvalho Pereira. Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3491, [21]jan. [2013] . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23504>. Acesso em: 4 nov. 2013.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/23504/acesso-a-justica-e-defensoria-publica#ixzz2jhGX3rT3.

[7] Ibidem

[8] Ibidem

[9] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 08

[10] Ibidem

[11] Ibidem

[12] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 09

[13] Ibidem

[14] Ibidem

[15] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12

[16] Ibidem

[17] Ibidem

[18] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e o Direito a Vida. São Paulo, Rede Luis Flávio Gomes. Aula ministrada aos alunos do Curso de Pós Graduação em Direito Constitucional da Universidade Anhanguera – Uniderp / Rede LFG.

[19] Ibidem.

[20] Ibidem

[21] RODRIGUES, Lincoln Almeida. Dignidade da Pessoa Humana: do conceito a sua elevação ao status de princípio constitucional. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF. Acesso em: 29 nov. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.34647&seo=1>. Acesso em: 4 nov. 2013.

[22] RODRIGUES, Lincoln Almeida. Dignidade da Pessoa Humana: do conceito a sua elevação ao status de princípio constitucional. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF. Acesso em: 29 nov. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.34647&seo=1>. Acesso em: 4 nov. 2013.

[23] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e o Direito a Vida. São Paulo, Rede Luis Flávio Gomes. Aula ministrada aos alunos do Curso de Pós Graduação em Direito Constitucional da Universidade Anhanguera – Uniderp / Rede LFG.

[24] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 73.

[25] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 73 e 74.

[26] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2010, p. 241.

[27] Ibidem.

[28] RODRIGUES, Lincoln Almeida. Dignidade da Pessoa Humana: do conceito a sua elevação ao status de princípio constitucional. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF. Acesso em: 29 nov. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.34647&seo=1>. Acesso em: 4 nov. 2013.

[29] Ibidem

[30] Ibidem

[31] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2010, p. 241.

[32] MENEZES, André Paulo Francisco Fasolino de. A dignidade humana no século XXI e a Defensoria Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3723, [10] set.[2013]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25265>. Acesso em: 5 nov. 2013.

Leia mais: http://jus.com.br/artigos/25265/a-dignidade-humana-no-seculo-xxi-e-a-defensoria-publica/5#ixzz2jnkpnOvY.

[33] Ibidem

[34] Ibidem.

[35] Ibidem.

[36] Ibidem.

[37] MARANHÃO. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO. Ação Civil Pública nº 200437010013523. Relator: Juiz Federal Marcelo Dolzany da Costa. Julgamento em 30/07/2013. Acompanhamento Processual. Disponível em: http://trf-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23939166/apelacao-civel-ac-200437010013523-ma-20043701001352-3-trf1. Acesso em: 7 nov. 2013.

[38] BRASILIA. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4270 de Santa Catarina. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Julgamento em 14/03/2012. Acompanhamento Processual. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22869968/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-4270-sc-stf>. Acesso em: 7 nov. 2013.

[39] Tese de Doutorado do Prof. Walter Claudius Rothemburg abordada pelo mesmo durante ministração da aula Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e Mandado de Injunção na Universidade Anhanguera - Uniderp


Autor

  • Lincoln Almeida Rodrigues

    Advogado. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Campus Arcos/MG. Pesquisador do grupo de pesquisa Hermenêuticas e dimensões da ideia de Justiça da Universidade Metodista de São Paulo. Membro Colaborador da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MG (2013) Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Filosofia do Direito e Direito Administrativo, atuando principalmente nos seguintes temas: Direitos Fundamentais, Hermenêutica Jurídica, Controle de Constitucionalidade e Teoria do Direito.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.