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A função social do direito à luz do direito comparado e o crocodilo de Dostoievski

A função social do direito à luz do direito comparado e o crocodilo de Dostoievski

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O Direito enfrenta uma autopoiese, fechando-se para qualquer influência externa e culminando em uma multiplicação de regras jurídicas que nem sempre atendem ou efetivam o provimento jurisdicional.

Notas introdutórias

O Direito é como a arte, como a educação. Ora, cada uma destas é, não há como negá-lo, produto da cultura, e forma-se segundo a índole dos povos; porém, a cultura é filha da natureza do homem, estimulada pela natureza exterior. Se não fora assim, a cultura mesma seria impossível, irrealizável, incompreensível. É tão incongruente fantasiar um direito eterno, anterior e superior aos povos, como o é imaginar uma cultura aérea, que não repousasse na índole mesma natural do homem e em a natural capacidade que ele tem de se desenvolver. (Silvio Romero, Ensaio de Filosofia do Direito, 2ª ed., página 294).

Muito se fala em Direito aplicado, reflexos teóricos no cotidiano prático, reformas normativas, mas não se fala como deveria no que é recorrente somente na literatura jurídica: função social do direito como fenômeno jurídico e sua importância na epistemologia jurídica.

Considero primordiais as reflexões acerca da função social do Direito e seu papel como freio à banalização doutrinária e jurisprudencial ante a prática-forense e o desenvolvimento do Poder Judiciário na sociedade, sob um prisma do Direito Comparado e a morosidade do judiciário esparzindo entraves burocráticos na vida jurídica brasileira.

Vivemos um momento em que o Direito enfrenta uma autopoiese, fechando-se para qualquer influência externa e culminando em uma multiplicação de regras jurídicas que nem sempre atendem ou efetivam o provimento jurisdicional; isto é, há uma gama de direitos internos e transnacionais que nem sempre atingem a sua finalidade, reduzindo-se a mera condição simbólica em textos normativos.

O estudo e prática da ciência jurídica acabam se tornando nada autênticas, já que a práxis se limita a interesses individuais ou fins menores que não trazem qualquer consequência significativa ao sistema jurídico. Surgem mais e mais obras reproduzindo de forma idêntica seus conteúdos, adstritos a temas basilares, sem quaisquer rigores científicos, que acaba traduzindo o direito em mera aplicação robótica de textos escritos.

Desconsiderar o princípio basilar da função social do Direito em prol de uma sanha em absorver todo o conteúdo dogmático da ciência para fins individuais culmina em um mare magnum de bacharéis produzidos por uma gama inenarrável de instituições jurídicas.

O resultado acaba sendo um enfraquecimento do sistema jurídico como um todo, pois se tem, desta forma, a perpetuação da ineficiência do Poder Judiciário em razão do pensamento mecânico e exegeta da lei, muitas vezes submetido à própria cognição dogmática do operador do direito — condicionando, portanto, a prestação jurisdicional à individualidade e subjetividade de cada julgador. Sendo contumaz essa forma imprecisa de abordar-se a ciência jurídica nos tribunais, não me parece que o resultado de uma provável demanda, verbi gratia, será obtido de forma distinta.

Desde o início de nossa vida como povo independente, uma das lamentações constantes dos juristas tem sido a multiplicidade desordenada, quando não conflitante, de textos legais marcados pela pressa e até mesmo pela sofreguidão. Leis imperfeitas, quanto ao fundo e à forma, exigem do jurista, do advogado, do juiz ou do administrador, uma contribuição criadora capaz de suprir lacunas ou de complementar deficiências. Daí, em certos campos, por mais que se diga que a lei prima, esse primado se submete a campos, por mais que se diga que a lei prima, esse primado se submete à exigências da exegese ou da interpretação, tornando-se, entre nós, mais aguda a advertência de que, “no fundo a lei é sua interpretação”, a qual varia no tempo, em função da emergência de novos valores ou de novos fatos(...) (cf. REALE, 2010, p. 218).

Entretanto, por muitas vezes, as chamadas soluções empíricas para os casos concretos encontram entraves nelas mesmas, conspurcando ainda mais a eficiência da aplicação do Direito e representando risco iminente à nossa legislação.

Decerto essas soluções empíricas são tão revestidas de dogmas e complicações quanto a própria norma, culminando na busca do operador do direito por formas de driblar ou soçobrar o sentido de saídas que já foram encontradas como forma de dar novo jaez a um dispositivo.

Daí, um “improviso jurídico” se constrói, ensejando novas e constantes reformas em entendimentos jurisprudenciais, normativos e doutrinários, reduzindo o Direito aplicado a mero laboratório teórico que enfraquece o provimento jurisdicional com o crocodilo da burocracia que se forma a partir de tais práticas.

Não me refiro à estagnação do Direito em si, mas sim de uma forma eficiente, desembaraçada de teorias rasas — ou elaboradas “a jato”, no dizer de Miguel Reale, que acabam se tornando referência na cognição do operador do direito por integrarem a “teoria maior” de contingências de meio social — e menos burocrática de entregar a prestação jurisdicional, fazendo a função social, alinhada às reais necessidades da sociedade, amparada pelo estudo do Direito Comparado, primazia neste objetivo.


O Culturalismo à luz da função social do Direito

A formação da norma, já no processo legislativo, muitas vezes —ou, considerando-se a problemática apresentada, sob uma ótica bastante pessimista, sempre — inicia-se sem visar o verdadeiro fim de sua criação, ignorando os critérios sociais que demandam seu nascimento.

Logo, tem-se dúvida ou interpretações diversas acerca da redação, a vontade do legislador ao editar determinada lei, et cetera, já que em sua matriz, a própria estrutura da norma jurídica nasce eivada de ineficiência em tratar da função social dos institutos jurídicos criados ou modificados dentro do nosso sistema jurídico. A função dos juristas, muitas vezes, limita-se a descobrir, com auxílio de vários processos de interpretação, a solução que em cada caso corresponde à sobredita vontade do legislador — juris-consulta sine lege loquens erubescit (Cf. DAVID, p.87). Outras fontes de Direito acabam se tornando secundárias, ou subordinadas a uma hierarquia que pode gerar algum entrave na hora da prestação jurisidicional. Com efeito, desconsiderar o direito latu sensu para limitá-lo à edição de leis seria confundir o Direito e a lei, ver na lei a fonte exclusiva do direito, o que contraria toda a tradição romano-germânica (Cf. DAVID, p. 88).

A sociedade, desde seus primórdios, disciplinou o papel do Direito e sua finalidade dentro de modelos políticos, econômicos e culturais, estabelecendo como seu alicerce a real necessidade destas disciplinas nas relações sociais. Criou-se, portanto, um princípio basilar no ordenamento jurídico que resguarda a finalidade e função da norma na estrutura dogmática da sociedade: a função social do Direito.

Consoante o “culturalismo” no direito brasileiro de Tobias Barreto, na chamada “Escola do Recife”, vê-se o Direito como um fenômeno histórico e cultural, um desenvolvimento no tempo. Silvio Romero, ao revés, fazia críticas à teoria de Tobias, pregando a combinação da natureza, civilização e cultura. (cf. REALE, 2010, p. 232-240)

De toda forma, desconsiderando as particularidades sociológicas e filosóficas de cada teoria — o que demandaria tempo desnecessário, pois tergiversaria do assunto principal deste trabalho —, a tendência à compreensão histórico-cultural da sociedade, da existência humana, me parece bastante concatenada com o surgimento da função social do direito. Ora, a ciência jurídica estuda e disciplina os fenômenos sociológicos que permeiam as necessidades e anseios da coletividade reduzidos à codificação positiva e aplicação da então formada norma dentro de um sistema jurídico.

Com efeito, o mundo evoluiu, novas necessidades sociais surgiram e o Direito, como um todo, deve acompanhar tais mudanças para se manter a sociedade devidamente politizada e organizada com base em metodologias científicas para instituições jurídicas. Logo, (...) O direito sempre teve uma função social. A norma jurídica é criada para reger relações jurídicas, e nisso, a disciplina da norma deve alcançar o fim para o qual foi criada. Se ela não atinge o seu desiderato não há como disciplinar as relações jurídicas, e, portanto, não cumpre sua função, seu objeto” (cf. CARVALHO, 2008, p. 32).

Os pilares da cultura e demais bases consuetudinárias têm forte influência sobre determinados avanços normativos e servem de inspiração para novos modelos jurídicos que um momento social exige; daí o conceito de função social no momento da concepção da codificação.

Verbi gratia, pode-se citar a Rus'kaya Pravda do século XIII, 1280 DC, no antigo leste eslavo, no Principado de Kiev, durante a era de divisões feudais. Tratava-se da codificação que reunia uma coleção de normas de caráter consuetudinário, que surgiu das relações sociais deste período.

Naquele momento normativo, havia a necessidade de disciplinar o sistema de relações feudais e desigualdade social, bem como instituir sanções e penalidades — talvez um esboço de um sistema e codificação cível e penal que marcou a evolução daquele principado como sociedade — por danos ambientais, invasão de propriedade, et cetera.

Houve, ademais, a criação de ritos processuais que se constituíam na oitiva de testemunhas, dilação probatória e até apuração de fatos controversos — um embrião de algo que se aproximaria ao inquérito policial e cognição sumária do magistrado — e demais atos forenses que surgiram no Diploma em comento.

É notório que o momento em que a sociedade Rus’ de Kiev se encontrava demandava um sistema positivado que seria o estopim para um avanço concreto. A edição da Rus'kaya Pravda  marcou-se, portanto, como uma espécie de constituinte que trouxe alguma forma de estabilidade às relações sociais (pura e simples) que, daquele ponto em diante, passaram a ser tratadas como relações sociais jurídicas.

Igualmente, no século XIX, é possível falar na Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII, que disciplinou as discussões, existentes na época da revolução industrial, sobre as relações entre o governo, operário, negócios e Igreja. Seu conteúdo tratava de uma situação social presente naquele momento e como evoluía para uma crise de conflitos. Haviam, ainda, críticas sobre a situação de miséria e pobreza a qual os trabalhadores estavam submetidos em razão de um liberalismo irresponsável, de um capitalismo desenfreado e de patrões que não seguiam quaisquer normas trabalhistas — que rebaixava o tratamento dado ao operário ao nível desumano.

A Rerum Novarum passou a disciplinar, naquele momento em específico, as relações humanas. Em essência, desconsiderando as peculiaridades de cada sociedade e seu grau de evolução, tratava-se de corrente filosófica que, ao final, possuiria a mesma função social da Rus'kaya Pravda: a de transformar a estrutura da sociedade em detrimento de determinado momento das relações humanas existentes.

Com efeito, volto ao conceito de eficácia normativa com fulcro em sua finalidade social. A crítica funda-se em edição de leis que em nada socorrem, sob um aspecto geral, as necessidades sociais. Tais quais as sobreditas sociedades pretéritas, a atual conjectura de nossa coletividade também necessita de um avanço significativo, mormente pelas novas nuances culturais e de valores sociais que outrora não eram disciplinados.

Um sistema normativo defasado e embaraçado em entraves burocráticos que conspurcam a prestação jurisdicional apenas estagna o progresso da sociedade, mormente por alguns valores jurídicos que parecem ter parado no tempo — criando o assombroso fantasma da burocracia ilustrado pela figura do crocodilo de Fiódor Dostoievski.

Tendo traçado este problema, fala-se, portanto, no direito comparado como catalisador de estudos que possuem impactos na sociologia do direito e, no plano aplicado, no sistema normativo. Assim, “o estudo de outros direitos desenvolve-se concomitantemente à pesquisa das sociedades nos quais os direitos se formatam” (cf. GODOY, ‘Notas Introdutórias ao Direito Comparado’).


O Direito Comparado à luz da Função Social do Direito

Novas nuances sobre a estrutura do sistema judiciário pátrio devem ser alcançadas, de forma a alavancar um progresso normativo que esteja em consonância com a leitura do mundo, de costumes e práticas — surgido do estudo do Direito Comparado.

Da leitura de René David extraímos que o Direito Comparado é útil para um melhor conhecimento de nosso direito nacional e para seu aperfeiçoamento (DAVID, 1996, p.5). A comparação com sistemas que possuem disciplinas avançadas sobre determinadas matérias decerto contribui para conter a elefantíase normativa que multiplica direitos, esparzindo teorias que aprazem somente os tecnocratas e burocratas.

O momento se faz necessário para a revolução da brevidade, seja nas petições formuladas em juízos, seja nas decisões que se escusam da objetividade ou das edições de leis que parecem servir o único propósito de terem entendimentos que se contrariam.

O Judiciário brasileiro é altamente requisitado, dado o volume de demandas que abarrotam os operadores do direito. Uma visão clara e precisa permite ao magistrado, por exemplo, a apreciação de demanda desembaraçada de entraves burocráticos, tecnocráticos, limitando-se ao direito puro e simples, dentro de suas peculiaridades.

Alcançar um sistema objetivo e prático requer esforços não somente do legislativo, mas do próprio poder Judiciário e seus envolvidos. O estudo de outros direitos, naturalmente, pode desenvolver uma nova perspectiva sobre as problemáticas enfrentadas cotidianamente pelos operadores do direito. O enriquecimento cultural implica em enriquecimento de idéias e propostas que podem enrobustecer a esfera jurídica, livrando-a da capa que impede que a função social da norma seja alcançada.

Decisões técnicas, que somente os especialistas entendem — quando isso ocorre — não me parecem refletir avanço na conjectura do sistema jurídico nacional. Tecnicismo este que é, muitas vezes, defasado e que não acompanha a evolução da sociedade e o abandono de certos preciosismos envoltos em nostálgica característica de arte na redação jurídica. Há alguma resistência em abandonar termos que, visivelmente denotariam certa erudição ou intelectualidade, mas que, a bem da verdade, são um grande entrave na função da jurisdição para o jurisdicionado; para citar alguns exemplos, utilizados pelo Ministro Luis Roberto Barroso em sua crítica aos textos prolixos e cansativos no artigo A REVOLUÇÃO DA BREVIDADE1, temos: chamar autorização de cônjuge de outorga uxória, recurso extraordinário de irresignação derradeira, petição inicial de exordial, dentre outros que em nada agregam ao valor social da prestação jurisdicional, apenas causam confusões na transmissão da mensagem aos que não possuem conhecimento avançado do vernáculo.

O escopo principal do provimento jurisdicional não deve ser a exposição de linguajar complexo, isto é, do resgate do caráter poético e artístico de petições que outrora traziam alguma nobreza, sendo escusa a aplicação ou interpretação de determinadas situações do cotidiano em prol da tecnocracia normativa que não trará algum proveito à tutela pretendida pelo jurisdicionado.

Aos operadores do direito incumbe a pesquisa e crítica social e filosófica sobre as diferentes formas de sistemas existentes ao redor do mundo, e como estes sistemas podem ser aplicados ao cotidiano jurídico pátrio. Nesse sentido, René David, em sua obra ‘Os grandes sistemas do Direito contemporâneo’, ensina que “as vantagens que o direito comparado oferece pode, sucintamente, ser colocadas em três planos. O direito comparado é útil nas investigações históricas ou filosóficas referentes ao direito; é útil para conhecer melhor e aperfeiçoar nosso direito nacional; é, finalmente, útil para compreender os povos estrangeiros e estabelecer um melhor regime para as relações da vida internacional” (DAVID, 1996, p.3).

Aperfeiçoar o Poder Judiciário é objetivo imediato que merece atenção especial por concentrar demandas que simplesmente não encontram seu fim pelo volume acumulado. Por exemplo, fala-se até hoje em julgamento de demandas de 1992, 1997. Entendo que driblar a burocracia com o uso de leis que realmente sejam objetivas, a revogação de outras que não são nada além de entraves contraditórios, dificultando a aplicação de um direito que determinado dispositivo garante, seria o estopim para alguma mudança.

Lamentavelmente, vivemos em uma realidade jurídica que não se projeta para uma melhoria, tão somente à homenagem de feitos históricos que, naquele momento atendiam ao objetivo desejado, mas que hoje requer certo esforço do operador do direito, principalmente dos tribunais superiores, para enquadrar certa situação numa realidade normativa. A título figurativo temos o crime de abuso infantil ou aliciamento de menores, pejorativamente conhecido como pedofilia, que demorou anos até possuir uma disciplina direta, rígida e eficaz codificada. O manuseio normativo para punir o transgressor que incorre em tais práticas até então era defasado, principalmente porque se falava em “presunção de vulnerabilidade”, e faziam-se interpretações extensivas da lei para alcançar o desiderato repressivo.

A disciplina sobre a união homoafetiva ainda encontra constantes barreiras para ser tolerada, disciplinada e, sobretudo, considerada como legítima na sociedade civil. Vivemos um momento em que o retrocesso na vida em coletividade impera e o estudo das ciências jurídicas e do direito, em sua esmagadora maioria, se limita a aplicações voltadas a tecnocracia, agraciando os estudantes com cargos públicos, ou seja, a reprodução da estagnação normativa. O direito civil, que trata das relações humanas, interpessoais, estagnou — em termos de norma positivada — em 2002, quando era considerado o Novo Código, que, a bem da verdade, já não é tão novo assim. Muito se conquistou, muito mudou, seja nas relações humanas, no avanço tecnológico ou nas necessidades individuais que se refletem na coletividade.

Perpetuar o sistema jurídico como algo de vanguarda que presta constantes homenagens aos acadêmicos do passado e que busca aperfeiçoar teorias já criadas, havendo certa resistência em inovações jurídicas por valores subjetivos, ao revés dos interesses estatais, é consagrar o fracasso do operador do direito na eficácia do provimento jurisdicional.

O pano de fundo do direito comparado é sempre plasmado na busca de soluções que permitam o desenvolvimento de um direito interno que seja melhor (Cf. GODOY, ‘Notas Introdutórias ao Direito Comparado’), buscando soluções para um ordenamento jurídico realmente justo, não as promessas romantizadas em textos positivados, a redução à condição de papel que era citada por Ferdinand Lasalle. Neste diapasão, consoante explana Rodolfo Sacco a ciência comparatista se identificaria com a pesquisa de um modelo melhor, conduzida mediante a análise do modelo estrangeiro. A especulação sem objetivo a respeito dos modelos jurídicos de diversos ordenamentos seria puro empirismo ou um exercício erudito, mas não ciência (SACCO, 2001, p.26).

Possuímos Diplomas Legais que, em sua maioria necessitam de constantes inclusões de dispositivos – nem sempre felizes, diga-se – para se adequar a uma realidade momentânea. Na lição do ilustre professor Arnaldo Godoy, é inegável que várias emendas constitucionais enxertadas na Constituição brasileira de 1988 comprovam efeitos da globalização em nosso constitucionalismo (Cf. GODOY, p.19). A constante busca pelo aprimoramento do sistema normativo deve ser primazia no objeto de estudo do operador do direito. A título ilustrativo temos Roland Séroussi, que ocupou-se com relações entre direito e religião, a propósito dos direitos islâmico e hindu, estudando também direitos chinês e japonês (Cf. Seróussi, 2003, apud GODOY, p.27); e Éric Agostini, que estudou como os direitos são importados e exportados, referencial conceitual que permite que se entenda como se processam as migrações constitucionais (Cf. AGOSTINI, 1988, p.243, apud, GODOY, p.27).

É possível identificar diversas semelhanças entre nosso direito pátrio e alienígena, corroborando a tese de que o Direito, como um todo, é apenas um, divergindo em peculiaridades culturais que diferenciam as normas. Logo, o que vem sendo exposto ao longo deste trabalho é reforçado: a amplitude e enriquecimento cultural com condão de melhoria no sistema normativo e sociológico nacional. Nesse trilhar, a Índia, organizada como uma união de estados, ou, no dizer do Preâmbulo de sua Constituição, “Soberana Socialista Secular República Democrática”2, trata do direito de igualdade em seu artigo 14, esmiuçando-o nos artigos 15 e 16 (Dos Direitos Fundamentais).

Em curiosa comparação, a Constituição Federal de 1988 adotou o princípio de igualdade de direitos, disciplinando o direito de tratamento idêntico pela lei em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico, previsto no artigo 5º, bem como os princípios fundamentais do artigo 3º; percebe-se que a isonomia disciplinada em muito se assemelha ao tutelado no artigo 15, subseção 1 da Constituição Indiana, a saber:

15. (1) O Estado não irá discriminar nenhum cidadão no território com base em religião, raça, casta, sexo, local de nascimento ou qualquer um do exposto.

Com isso, pretendo demonstrar que, em face da similitude de direitos e princípios jurídicos — como busca no equilíbrio de interesses da sociedade — ao redor do mundo, repito, que se diferenciam por minúcias culturais, o arcabouço jurídico do progresso constitucional e normativo e o alcance efetivo da função social do direito tem suas raízes no estudo da ciência comparatista. A busca da efetiva prestação jurisdicional sacramentada pelos princípios sociais que a demandam deságua em possível hermenêutica constitucional construída fora do Poder Judiciário, idéia consagrada pelo vetusto movimento critical legal studies, obtendo fontes de direito que transcendem a mera reprodução dos trabalhos e obras jurídicas, idênticos em seus conteúdos, que se transmutam em mera aplicação robótica de textos escritos, como salientei anteriormente.

Por fim, assevero que as raízes da epistemologia jurídica devem ser engendradas pelo monitoramento do mundo como um todo, projetando as evoluções das sociedades dentro da realidade brasileira para, com vistas à tutela aperfeiçoada e a função social do direito, alcançar-se a Justiça em sua plenitude e um sistema jurídico eficiente, livre de desembaraços burocráticos e tecnocráticos.

Na literatura de Fiódor Dostoievski, na obra objeto do trabalho, ‘O Crocodilo’, vemos todas as personagens discutirem demasiadamente sobre a possível salvação do protagonista, entalado no estômago de um crocodilo, quando, a bem da verdade, deveriam tratar de agir rapidamente para resgatá-lo e devolvê-lo à vida em segurança, comprometida pelos riscos ao qual foi submetido. Daí, a alusão à burocracia como entrave na eficiência estatal. Além da evidente crítica ao modelo capitalista que se instaurava na Rússia czarista à época da redação da obra, a crítica à burocracia é caracterizada como intolerância ao sistema que gera custos e oneram o erário sem a devida eficiência, representada pela ausência de estômago do animal; a ausência de movimentos do personagem dentro do crocodilo talvez represente em nosso trabalho a falta de estímulo em buscar o Judiciário para solução de liças e a dor supérflua nada mais seria que a movimentação da máquina jurídico-estatal.

Dizia: “Mas, considerando que, mesmo para um crocodilo, é difícil digerir uma pessoa como eu, ele deve sentir, nessa ocasião, certo peso no estômago — estômago que ele, diga-se de passagem, não tem —, e eis a razão por que, preocupado em não causar dor supérflua ao monstro, eu raramente me viro”3.

Concluo este trabalho evocando o sobredito excerto para questionar e criticar — com o perdão da severidade explícita — a morosidade do Poder Judiciário que enfrentamos diariamente ao operar o Direito e ao estudar formas ou modelos que sejam suficientes para contornar os percalços jurídicos, aos quais somos submetidos em detrimento de falhas ou lacunas normativas e, quiçá, textuais; sendo a função social e eficiência no provimento jurisdicional primazia nesses estudos.


Referências Bibliográficas

CARVALHO, Francisco José. Perspectivas Contemporâneas do Direito. São Paulo, Phoenix, 2008.

DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1996.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2006.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Constitucional e globalização. Jus Navigandi, Teresina, ano 9n. 52514 dez. 2004 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6041>. Acesso em: 6 abril de 2012.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Notas introdutórias ao Direito Comparado. Disponível em:

http://www.arnaldogodoy.adv.br/artigos/direitoComparado.htm

REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 3ª edição revisada e aumentada, São Paulo, Ed. Saraiva, 2010.

SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. São Paulo, Ed. RT, 2001.

SERÓUSSI, Roland. Introduction au Droit Comparé. Paris: Dunod, 2003.


Notas

1 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1707200808.htm

2 WE, THE PEOPLE OF INDIA, having solemnly resolved to constitute India into a SOVEREIGN SOCIALIST SECULAR DEMOCRATIC REPUBLIC(…)

3 DOSTOIESVKI, Fiódor. O Crocodilo. São Paulo, Editora 34, p. 44.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Daniel. A função social do direito à luz do direito comparado e o crocodilo de Dostoievski. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3965, 10 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28146. Acesso em: 26 abr. 2024.