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Tráfico de órgãos.

Lucro x Impunidade

Tráfico de órgãos. Lucro x Impunidade

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O presente trabalho tratará especificamente e detalhadamente deste tipo de crime, que vem cada vez mais aterrorizando as pessoas e, pouco a pouco, vem sendo descoberto e repelido na sociedade em geral.

INTRODUÇÃO

    O transplante de órgãos consiste numa tecnologia desenvolvida pela Medicina na qual torna-se possível o salvamento de vidas de pessoas que tiveram a perda ou a falência total ou parcial de seus membros.
    De acordo com SOUZA (2010), o termo “transplante” correspondente à retirada de órgãos e partes do corpo humano para aproveitamento, com finalidade terapêutica e tratamento, em seres da mesma espécie. Portanto, tal técnica cirúrgica consiste na introdução de órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou falecido, no corpo do paciente.
    Existem alguns princípios que permeiam o transplante de órgãos em sintonia com as questões éticas e às políticas de saúde, todas ligadas ao conceito da dignidade humana. Dentre eles está o Princípio da Gratuidade, que profere que o órgão ou tecido apenas poderá ser doado e nunca vendido, vez que não são objetos manipuláveis, e sim dotados de individualidade própria.
    No entanto, fora dos olhos da legalidade não é isso que ocorre: os órgãos policiais têm cada vez mais se deparado com a venda destes órgãos, o que caracteriza o crime denominado de “tráfico de órgãos”.
    A medicina do transplante seria incrivelmente maravilhosa, a ser não ser por este problema. Mas o que ocorre é que a demanda é maior do que a oferta e isso, infelizmente, deu origem a um novo crime do século XXI, que tem fornecido órgãos e tecidos para pessoas com dinheiro e dispostas a cometer ilegalidades por uma nova vida.
    O presente trabalho tratará especificamente e detalhadamente deste tipo de crime, que vem cada vez mais aterrorizando as pessoas e, pouco a pouco, vem sendo descoberto e repelido na sociedade em geral.

TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS: CONCEITOS.

De acordo com SANTOS (1998), o transplante é uma técnica cirúrgica denominada de cirurgia substitutiva, vez que órgãos e tecidos são introduzidos no corpo do paciente com a finalidade de substituir outros da mesma entidade, mas que tenham perdido total ou sensivelmente a sua função. 
No mesmo sentido, define a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos - ABTO o transplante como sendo um “procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão ou tecido de uma pessoa doente - receptor, por outro órgão normal de um doador, morto ou vivo”.
    O transplante de órgãos é atualmente regulado pela Lei nº 9.434/1997, também conhecida como a “Lei dos Transplantes”, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.
    A mesma lei citada acima prevê ainda sanções penais e administrativas referentes à remoção de órgãos e tecidos de maneira contrária à por ela estipulada.
    São órgãos e tecidos passíveis de transplantes: o coração, rim, fígado, pulmão, pâncreas, intestino, córnea, medula óssea, pele, valva cardíaca, ossos e esclera ocular. É interessante observar que um único doador é capaz de salvar ou no mínimo melhorar a qualidade de vida de, pelo menos, 25 (vinte e cinco) pessoas caso todos os seus órgãos sejam doados.

QUEM PODE SER DOADOR DE ÓRGÃOS?

    Podem ser doadoras de órgãos as pessoas que não possuam em seu histórico doenças contagiosas ou que prejudiquem o funcionamento do órgão doado. Não há limite de idade para a doação: os doares podem ser tanto crianças quanto pessoas idosas, desde que observadas as disposições legais.
    Existe ainda uma inovação trazida pelo Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes: portadores de doenças que antes impediam a doação agora podem doar órgãos para pessoas que sofrem da mesma enfermidade.
    No entanto, existe uma ressalva para doares vivos: devem ser pessoas juridicamente capazes, nos termos da lei, que possam doar órgãos ou tecidos sem comprometimento de sua saúde e aptidões vitais. 
Esses doadores devem ter condições adequadas de saúde e devem ser avaliados por médicos para a realização de exames que afastem doenças e atestem a compatibilidade do órgão doado com o receptor. Os exames também são feitos com o intuito de detectar problemas que possam afetar a saúde do doador durante ou após a doação.
De acordo com a lei, podem ser doadores parentes até o quarto grau e cônjuges e não parentes só podem doar com autorização judicial. Este foi o meio encontrado para se evitar o comércio de órgãos e tecidos.

TRÁFICO DE ÓRGÃOS

O tráfico de órgãos é um crime que envolve a coleta e a venda de órgãos de doadores involuntários ou voluntários, sendo que, geralmente, estes últimos só vendem os seus órgãos por estarem em circunstâncias extremas e desesperadoras.
Pode-se dizer que o tráfico de órgãos segue a “Lei da Oferta e da Procura”: como a demanda de pessoas que necessitam de doações de órgãos é muito alta e a oferta muito baixa, algumas delas, normalmente as que possuem alto poder aquisitivo, se lançam nessa rede de crimes para adquirirem um novo membro e garantirem saúde e boa qualidade de vida.
    De acordo com dados levantados pela Revista Veja (2009), mais de 70.000 brasileiros esperam por um órgão. As listas são organizadas por ordem cronológica, mas existem alguns casos nos quais a doença se torna tão grave que o paciente ganha prioridade nas doações. 
    Não bastasse a grande lista de espera, ainda tem-se outro fator impeditivo: a compatibilidade do doador com o receptor. Deste modo, no caso de o primeiro da fila ser incompatível com o doador, a prioridade passa para o segundo, e, assim, sucessivamente.
    Diante das dificuldades para se conseguir uma doação nos moldes legais, pessoas apelam para a ilegalidade. Como o transplante de órgãos é a esperança de vida para muita gente, criminosos viram nisso um grande negócio lucrativo. De acordo com a Polícia Federal, o tráfico de órgãos é o terceiro crime organizado mais lucrativo do mundo.
No entanto, o tráfico de órgãos não é só realizado por meio do comércio de órgãos de pessoas já mortas, mas também pela condenação à morte de pessoas vivas para que delas se extraiam o tão desejado membro objeto de transplante.
De acordo com HAYLEY (2013), a cena do crime envolve os seguintes elementos: um doador, um médico especializado, uma sala de operações e, na maioria das vezes, também um receptor próximo, visto que os órgãos não sobrevivem se ficarem muito tempo fora do corpo.
    Este crime também é permeado por poderes políticos e econômicos de tal forma em que os criminosos se sentem livres para agir diante de tanta impunidade. A extração e venda de um órgão fora dos parâmetros da lei já é algo ilegal, mas os bandidos vão além disso: raptam crianças e adultos para deles tirarem o membro do qual se necessita.
    Segundo AUGUSTO (2013), no Brasil são encontrados, diariamente, cerca de dois corpos de crianças com órgãos removidos. Também existem casos nos quais as crianças são raptadas e depois reaparecem, mas sem uma parte do corpo, com cicatrizes sugestivas de que houve alguma intervenção cirúrgica, ou então cegas, devido à retirada das córneas.
    O grande problema do tráfico de órgãos é que ainda não há uma tipificação para o crime no Código Penal: a retirada de órgãos é enquadrada apenas como lesão corporal.

Lesão corporal de natureza grave

§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2° Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incurável;
III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

    Diante disso, viu-se a necessidade de mudanças no Código Penal Brasileiro e, no ano de 2012, foi aprovada uma proposta para criar o crime de tráfico de órgãos. No entanto, tal tipificação ainda não foi criada.
    Por enquanto, outra lei pune a comercialização de órgãos, qual seja, a de nº 9.434/1997 – Lei do Transplante:

Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa.
§ 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe:
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa.
    Apesar da existência do dispositivo legal acima, poucos são os casos em que as autoridades públicas conseguem descobrir e punir o tráfico de órgãos. Isto porque as entidades criminosas são muito bem organizadas e geralmente atuam em lugares onde a Lei ou é pouco rígida ou nem é capaz de chegar, como é o caso de alguns países subdesenvolvidos. 
Assim, os pacientes compradores de órgãos (ou os “doadores”), por intermédio dos traficantes, vão para estes lugares (muitas vezes miseráveis), e lá realizam a compra (ou a “doação”), que pode chegar a ser de R$ 200.000, 00 (no caso do rim).
    De acordo com a Polícia Federal, este é o fator que impede a punição pelo tráfico: as pessoas saem do Brasil para comprar/vender órgãos e a cirurgia é feita por lá mesmo, de modo a desviar os olhos de nossas autoridades.
    E assim o crime vai ganhando as suas proporções, crescendo a cada dia na certeza de que continuará impune. E o Brasil vai perdendo o seu povo, ora para essa corja de bandidos, ora para as filas de espera da lista de transplantes.

CONCLUSÃO

    Por mais que a perda de um ente querido seja uma situação difícil de lidar, às vezes também pode ser o momento de dar um pouco de alegria e esperança para as pessoas que estão há meses em uma fila de espera para o transplante de órgãos.
    O fantástico desenvolvimento da medicina proporcionou a esperança de vida para muitas pessoas que sofrem com insuficiências orgânicas e que, devido a isso, não desfrutam de uma boa qualidade de vida.
    A proposta do transplante é maravilhosa, não fosse o reduzido número de doações frente ao elevado número de pacientes que precisam deste tipo de cirurgia. A espera por um membro pode ser muito longa e, em algumas vezes, pode acabar somente com a morte daquele paciente.
    Esta grande demanda em face da pequena oferta de órgãos deu origem a um novo crime do século XXI, o Tráfico de Órgãos. Criminosos viram no sofrimento das pessoas uma excelente oportunidade de tirarem proveito financeiro e deram início à captação de órgãos por meios ilícitos. 
Não só os mortos, mas também os vivos em condições de miserabilidade passaram a ser vítimas destas entidades criminosas sustentadas por pessoas ricas que dependem de um órgão para a sua sobrevivência.
    A falta de uma maior atuação pelo Poder Público e também as estratégias utilizadas pelos traficantes de órgãos impulsionaram essa prática que vem crescendo a cada dia mais. Nem mesmo os dispositivos legais intimidaram os bandidos.
    Uma possível saída para este tipo de mal inserido na sociedade seria o aumento das doações por meios lícitos, o que acarretaria na diminuição da lista de espera, e que, consequentemente, desmotivaria o pagamento por um órgão, visto que a doação se realizaria de maneira rápida e eficaz.
    A atuação do Poder Público nestes casos se faz totalmente necessária, mas, enquanto isso não ocorre, a conscientização da sociedade no sentido de incentivar as pessoas a serem doadoras de órgãos seria o melhor caminho para se combater e desmotivar este crime tão horrendo.

REFERÊNCIAS

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COIMBRA, Celso Galli. Tráfico de órgãos é terceiro crime organizado mais lucrativo no mundo, segundo Polícia Federal. 12 fev. 2009. Disponível em: <http://biodireitomedicina.wordpress.com/2009/02/12/trafico-de-orgaos-e-terceiro-crime-mais-lucrativo-segundo-policia-federal/>. Acesso em: 01 mai. 2013.

Doação de Órgãos. ADOTE – Associação Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos. Disponível em: <http://www.adote.org.br/oque_doacao.htm>. Acesso em: 28 abr. 2013.

Entenda a doação de órgãos. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. 06 ago. 2012. Disponível em: <http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/entendadoacao.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2013.

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SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio de um Pêndulo - Bioética e a Lei: Implicações Médico-Legais. São Paulo: Ícone, 1998a. Cap. 1, 2 e3. pp.23-153. 


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em: 28 de abr. de 2013.


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