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Lei “ainda constitucional” e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Lei “ainda constitucional” e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

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Normas constitucionais com trânsito para a inconstitucionalidade.

 LEI “AINDA CONSTITUCIONAL” E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Sumário: 1.Introdução. 2. Precedentes Oriundos do Supremo Tribunal Federal. 3. Conclusão. 4. Referências Bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

         A Constituição da República Federativa do Brasil é o fundamento de validade de todo o nosso ordenamento jurídico. O que vigora em nosso sistema é o princípio da Supremacia da Constituição, em que todas as demais normas devem obediência a ela, devendo ser extirpadas aquelas que a contrariarem.

         Essa supremacia da Constituição decorre, principalmente, da concepção jurídica do festejado jurista Hans Kelsen, criador da teoria pura do direito e precursor do positivismo jurídico. De acordo com sua interpretação, a Constituição é lei juridicamente superior, norma pura, puro dever ser, desprendida de qualquer aspiração sociológica, valorativa ou política.

Ele atribuiu à Constituição dois sentidos: lógico-jurídico e jurídico-positivo. No primeiro sentido, Kelsen dizia que a Constituição tem seu fundamento de validade na norma hipotética fundamental que sustenta e dá validade a todo o ordenamento jurídico; no segundo sentido, a Constituição seria o fundamento de validade de todo ordenamento infraconstitucional, ou seja, uma norma de hierarquia inferior buscando seu suporte de validade na norma imediatamente superior até chegar à Constituição.

De acordo com Kelsen: “O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma, [...], designada como norma superior”. (KELSEN, 1974, p. 267).

Esse princípio, contudo, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, comporta a exceção conhecida como “lei ainda constitucional”, que trataremos a seguir.

2. PRECEDENTES ORIUNDOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O direito, de acordo com Miguel Reale, é fato, valor e norma, ponderando esses elementos, conforme o interesse social e a segurança jurídica. Com base nessa concepção, o e. Supremo Tribunal Federal, ponderando os valores envolvidos e a especificidade de cada caso,  permite que norma que venha a ser declarada inconstitucional produza  efeitos durante determinado tempo e sob certas condições.

Assim, surge a teoria da “lei ainda constitucional”, também conhecida como “inconstitucionalidade progressiva” ou “declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade”, uma inovação no sistema de controle de constitucionalidade.

Essa técnica visa considerar constitucional norma inconstitucional, que, em determinados casos fáticos, quando pendentes do implemento de certas condições para se concretizarem, enquanto estas não forem implementadas, mantem-se  a sua constitucionalidade até ser declarada efetivamente inconstitucional. Nas palavras do mestre Pedro Lenza é “norma em trânsito para a inconstitucionalidade”. (LENZA, 2007, p. 205).

O Supremo Tribunal Federal adotou essa técnica por ocasião do julgamento do HC 70.514, j. 23/03/1994, em que se discutiu a questão da constitucionalidade do prazo em dobro, no processo penal, concedido às Defensorias Públicas. Vejamos o julgamento:

Ementa: Direito Constitucional e Processual Penal. Defensores Públicos: prazo em dobro para interposição de recursos (§ 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989). Constitucionalidade. "Habeas Corpus". Nulidades. Intimação pessoal dos Defensores Públicos e prazo em dobro para interposição de recursos. 1. Não é de ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública... (HC 70514, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/1994).

 

Nesse julgado, a Suprema Corte declarou que, enquanto não forem implementadas instalações adequadas para que efetivamente as Defensorias Públicas se organizem, elas gozam de prazo em dobro no processo penal, não sendo essa regra inconstitucional, mesmo que o Ministério Público não se beneficie do mesmo prazo. Não ferindo, portanto, os princípios da isonomia e tampouco do devido processo legal. Porém, o uso dessa prerrogativa só prevalecerá enquanto a Defensoria Pública efetivamente não se instalar e isso acontecendo essa norma tornar-se-à inconstitucional.

O Supremo Tribunal Federal aplicou essa técnica em outros precedentes[1], reconhecendo que existe um estágio intermediário “entre os estados de plena constitucionalidade ou de absoluta inconstitucionalidade” (MENDES, 1990, p. 21). Vejamos o Recurso Extraordinário 341.717, cujo relator foi o Exmo. Senhor Ministro Celso de Mello:

EMENTA: MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL EX DELICTO. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART. 68. NORMA AINDA CONSTITUCIONAL. ESTÁGIO INTERMEDIÁRIO, DE CARÁTER TRANSITÓRIO, ENTRE A SITUAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE E O ESTADO DE INCONSTITUCIONALIDADE. A QUESTÃO DAS SITUAÇÕES CONSTITUCIONAIS IMPERFEITAS. SUBSISTÊNCIA, NO ESTADO DE SÃO PAULO, DO ART. 68 DO CPP, ATÉ QUE SEJA INSTITUÍDA E REGULARMENTE ORGANIZADA A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL. PRECEDENTES.

 

No presente caso, apesar do Ministério Público ter alegado a inconstitucionalidade do artigo 68 do CPP, que dispõe que a execução da sentença condenatória ou a ação civil pública será promovida pelo parquet confrontando com o que a Constituição Federal de 1988 estabelece em seus artigos 129,IX e 134, em que atribui essa função à Defensoria Pública,  o STF entendeu que o artigo 68 do CPP é uma lei ainda constitucional, pelo fato das Defensorias Públicas não estarem devidamente instaladas, não tendo condições de assumirem tal responsabilidade.

Nesse sentido, Pedro Lenza conclui: “Portanto, vem o STF entendendo, de maneira acertada, que o art. 68 do CPP é uma lei ainda constitucional e que está em trânsito, progressivamente, para a inconstitucionalidade, à medida que as Defensorias Públicas forem sendo, efetiva e eficazmente, instaladas”. (LENZA, 2007, p. 206).

Existem posicionamentos contrários a essa técnica, no sentido de que a adoção dela estaria afrontando a Lei Maior. Aceitar a aplicação, por exemplo, de uma norma infraconstitucional, como o artigo 68 do CPP, em flagrante oposição a Constituição Federal, importaria em evidente preterição de sua supremacia.

Outros, ainda, afirmam que uma norma não pode ser constitucional em um momento e em outro inconstitucional, por causar insegurança jurídica e fragilizar o regular controle de constitucionalidade.

3. CONCLUSÃO

Da análise dos casos que motivaram a adoção da comentada técnica da “lei ainda constitucional” pelo Supremo Tribunal Federal, é possível concluir que ela se apresenta como  um avanço ao controle de constitucionalidade. Através da flexibilidade por ela introduzida, permite-se que algumas normas produzam efeitos mesmo sendo formalmente inconstitucionais, a depender da ocorrência de determinadas circunstâncias sociais que, em nome do interesse público, justifiquem a sua adoção.

 Por outro lado, não se pode olvidar da força dos argumentos da corrente a ela contrária, principalmente pelo fato do direito constitucional ter sido erigido pelo mundo como um garantia contra abusos perpetrados por homens públicos, alguns deles bem intencionados segundo o seu ponto de vista. Permitir que a norma constitucional seja preterida em alguns momentos, e com base em critérios subjetivos, de fato, tem forte potencial para causar insegurança jurídica e abalar as bases do direito constitucional.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 nov. 2012.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11. ed.rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora. Método, 2007.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001.

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1990.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2001.

REALE, Miguel, Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003.

UPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2012.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002.


[1]RE 147.776-SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; RE 196.857-SP (AgR/SP), Rel. Min. ELLEN GRACIE; RE 208.798-SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES; RE 213.514-SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES;  RE 229.810-SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA; RE 295.740-SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo272.htm#A Questão da 'lei ainda constitucional' (Transcrições)>. Acesso em: 08 nov/12.


Autor

  • Roberto Carlos Sobral Santos

    Advogado desde 1996, com passagem pelo Departamento Jurídico do Banco do Brasil S.A no cargo de advogado entre 1998 a 2006. Procurador da Fazenda Nacional desde 2006. Pós-Graduado em Direito Constitucional em nível de Especialização.

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