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O matrimônio na terceira idade:

A inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens às pessoas com idade superior a setenta anos face a disposição de seus patrimônios.

O matrimônio na terceira idade: . A inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens às pessoas com idade superior a setenta anos face a disposição de seus patrimônios.

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Serão apresentadas as acepções dos princípios constitucionais, os quais estabelecem, acima de tudo, a igualdade, inviolabilidade, privacidade e ainda o direito de propriedade e dignidade da pessoa humana.

Larysse Meireles Costa[1]


[1] Pós Graduanda em Direito e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá, aluna da disciplina Direito de Família e Sucessões, turma 2013. Graduada em Direito pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro. Advogada no Setor Elétrico Privado de Serviço Público de Transmissão de Energia.

RESUMO

O presente artigo tem por finalidade apresentar a inconstitucionalidade do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil brasileiro de 2002 o qual estabelece o regime da separação obrigatória de bens para os idosos e maiores de setenta anos que quiserem contrair matrimônio com outras pessoas. Serão apresentadas as acepções dos princípios constitucionais, os quais estabelecem, acima de tudo, a igualdade, inviolabilidade, privacidade e ainda o direito de propriedade, que dispõe que o proprietário da coisa/bem pode usar, fruir, gozar e dispor de um bem (três faculdades/atributos/poderes do domínio) e mais o direito de reaver essa coisa do poder de quem injustamente a ocupe. Será abordado a visão atualizada do casamento perante a instituição familiar e como princípio fundamental do direito de família.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição Federal. Inconstitucionalidade. Inviolabilidade. Liberdade. Privacidade. Princípios.

  • INTRODUÇÃO

Desde 1988, após a promulgação da Carta Magna brasileira, o ordenamento jurídico brasileiro passou por diversas inovações no que tange à imposição de princípios, assunção de direitos e obrigações. Todavia, também foram instaurados princípios que norteiam a elaboração de leis infraconstitucionais, ou seja todas e quaisquer legislações que especifiquem as diretrizes e parâmetros dos dispositivos estabelecidos na Constituição Federal. Sendo assim, ao elaborar uma lei, devem ser observados os princípios constitucionais para que a legislação não seja inconstitucional, ou seja, para que a legislação não seguida em desacordo com os ditames constitucionais.

Todavia, qualquer norma que esteja em desarmonia com a Carta Magna e que enfrente os parâmetros determinados por sua normatização, será tida com inconstitucional. Logo, qualquer norma que interfira na inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade de todos os homens, certamente poderá ser considerada como uma norma constitucional.

Sendo assim, o presente artigo apresenta a temática da inconstitucionalidade do artigo 1.641, inciso II do Código Civil Brasileiro, fundamentando-se no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que está legalmente embasado no artigo 1º, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil, vez que o legislador não absteve-se de ultrapassar os limites da privacidade e autonomia da vontade humana, impondo aos maiores de setenta anos, uma proteção patrimonial e sem qualquer fundamentação constitucional, ao contrário, interferindo na liberdade, igualdade, propriedade do homem. A seguir, serão apresentados os argumentos pelos quais tal artigo pode ser considerado inconstitucional.      

  • OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais são também conhecidos como direitos humanos, direitos subjetivos públicos, direitos do homem, direitos individuais, liberdades fundamentais ou liberdades públicas. A própria Constituição da República de 1988 apresenta uma variedade de diversidade terminológica na abordagem dos direitos fundamentais, utilizando expressões como direitos humanos, no artigo 4º, inciso II; direitos e garantias fundamentais no artigo 5º, parágrafo 1º; direitos e liberdades constitucionais, no artigo 5º, inciso LXXI e direitos e garantias individuais no artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV.

Assim, os direitos fundamentais surgiram com a necessidade de proteger o homem do poder estatal, a partir dos ideais advindos do Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, mais particularmente com as concepções das constituições escritas. Acerca do surgimento dos direitos fundamentais, Alexandre de Moraes afirma que “surgiram como produto da fusão de várias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos pensamentos filosóficos-jurídicos, das ideias surgidas com o cristianismo e com o direito natural”.[2]

A Constituição Federal afirma que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação[3].  Destarte, o Código Civil também faz menção à vida privada da pessoa natural ao afirmar que a mesma é inviolável[4].

A Carta Magna, ao garantir a privacidade do indivíduo fez menção a diversos direitos fundamentais, como a inviolabilidade à privada, por exemplo, para que este mesmo indivíduo pudesse exercer suas liberdades de manifestações e pensamentos, uma vez que o Estado Democrático de Direito tem como princípio basilar a dignidade da pessoa humana, essencial para o desenvolvimento da democracia e cidadania.[5]

  • OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
  • As funções dos princípios constitucionais

O professor Vicente Ráo, na década de 50, afirmava que a ignorância dos princípios "quando não induz a erro, leva à criação de rábulas em lugar de juristas". Não basta, porém, ao operador do direito conhecer os princípios; fundamental, outrossim, é saber para que eles servem, ou seja, insta compreender qual a função dos princípios para que se lhe apliquem corretamente.[6]

Sabe-se que os princípios, ao lado das regras, são normas jurídicas[7][8] e exercem um papel diferente das regras, dentro do sistema normativo, vez que as regras podem descrever fatos hipotéticos e possuem a função a regular, direta ou indiretamente, as relações jurídicas que se enquadrem nas molduras típicas por elas descritas.

Os princípios, todavia, são normas generalíssimas, dentro do sistema jurídico[9] que tem a função de fundamentar, orientar, subsidiar e qualificar o entendimento e a realidade jurídica, vez que a própria realidade a que se referem, indica a posição que os agentes jurídicos devem tomar em relação a ela, ou seja, aponta o rumo que deve seguir a regulamentação da realidade, de modo a não contravir aos valores contidos no princípio.

Portanto, os princípios servem como limite de atuação do jurista. Explica-se: no mesmo passo em que funciona como vetor de interpretação, os princípios tem como função limitar a vontade subjetiva do aplicador do direito, vale dizer, os princípios estabelecem balizamentos dentro dos quais o jurista exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto. Assim, é correto dizer que os princípios podem ser vislumbrados em distintas dimensões: fundamentadora, interpretativa, supletiva, integrativa, diretiva e limitativa.[10]

  • O Princípio da Liberdade (face ao regime de bens)

O regime de bens do casamento tem a finalidade de regular a administração do patrimônio do casal, observando, conjuntamente ou por apenas um dos cônjuges, a aquisição ou perda de propriedade, bem como a responsabilidade por dívidas e a disponibilidade dos bens. Alguns doutrinadores apresentam afirmam que o referido instituto, qual seja, o regime de bens, é o estatuto que disciplina os interesses econômicos, ativos e passivos, de um casamento, regulando as consequências em relação aos nubentes e a terceiros, desde a celebração até a dissolução do casamento, em vida ou por morte.

Mostra-se livre no ordenamento jurídico brasileiro, a escolha do Regime de Bens para o casamento, dependendo de cada casal a configuração e consequências do regime a ser escolhido. Aduz o artigo 1.639 do Código Civil afirma que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. Ainda se pode observar nos termos do artigo 1.640, parágrafo único, do mesmo dispositivo dispõe que os nubentes poderão, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que  permitidos em lei, regulados pelo Código Civil.

Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas. Tais previsões ratificam a liberdade de escolha do regime de bens para o casamento. Assim o princípio da liberdade pode ser encontrado em todas as nuances do casamento, assegurando o direito de constituir uma união estável, bem como extingui-la, podendo ocorrer o mesmo no casamento. Outra evidência do princípio da liberdade na legislação brasileira é a possibilidade de alteração do regime de bens na vigência do casamento, prevista do artigo 1.639,§ 2º do Código Civil.

Além disso, ressalte-se, trata-se de direito disponível, estando ainda mais compreensível o caráter essencialmente patrimonial do regime de bens, daí a possibilidade da livre disposição pelos nubentes. Resta evidenciada que a liberdade rege a situação dos bens do casal, sendo-lhe permitido optar pelo regime que melhor atender aos interesses de ambos.

  • A INCONSTITUCIONALIDADE IMPOSTA AO QUE DESEJAM CONTRAIR CASAMENTO APÓS OS SETENTA ANOS.

O Código Civil de 1.916, em seu artigo 258, II, previa a separação obrigatória de bens em função da idade dos contraentes, porém, fazia distinção da idade pelo sexo, impondo o regime de bens para o homem com mais de 60 e para a mulher com mais de 50 anos. Compreendeu o legislador que, nessa fase da vida, na qual se presume a estabilidade de patrimônio de um ou de ambos os nubentes, e quando a juventude já não se faz presente, o conteúdo patrimonial deve ser terminantemente afastado da relação do matrimônio.[11]

Fundando ainda no Código Civil vigente à época, Silvo Rodrigues (1996, p. 165) se posiciona contra o dispositivo afirmando que talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou uma quinquagenária, ricos, se casem pelo regime da comunhão, se assim lhes aprouver. O Código Civil de 2002 manteve a restrição, porém, equiparou o homem à mulher, no que tange à idade, convencionando 60 anos em relação a ambos os sexos, para fins de imposição do regime patrimonial da separação obrigatória de bens.[12]

O Código Civil de 2002 manteve a restrição, porém, equiparou o homem à mulher, no que tange à idade, convencionando 60 anos em relação a ambos os sexos, para fins de imposição do regime patrimonial da separação obrigatória de bens. Como citado anteriormente, a escolha do regime de bens disciplina a situação patrimonial do casal e tem grande relevância na hipótese de dissolução do matrimônio. Contudo, existem exceções à autonomia dessa escolha, nas quais a lei impõe o regime da separação de bens e, das quais, destaca-se, como tema do presente trabalho, a hipótese do artigo 1.641, II, do Código Civil.

Trata o disposto no inciso II do artigo 1.641 do Código Civil, recém-alterado pela Lei nº 12.344 de 9 de dezembro de 2010, da limitação à vontade da pessoa maior de 70 anos[13],  dispositivo que impõe à pessoa maior de 70 anos o regime da separação de bens. Diante de tal norma, passa-se a analisar o entendimento atual sobre o dispositivo, sendo certo que alguns doutrinadores reputam-na inconstitucional, enquanto uma minoria prefere entender válida a proteção ao patrimônio do idoso.[14]

No primeiro sentido, posicionam-se Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2010, p. 244, 245)

“[...] nítida violação aos princípios constitucionais. Efetivamente, trata-se de dispositivo legal inconstitucional, às escâncaras, ferindo frontalmente o fundamental princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) por reduzir a sua autonomia como pessoa e constrangê-lo pessoal e socialmente, impondo uma restrição que a norma constitucional não previu.”

Cumpre ressaltar também que o fato da idade para a imposição do regime da separação obrigatória ter sido dilatada de 60 para 70 anos, demonstra uma evolução e certa flexibilidade no entendimento do legislador. Vale aduzir que a citada majoração na idade através da qual se impôs o regime da separação de bens é recente, não havendo, portanto, citação doutrinária acerca da supracitada modificação. É importante destacar que a majoração da idade para imposição do regime de bens, não torna a norma “mais constitucional”. Os diversos posicionamentos doutrinários acerca do tema não criticam a questão quantitativa, se 60 ou 70 anos, e sim, a determinação de uma limitação da vontade de forma injustificada e desigual imposta ao cidadão, tendo em vista que o Código Civil prevê um início para a capacidade civil, em razão da idade.

 Não estabelecendo, por certo, uma idade para cessar tal capacidade.  Nota-se que “no entendimento do IBDFAM, a lei diminuiu as restrições, mas continua a desconsiderar a autonomia da vontade, a liberdade e a autodeterminação das pessoas.” (IBDFAM, 2011. p 117, v. 10) Diante do exposto, a imposição do regime da separação de bens às pessoas maiores de 70 anos é tida como inconstitucional pela maioria dos autores e pelo IBDFAM. Compartilha do mesmo entendimento Maria Berenice Dias (2010, p. 65) ao afirmar em sua obra que “é inconstitucional, por afrontar o princípio da liberdade, a imposição coacta do regime de separação de bens aos maiores de 60 anos [...]”.E ainda (DIAS: 2010, p. 247).

  •  A PERSPECTIVA ATUALIZADA DO CASAMENTO

O casamento agrega valores e tradições que vêm variando com o passar do tempo. Maria Helena Diniz (2010, p. 37) define casamento como sendo o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família.

São muitos os conceitos de casamento apresentados pela doutrina moderna, Carlos Roberto Gonçalves (2010. P. 37) colaciona sua obra, no contexto histórico, um conceito do século III, qual seja: “Nuptiae sunt conjunctio maris et feminae, consortium omnis vitae, divini et humani juris communicatio, ou seja, casamento é a conjunção do homem e da mulher, que se unem para toda a vida, a comunhão do direito divino e do direito humano.” Destaca ainda o aludido autor que “esta noção um tanto grandiosa e sacramental desfigurou-se com o tempo e com a evolução dos costumes.” Apesar das inúmeras definições acerca do casamento, é pacífico o entendimento sobre sua origem religiosa. [15]

Com o passar do tempo, faz-se necessária a alteração dos diversos conceitos, pois a evolução da humanidade impõe novas formas de sociedade conjugal, nas famílias, provocando a queda de alguns conceitos. Antes da existência do instituto do divórcio era cabível no conceito de casamento uma referência sobre indissolubilidade, hoje não mais aplicável.

Não é possível afastar o vínculo entre o casamento e o Direito de Família, sendo aquele a base deste. Silvio de Salvo Venosa (2001, p. 40) destaca essa ligação, vez que o casamento é o centro do direito de família. Dele irradiam suas normas fundamentais. Sua importância, como negócio jurídico formal, vai desde as formalidades que antecedem sua celebração, passando pelo ato material de conclusão até os efeitos do negócio que deságuam das relações entre os cônjuges, os deveres recíprocos, a criação e assistência material e espiritual recíproca e da prole etc.

Há três diferentes correntes sobre a natureza jurídica do casamento (FARIAS; ROSENVALD, 2010, 115,116). Vale ressaltar que o casamento possui uma característica contratual, que é indiscutível na doutrina, que condiciona sua validade e eficácia à vontade das partes, aplicando-se ao casamento as regras comuns aos contratos. Existe também, acerca da natureza jurídica do casamento, o entendimento institucionalista, que sustenta o casamento como uma grande instituição social, a ela aderindo os que se casam. Há uma terceira corrente, que se põe como a fusão das anteriores, considerando o casamento um contrato especial do direito de família, pelo qual os nubentes aderem a uma instituição pré-organizada, alcançando o estado matrimonial. [16]

Observa-se que atualmente, a função econômica, política e religiosa do casamento, ganharam valor secundário, privilegiando-se a realização pessoal, através do convívio, da afetividade e da solidariedade.

O caráter de família no casamento

Através do amparo constitucional e da atual visão da família, surge à equidade entre seus membros. A cada dia mais os vínculos afetivos vêm ganhando a merecida importância no âmbito judicial. O poder da família se sobrepõe, não existindo mais a figura de um líder, havendo respeito mútuo entre os familiares. Neste sentido se pode encontrar no caráter instrumental da família, a busca do bem-estar da pessoa, visando à cooperação e a solidariedade de cada um dos seus integrantes, que se desenvolvem e formam um alicerce para superar os eventuais problemas da vida.

Impende destacar que a família tem sua função essencial à sociedade, sofrendo alterações e adquirindo novos valores com o passar do tempo. Assim os aprendizados, as tradições, os costumes e experiências humanas vão passando de geração em geração. Nesse sentido, vê-se a importância da família como instituição social, sendo relevante nas relações entre pessoas e nas relações sociais, independente de sexo e com o objetivo de contribuir para a realização de cada um que a compõe.

O casamento como meio de constituição familiar, é o solo apropriado para florescer o afeto e a solidariedade, pois, a efetivação desses princípios é componente fundamental para o desenvolvimento de cada pessoa que forma uma determinada família. Houve tempo em que a família era uma instituição protegida pelo Estado, com fim em si mesma, e com objetivo de se resguardar o núcleo familiar enquanto grupo, sem se preocupar com as pessoas individualmente.

Por outro giro, a família hoje possui um caráter instrumental, que visa ao atendimento a cada um de seus membros, conforme salienta Boechat Cabral (2011a), vez que o caráter instrumental da família: meio pelo qual as pessoas se desenvolvem, formam sua personalidade e se revestem de forças para enfrentarem as diversas e adversas situações de vida. Na dinâmica da família é que se manifestam os sentimentos mais puros, mais valiosos e, por vezes, os odiosos, embora não sejam esses últimos os ansiados e buscados pelos ideais a pautar o Direito de Família contemporâneo.

Seguindo essa linha de intelecção, a família deste novo tempo é instrumento de promoção da personalidade humana, é meio através do qual as pessoas de uma família desenvolvem suas potencialidades, em busca da realização, da autoestima e da capacidade lidar com novas situações de vida.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo objetivou analisar a constitucionalidade da norma prevista no Livro de Família do Código Civil que institui a incapacidade para a livre escolha do regime de bens, impondo o da separação às pessoas com idade superior a 70 anos. A partir da análise da livre estipulação do regime de bens do casamento, que permite às pessoas elegerem o regime de bens que entenderem melhor e mais adequado para reger a situação patrimonial do próprio casamento, observa-se que na faixa etária compreendida entre a idade núbil até 69 anos, este vigora sem nenhum óbice, sendo certo que a partir de 70 anos, tal liberdade é limitada pelo CC.  

Apresentou-se o princípio da dignidade da pessoa humana como alicerce da vigente CF, sendo este um direito fundamental que deve ser protegido em suas diversas emanações, entre as quais se encontram a liberdade, a vontade e sua indispensável manifestação no estado democrático de direito, efetivando os ideais de cidadania insculpidos na Lei Maior. Discutiu-se ainda a limitação imposta pelo CC, violando as normas referentes à capacidade civil da pessoa com idade superior a 70 anos, destacando-se que a parte geral do mesmo CC, não prevê forma de cessar a capacidade da pessoa em razão da idade, visto que, da análise dos dispositivos referentes ao assunto na Teoria Geral, a outra conclusão não se pode chegar que diversas dessa são as hipóteses de perda da capacidade.

Analisando diretamente o tema, foram opostos entendimentos doutrinários diversos que entendem pela inconstitucionalidade da norma prevista no art. 1.641, II, do CC, defendendo o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, em sua essência. Assim, para aqueles que valorizam a aplicação da principiologia constitucional, o posicionamento é pela inconstitucionalidade da norma que institui o regime legal da separação de bens, vislumbrando-se um paternalismo exacerbado da norma contida no Livro de Família e, ainda, tendo-se em vista ferir a autodeterminação da pessoa, que objetiva privilegiar dispositivos legais que visam ao interesse pessoal, quais sejam o afeto e a vontade às normas que resguardam questões meramente patrimoniais.

 Por derradeiro, cabe salientar que o vigente CC, na tentativa de abandonar os ideais patrimonialistas que permearam o revogado diploma de 1916, mostrou-se deficiente quanto à evolução do direito, caminhando na contramão da principiologia constitucional, notadamente do princípio da autonomia da vontade e da autodeterminação da pessoa, ao instituir o regime da separação obrigatória de bens aos nubentes com idade superior a 60 anos, majorando posteriormente para 70, o que se revela, frise-se, inconstitucional, por privilegiar a tutela de direito patrimonial, em sua natureza essencialmente disponível em detrimento da tutela da dignidade da pessoa humana, na qual se inserem a autonomia da vontade, o direito à autodeterminação e a afetividade, além de se constituir uma discriminação injustificável, qual seja, a incapacidade do idoso simplesmente em razão da idade, marginalizando-o em relação a um patrimônio que ele mesmo foi capaz para construir, gerir e preservar até essa idade.


[1] Pós Graduada em Direito e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá (2014). Graduada em Direito pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro (2012). Advogada no Setor Elétrico Privado de Serviço Público de Transmissão de Energia.

[2] IURCONVITE, Adriano dos Santos. Os direitos fundamentais: suas dimensões e sua incidência na Constituição. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=artigos_leitura_pdf&artigo_id=4528%3E.%20Acesso%20>.  Acesso em: 19 set 2014.

[3] Ver artigo 5º, inciso X, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

[4] Ver artigo 21, Código Civil Brasileiro de 2002.

[5] Ver artigo 1º, II,III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

[6] LIMA, George Marmelstein. As funções dos princípios constitucionais. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/2624/as-funcoes-dos-principios-constitucionais>. Acesso Em 19 set 2014

[7] A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípios e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas as quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema" (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2ª ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 141). Deve ser ressaltado, outrossim, que alguns autores (Perez Luño, Pietro Sanchis e García de Enterria) incluem os valores, ao lado dos princípio e das regras, como espécies de norma. Porém, por transcender aos estreitos limites do objeto desse estudo, deixaremos de tratar dos valores como espécie de normas, preferindo incluí-los como parte componente do próprio princípio, tendo em vista a enorme carga valorativa que nele está inserida.

[8] LIMA, George Marmelstein. As funções dos princípios constitucionais. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/2624/as-funcoes-dos-principios-constitucionais>. Acesso Em 19 set 2014.

[9] Idem. Ibidem

[10] LIMA, George Marmelstein. As funções dos princípios constitucionais. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/2624/as-funcoes-dos-principios-constitucionais>. Acesso Em 19 set 2014

[11] FIGUEIREDO e CABRAL, Ramon Gama e Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. A (In) Constitucionalidade da Imposição do Regime da Separação de Bens com Idade Superior a Setenta Anos. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/15_02_2012%20regime%20de%20bens%20inconstitucionalidade.pdf. Acesso em: 19 Set 2014.

[12] FIGUEIREDO e CABRAL, Ramon Gama e Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. A (In) Constitucionalidade da Imposição do Regime da Separação de Bens com Idade Superior a Setenta Anos. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/15_02_2012%20regime%20de%20bens%20inconstitucionalidade.pdf. Acesso em: 19 Set 2014

[13] Código Civil. art. “1.641, caput: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos”

[14] Op. Cit.

[15] FIGUEIREDO e CABRAL, Ramon Gama e Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat. A (In) Constitucionalidade da Imposição do Regime da Separação de Bens com Idade Superior a Setenta Anos. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/15_02_2012%20regime%20de%20bens%20inconstitucionalidade.pdf. Acesso em: 19 Set 2014

[16] Idem. Ibidem.


Autor

  • Larysse Meireles C. Furtado

    Advogada no Setor Elétrico de Transmissão de Energia. Pós Graduada em Direito Civil e Processo Civil pena UNESA em 2014. Graduada em Direito pela Universidade Veiga de Almeida em 2012. Pesquisadora em linhas voltadas as ciências sociais aplicadas ao direito. Coordenadora Acadêmica e Coautora do Livro da Turma de Pós Graduação em Direito e Processo Civil da UNESA: Direitos da Personalidade e Dignidade da Pessoa Humana, publicado pela Editora Editar, juiz de Fora/MG, 2013 - ISBN:978-85-7851-055-8.

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