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O problema dos limites da prova e sua valoração no moderno estudo do Processo Civil

O problema dos limites da prova e sua valoração no moderno estudo do Processo Civil

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Sumário: 1.Colocação do problema. 2. O conceito de prova 3. O mito da verdade no processo. O mito da certeza. A probabilidade. 4. Estados Intelectuais do julgador. Destinatários da prova. Motivação. Ônus da Prova 5. Raciocínio Judicial. Valoração da Prova. A decisão como argumentação. 6. Conclusões


1. Colocação do problema.

Não há dúvida que o processo civil se manifesta como um meio de obtenção de uma decisão judicial estável com aptidão para dissolver o estado de conflito desencadeado pelo choque de interesses entre as partes.

Esse meio – processo – sob outra análise, também se fundamenta em valores e objetivos práticos que o condicionam e têm a função de estabelecer um caminho por onde a cognição deverá ser conduzida.

Posto deste modo, verifica-se que a atividade de conhecimento procedida pelo Juiz não pode prescindir das provas. Isto porque a prova se apresenta como verdadeiro teste de coerência dos juízos provisórios formados no decorrer da instrução.

Nesse sentido, a prova mais que um procedimento – e como se a tem encarado simplesmente desse modo! - é na verdade um sistemático instrumento de controle não somente do raciocínio judicial como também de refreamento de sua arbitrariedade.

O presente estudo pretende enfocar a teoria geral das provas, colocado em evidência questões pouco analisadas pela doutrina tradicional, em especial fazer uma reflexão mais detida sobre o objeto do processo e da própria instrução probatória bem como analisar os modos de avaliação intelectual do juiz.

Nessa última perspectiva, procuraremos também demonstrar que o raciocínio judicial precisa corresponder a uma exigência de coerência entre o conjunto das provas e as conclusões integrantes da motivação e que esse relação de correspondência pode e deve ser verificada por uma crítica de natureza lógica nos moldes de um esquema de análise como o proposto por Toulmin.


2. O conceito de prova

O conceito tradicional de prova adotado, ou, pelo menos repetido, por boa parte da doutrina jurídica , a tem, com algumas variáveis, reconhecido como o meio de obtenção da verdade dos fatos no processo.

Nesse sentido, a prova seria o instrumento pelo qual o juiz se utilizaria para definir a verdade dos fatos que efetivamente ensejaram a lide, e sobre os quais concluirá sua atividade cogntiva.

O próprio Código de Processo Civil Brasileiro induz a essa conceituação à medida que coloca a prova como instrumento de obtenção da "verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa" (1)

Observe-se que esses fatos somente dependem do procedimento probatório na exata medida em que sejam tidos como controversos. Os fatos aceitos ativa ou passivamente pelas partes não dependem, pois, da prova, e por isso, estão aptos a receber a avaliação judicial como suportes de sua decisão.

O texto legal determina que as provas tem a finalidade de obter a verdade dos fatos. Resta saber o que significa a palavra "verdade" sobretudo tendo em vista a finalidade e limitações do processo civil enquanto manifestação humana e cultural.

Exatamente, por isso, é preciso verificar a priori se a verdade pode ser obtida pelo processo em si e mais, se é possível formular um conceito que explicite o que realmente contém o conceito da prova.

Para além da definição legal que parte do pressuposto de ser possível o alcance da verdade fática no processo, é preciso tentar sistematizar uma re-significação que efetivamente reconheça a complexidade do instituto.

A prova pode ser conceituada como o meio de representação dos fatos que geraram a lide no processo, tendendo essa representação a equivalência limitada e não à perfeita identificação entre o objeto representado e o objeto representante. (2)

A prova também pode ser conceituada como todos meio de confirmação ou não de uma hipótese ou de um juízo produzido no curso do processo. Sendo, assim, um teste de coerência entre a formulação e o provável suporte fático da demanda. (3)

Em qualquer dos conceitos por nós antes apontados, observa-se que a prova não é apresentada como meio de obtenção da verdade ( e veremos que não há como pensar diferente) e sim como instrumento de formação de um raciocínio jurídico dotado de força em decorrência de seu proferimento por uma autoridade judiciária.

Nesse sentido, para introduzir o problema, conceituamos essencialmente a prova como a tentativa de demonstração objetiva dos fatos controvertidos com a intenção de facultar ao juiz a formação de uma hipótese razoável que possa ser adotada como suporte fático para a formulação de uma decisão.

Como se observa, o conceito de prova que elaboramos depende de algumas idéias cuja análise e demonstração é necessária para que tal conceito possa ser aceito e compreendido.

Por isso, procuraremos no decorrer do texto justificá-lo destacando e questionando os fundamentos adotados pela doutrina tradicional ao acatar a perspectiva legal, visando demonstrar que tais noções não subsistem a uma análise crítica.

E, ao analisar criticamente tais fundamentos, pensamos ser capazes de inserir uma abordagem mais precisa que corrobore o conceito que elaboramos, e também, permita uma real compreensão das funções e limitações da prova no campo do direito processo civil do qual é dependente.


3. O mito da verdade no processo. O mito da certeza. A probabilidade.

Normalmente, os manuais de processo civil apontam no conceito da prova a finalidade de busca pela verdade. Essa finalidade que reflete de certo modo o próprio texto legal quase nunca é efetivamente analisada com a profundidade necessária.

Por isso, se tornou corrente a associação entre as idéias de prova e de verdade, sem que se tenha realmente entendido o alcance da segunda palavra e o seu real significado.

Por isso, desde logo, deixamos claro que a finalidade da prova não é a obtenção da verdade, e mais, não há como alcançar a verdade por meio do processo e da instrução probatória.

Por isso todas as noções (ou pré-noções) que insinuam a idéia de uma verdade parcial, incompleta, provisória, são imprestáveis por adotarem como premissa a possibilidade de redução de um valor absoluto.

Bem, para entender o porquê dessa afirmação é preciso neste momento destacar três dados, que serão analisado no decorrer do texto: [1] a prova se destina, em regra, aos fatos; [2] a verdade é um valor intelectual absoluto quando se refere (qualifica) a ocorrências fáticas, [3] a instrução probatória não é meio suficiente para produzir um juízo absoluto que possa ser identificado com a verdade.

Então, para possibilitar a formulação de uma solução jurisdicional o titular do Juízo (órgão) depende da investigação quanto aos fatos controvertidos, e nesse sentido, dizem os autores, vai se utilizar da fase probatória para obter a verdade.

Ocorre que a verdade, como apontamos, sendo um valor intelectual absoluto não admite redução e mais, quando relacionada a fatos significaria conferir a uma representação destes inteira, plena e total correspondência. Torna-se então crucial entender se a representação produzida pela instrução probatória poder ser entendida como absolutamente coerente.

Ora, os fatos são ocorrências históricas e por isso, no momento em que acontecem deixam de existir.

Quando os fatos deixam de existir porque já aconteceram ( foram superados pelo caminhar do tempo), ficam registrados.

Esses registros estão na nossa memória e nos meios físicos externos a nós e se reportam aos fatos mas não são os fatos.

Nesse sentido, os dados produzidos pela instrução probatória não são os fatos em si mesmos (até porque estes deixaram de existir) mas registros acerca do fatos. Nesse exato sentido a tarefa do Juízo é organizar esses registros de modo a compor uma aproximação que lhe possa útil para a formação de uma decisão.

Ora, como a instrução produz apenas uma aproximação, não se pode conferir a esse quadro limitado a significação de "verdade dos fatos".

A verdade (neste sentido objetivo e instrumental que é adotada no estudo do processo) é uma relação de adequação integral entre a idéia que fazemos de um objeto e o objeto em si.

Na atividade reconstrutiva que ocorre no processo não há a integral representação do fato. Há uma representação apenas parcial, na medida em que é impossível reproduzir historicamente todas as condições físicas, psicológicas, econômicas e outras, que se verificavam no momento da ocorrência.

Mesmo as informações que podem ser trazidas pela instrução probatória ao processo, não retratam o fato em si, mas apenas e tão somente partes do fato, sendo, assim, fragmentárias.

Há ainda que se referir que a percepção dos fatos ( especialmente aplicável aos registros de memória humana) passam por um inegável tratamento mental onde o inconsciente de cada indivíduo irá influenciar o conteúdo que será reportado ao juiz.

A percepção da impossibilidade de obtenção da verdade no processo deve ser creditada a Carnelutti, que, de certo modo, inseriu no estudo do processo civil a frustração da filososia quanto a obtenção da verdade.

Por assim dizer, o processo não produz a verdade, mas apenas representações parciais dos fatos. A representação não é a coisa, mas nos permite ter uma visão da coisa. Exatamente por isso, a prova permite uma visão dos fatos mas não os fatos em si.

Isso que dizer que o Juiz por meio da prova não conhece os fatos mas representações, reconstruções dos fatos. Por essa razão não conhece a verdade mas a representação (parcial) da verdade.

Ora, a representação da verdade não é a verdade em si. Uma fotografia de um trecho de um rio não é o próprio rio, tanto porque não o mostra em sua totalidade como também porque não é o rio, é um objeto diverso que informa nossos sentidos sobre o rio.

A verdade somente ocorreria de fosse possível representar integralmente o rio, impressionar nossa mente e nossos sentidos com todos os dados a seu respeito permitindo que o conhecêssemos efetivamente .

Como não é possível a construção de uma representação integral de um rio, também não é possível a representação integral de um fato. Se não há adequação entre a idéia e o objeto não há verdade.

Para sofismar, então, foram criados os conceitos de verdade real e verdade formal (ou processual). No primeiro, atribuía-se a verdade "verdadeira", ao segundo uma verdade "parcial" na medida que adstrita ao produzido nos autos do processo. Veja-se, ambos os conceitos não mudam, em essência, tudo o que o que dissemos, porque nem a verdade formal nem a real são verdades na medida em que não representam integralmente os fatos.

Reconhecido que a verdade não pode ser obtida no processo, surge a pergunta : o que pode ser obtido? Carnelutti, na sua fase madura apontou que a finalidade do processo não é a produção da verdade e sim da certeza.

Em "Veritá, dubbio e certezza" afirmava que: "Portanto, a minha estrada, começada por atribuir ao processo a busca da verdade, deveria ter substituído a investigação da verdade, pela da certeza"

Assim, a finalidade da instrução probatória não seria a obtenção da verdade, mas sim da certeza.

Tivesse Carnelutti começado pela certeza, talvez em sua fase madura chegasse à conclusão de que a finalidade do processo é definir a probabilidade dos fatos, isto é, o que provalmente ocorreu no campo fático.

Isso porque, enquanto a verdade é atributo absoluto da coisa, a certeza é atributo absoluto do sujeito que investiga a coisa. A certeza está em nós e não na coisa (ou homem) sob análise.

Ora, como a certeza está, ou melhor, é construída por nós intelectualmente, está sujeita a todas as limitações de nosso próprio raciocínio. Isso quer dizer que nossa convicção sobre alguma coisa somente é justificável na exata medida que podemos justificar racionalmente os processo intelectual que nos levou a ela.

Essa convicção por sua vez, também tem de ser absoluta, essa construção intelectual não pode ocultar qualquer dúvida sobre o que efetivamente ocorreu. Porque também a certeza é uma idéia absoluta.

Como vimos, no processo conseguimos representar apenas partes do todo, e, sendo deste modo, o processo intelectual de formação dessa certeza também se assenta nesses dados incompletos, parciais, limitados, enfim, não representativos da integralidade dos fatos.

Se nosso raciocínio se funda em algo por definição precário como afirmar racionalmente que temos certeza? É simples, não podemos.

Não é razoável nem correto afirmar que a finalidade da prova seja a produção da certeza no intelecto do Juiz, simplesmente porque sabemos (e o Juiz também sabe, ainda que às vezes inconscientemente) que a prova não produz a verdade mas apenas uma representação da verdade.

Por isso, Alexy já apontava com propriedade que: " O fato de a certeza ser inatingível não pode, portanto, em e por si gerar e mesmo ser visto como uma razão suficiente para negar o caráter científico da jurisprudência [ ciência do direito] ou sua natureza como uma atividade racional" (4)

Nesse mesmo sentido, Chäim Perelman: " Os depoimentos, os indícios e as presunções quase nunca conduzem a uma certeza absoluta, mas esta não é exigida: basta que a convicção dos juízes seja suficiente para afastar qualquer dúvida razoável." (5)

Então, não podemos visualizar sob a ótica da certeza o tema quando tratamos do que é produzido pelas provas. Aliás, Dinamarco também reconheceu o fenômeno: " Em todos os campos do exercício do poder , contudo, a exigência de certeza é somente uma ilusão, talvez uma generosa quimera. Aquilo que muitas vezes os juristas se acostumaram a interpretar como exigência de certeza para as decisões nunca passa de mera probabilidade…." (6)

Deste modo, a função da prova não é descortinar a verdade dos fatos, nem tampouco a de produzir uma certeza conclusiva no intelecto do juiz, a finalidade da prova é demonstrar o que provavelmente ocorreu, isto é, quais são provalvemente os fatos.

Entender o que probabilísticamente retrata o conjunto probatório, nos permite alcançar a verdadeira limitação do conjunto das provas e ao mesmo tempo nos remete a irreversível necessidade de esperar do juiz uma formulação mais consistente, consciente e racional de sua atividade decisória.

Não há dúvida que essa conclusão gera um efeito direto que é o aumento da necessidade de reflexão do Juiz e a conseqüente imposição de demonstração dos seus processos de avaliação racional expostos na motivação.

Não se pode negar, nem pretendemos fazê-lo, que essa ordem de idéias nos induz forçosamente para um governo da incerteza no processo.

Reconhecer a Incerteza significa contar com variáveis, ao invés de contar com elementos "seguros" (imutáveis, fixos, estáveis, etc) para balisar o desenvolvimento da relação processual.

No entanto, o processo é uma manifestação da intelectualidade humana e isso importa em reconhecer que ele também é um dos objetos culturais que sofrem refluxo da condição do homem em determinado momento do tempo.

No sentido em que Bauman (7) aponta, o mundo dos nossos dias é exatamente o mundo da incerteza. As nossas mais íntimas e profundas crenças de estabilidade e segurança, de repente, implodiram. É evidente que daí surge um mal-estar, um medo, uma ansiedade com relação a tudo o que nos cerca até porque nossa psicologia indica que o bom é o seguro (certo).

Pode-se questionar se a incerteza afeta o caminho para a felicidade do homem, e se influencia a intenção de construir uma sociedade justa e solidária, mas não se pode questionar que as certezas científicas (e o direito processual é científico) não passam de proposições provisórias e às vezes precárias, que estão apenas à espera de novos dados e proposições mais provavelmente justificáveis.

Essa crise do conhecimento não age apenas nas relações políticas, filosóficas ou psicológicas/psicanalíticas, pelo contrário, estão presentes em tudo o que homem "pós-moderno" faz e pensa.

Mesmo no campo das ciências naturais a que se colocava o adjetivo "exatas", se reconhece hoje que, com a teoria quântica, as suas compreensões e idéias sobre a macro e micro física são meramente estatísticas. Não se pode saber (verdade) com certeza onde o elétron está, mas, é possível saber onde ele probabilisticamente está. (8) Com isso não fica invalidado o caráter científico da proposição, mas apenas se reconhece que a certeza é atributo tão intimamente ligado à verdade que não faz parte do que é humano, ainda mais no campos das ciências sociais.

Para prosseguir no construção do conhecimento, portanto, é preciso repensar os instrumentos intelectuais à nossa disposição, e por isso, é preciso repensar o direito processual civil e nesse campo a função da prova.

Nesse exato sentido, torna-se fundamental estruturar um novo modo de estudar o processo e dentro dele a teoria geral da prova acrescendo elementos de análise que permitam aferir a correção do raciocínio do Juiz face os dados probatórios.

Felizmente não se pode mais explicar a função julgadora como apreciação puramente procedimental, e por assim, dizer, estética, é preciso subir degraus e criticar nossas próprias concepções e idéias, para podermos chegar a uma aproximação do que deseja a sociedade, e mesmo quanto a função do processo no campo mais amplo do estudo das ciências sociais aplicadas.


4. Estados Intelectuais do julgador. Destinatários da prova. Motivação. Ônus da Prova

Pois bem, rememorando a lição de Perelman acima citada, vimos que o Juiz não precisa formular uma certeza acerca dos fatos controvertidos, mas lhe basta firmar um juízo de probabilidade que permita afastar as dúvidas razoáveis.

O que se vê na transição dos estados intelectuais do Juiz no processo é que ele parte de uma ignorância completa acerca dos fatos e à medida que o trâmite vai se desenvolvendo ele passa a forma juízos provisórios.

Desses juízos provisórios será extraído o mais conforme com o que foi produzido em termos probatórios, isto é, diante do que foi demonstrado pelas partes e pela própria ação instrutória autônoma do Juiz, caberá a este formar uma decisão que adote a hipótese mais provável como suporte fático.

Como estamos no campo das probabilidades, o juiz deverá motivar sua escolha, isto é, determinar porque selecionou racionalmente sua hipótese como a mais provável.

É evidente que, em se tratando de sistema processual regido pelo princípio do convencimento racional do juiz, caberá a ele(a) motivar racionalmente a sua decisão, isto é, expor o seu raciocínio.

Sem essa argumentação não se pode ter como cumprida a exigência constitucional e legal de motivação.

É de se observar que a exigência de motivação é outro dos conceitos cujo reducionismo tem levado a um grave efeito social. A motivação atende a necessidade das partes de entenderem os motivos pelos quais o Juiz foi levado a concluir desta ou daquela maneira, mas também, se posta como efetivo meio de controle jurisdicional e social.

Isso porque a motivação da decisão expõe o raciocínio judicial à validação social. É a partir da motivação que se pode avaliar em termos extrajurídicos se a sociedade concorda com o conteúdo axiológico da decisão.

A motivação permite aos indivíduos avaliar o conteúdo moral, ético, econômico, entre outros aspectos, da decisão e formar o refluxo no senso comum do que é e o que não é justo. (9)

Pode ocorrer, inclusive, de o juiz não ter condições objetivas de formular sequer uma hipótese que considere razoavelmente provável, e nesse caso surge a importância da atribuição do ônus da prova.

A atribuição do ônus da prova se constitui como instrumento de exteriorização de dois valores: o de facilitar a atividade jurisdicional e o da eqüidade.

Determinar o ônus probatório a cada uma das partes assegura ao juiz um modo de decidir quando enfrentando uma dúvida consistente. Isto é, em dúvida, após a instrução probatória, o juiz deverá julgar conforme a desincumbência de cada parte de seu ônus. É, assim, um meio de permitir o Juiz o cumprimento de seu dever legal de decidir a lide. (10)

Em todo o caso, sempre, o raciocínio judicial está sob avaliação conforme o exposto na sua motivação, que, em última instância deve seguir um procedimento de coerência racional.

Com isto, impõe-se ao juiz não somente que exponha suas razões para julgar do modo como julgou, mas, e principalmente, que aponte a coerência de suas conclusões com os dados que foram obtidos no processo.

Isso significa que a motivação judicial mais que tudo exige uma forma ordenada, coerente e justificável de raciocínio que adentra ao campo da argumentação jurídica.

Ao decidir, e, assim, valorar a prova, o juiz constrói um raciocínio que deve se apresentar correto sob o ponto de vista dos meios de avaliação do pensamento jurídico, tema que passamos a melhor analisar no item seguinte.


5. Raciocínio Judicial. Valoração da Prova. A decisão como argumentação.

A valoração da prova não é tema novo no estudo do processo, pelo contrário, há uma longa história cujas fases não estão inteiramente superadas, posto que subsistem em nosso ordenamento institutos que ainda as refletem.

Basicamente, podemos distinguir duas fases bastante claras no processo de evolução da valoração da prova no direito: a primeira fase, dita, de valoração aleatória; e a Segunda que chamaremos de fase judicial.

Na primeira fase as provas estavam adstritas a uma álea. Essa álea podia se manifestar por uma crença no julgamento de uma divindade ou mesmo nas regras de combate.

Neves e Castro (11), talvez o primeiro estudioso do processo a sistematizar um estudo concentrado da teoria das provas (2ª edição de 1917), já apontava nessa categoria as ordálias e mesmo o duelo judiciário.

Nas ordálias um determinado procedimento era imposto as partes e se constituía como prova absoluta que era seguida rigorosamente pelo julgador. Entre outras, havia a da água fervente (quem tirasse um objeto do fundo de um caldeirão e não estivesse com queimaduras até o terceiro dia era o vencedor), da água fria (quem conseguisse atravessar um rio mais vezes era o vencedor) e a do ferro em brasa (quem conseguisse dar nove passos com um ferro em brasa sem se queimar era o vencedor).

No caso do duelo judiciário a questão era remetida ao combate. O vencedor tinha a prova de "veracidade" ao seu favor, sendo, assim, julgado vencedor do litígio.

Na Segunda fase, a avaliação das provas deixou de ser cometida a um evento qualquer (álea) e passou a ser procedido pelo próprio julgador.

De início o julgador se limitava a tarifar as provas de modo que o consciente final determinasse quem tinha a mais provas a seu favor. Oriundo do direito canônico esse modo de valoração ainda está impregnado em alguns dispositivos do nosso direito em que há determinação de um meio especial de prova, e, portanto, mais importante, do ponto de vista probatório, que outros, como por exemplo a prova de transferência de propriedade imóvel por documento público.

Em um segundo momento, deixou de haver o tarifamento, atribuindo-se ao Juiz a plenitude de avaliação sem qualquer necessidade de demonstração de seu raciocínio. Nesse momento em que a doutrina atribui a denominação de fase da "íntima convicção" a decisão era puramente arbitrária. Esse tipo de julgamento era adotado por uma da mais cruéis e corruptas instituições já criadas pelo homem: a santa inquisição. (12)

Essa forma de avaliação ainda informa em nossos dias o julgamento proferido pelo Tribunal do Júri onde não há exigência de demonstração dos modos de avaliação das provas pelos jurados.

Do temperamento dos dois modelos surgiu o sistema adotado no ordenamento processual brasileiro é que está conformado no art. 131 do Código de Processo Civil Brasileiro.

Esse sistema se estrutura em função da exigência de motivação e racionalidade na apreciação da prova no curso do processo.

Dizer que o Juiz deve apreciar as provas e expor seus motivos de forma racional significa determinar que o Juiz construa uma argumentação que defenda o seu ponto de vista, tanto em relação às partes quanto aos demais atores do processo como também perante a própria sociedade.

A decisão judicial, portanto, nunca é mais que uma argumentação. E essa argumentação somente pode ser entendida como correta e aceitável à medida que o raciocínio que a produziu possa ser testado.

Não pretendemos neste breve ensaio resumir o problema da validação da argumentação jurídica consistente em uma decisão judicial sob todas as teorias que existem a respeito, mas, nos parece necessário fazer uma pequena digressão no sentido de apontar uma alternativa que pode ser sacada para verificar a correção lógica de um raciocínio judicial.

Antes, é de se fazer registrar a idéia de Toulmin de que a lógica não se destina a análise da coisa, mas ao que se diz da coisa. Nesse exato sentido é, por definição, uma ciência crítica. (13)

Posto deste modo, vemos que a aplicação da lógica nos possibilita verificar o que diz o juiz em sua argumentação – consistente na motivação - acerca dos fatos e do direito que, enfim, fundamentam a sua decisão.

Toulmin, defende um esquema de demonstração complexo, antecipando de antemão a impossibilidade de utilizar no raciocínio jurídico um esquema silogístico simples.

A complexidade do raciocínio jurídico, exige que no processo de sua formulação, o Juiz, ao apreciar o problema (em nosso caso a prova), considere alguns elementos que refogem ao modelo tradicional de Aristóteles.

Nessa teoria, o sujeito da argumentação deve demonstrá-la, apontando de forma estruturada o seguinte:

  1. Dados – Quais foram as informações que foram tomadas por base para construir o raciocínio, inclusive, demonstrando a credibilidade dos mesmos, apoiando o seu juízo nos dados mais confiáveis.
  2. Relação – Como os dados foram tomados na construção do Juízo, isto é, como foi estruturada a relação entre as informações e as conclusões. Define o modelo de análise dos dados empregados.
  3. Conclusões – É o juízo que decorre da subsunção dos dados ao modelo de relação utilizada.
  4. Proposições Garantidoras – São proposições que afirmam a validade da relação adotada entre os dados e a conclusão que se pretendem defender. No caso da argumentação jurídica consistem nas regras de Direito (em sentido amplo) que podem ser invocadas para sustentar a modalidade de relação utilizada.
  5. Qualificações Modais – São as variáveis que determinam o grau de aplicabilidade das nossas proposições garantidoras.
  6. Condições de Exceção ou refutação – Aponta em que situações específicas a qualificação modal determina uma exceção às proposições garantidoras ou há uma possível refutação à conclusão obtida.

É evidente que não pretendemos esgotar a teoria em questão, mas o aspecto operacional, pode ser resumido ao seguinte esquema:

A forma de aplicação desse modelo importa em elaborar uma argumentação muito mais sólida e teoricamente mais justificável à medida em que a decisão judicial possa contemplar um raciocínio logicamente mais estruturado.

No campo das provas o modelo sob estudo permite ao Juiz trabalhar com as incertezas decorrente do reconhecimento da probabilidade comum única finalidade possível à produção de provas, mediante um juízo lógico que tende a aperfeiçoar sua construção intelectual acerca dos fatos.

Como os fatos "provados" na instrução são "dados", eles mesmo acabam por integrar o mesmo modelo quando se buscar a análise da argumentação integral contida na decisão judicial.

Com isso podemos afirmar que se os fatos forem analisado sob a forma de um esquema lógico nos moldes do proposto, por exemplo, por Toulmin, a valoração da prova manifestada na motivação tenderá a ser mais justificável-menos insegura que numa análise puramente silogística. (14)

Nesse sentido a lógica pode ser uma forma eficaz de validação do raciocínio judicial quanto a valoração do conjunto probatório.

Pode-se argumentar que no Ordenamento brasileiro não há exigência de que a decisão judicial seja racional, apenas exige que seja motivada.

Ora, motivar é exatamente expor o raciocínio, é em essência uma atividade racional , e como veiculadora de uma argumentação jurídica comporta uma análise lógica no modelo antes proposto.

A decisão judicial, mais que tudo, encerra a atividade persuasiva do juiz sobre si próprio, sobre as partes e sobre a sociedade, e essa persuasão não ocorre senão quando a decisão em si é justificável resistindo à crítica lógica.

Aliás Perelman sobre esse aspecto aponta: "A sentença motivada substitui a afirmação por um raciocínio e o simples exercício da autoridade por uma tentativa de persuasão. Desempenha, desta forma, no que poderíamos chamar de equilíbrio jurídico e moral " (15)

Nesse exato sentido somente é motivada a decisão quando efetivamente há a exposição dos meios racionais de produção da decisão. E a conclusão somente poder ser considerada correta quando resistir a uma crítica lógica.


6. Conclusões

À guisa de notas conclusivas podemos reafirmar:

  1. A instrução probatória, ao contrário do que expressa o sentido literal da Lei, não se destina a busca da verdade, simplesmente porque esta é inalcançável por meio do processo, nem tampouco busca a certeza ( convencimento pleno) do juiz, sendo sua função oferecer uma probabilidade dos fatos;
  2. Exatamente pela natureza da prova, para trabalhar com a incerteza a atividade cognitiva do juiz deve necessariamente ser livre racional;
  3. Por ser exigida racionalidade pode ser toda decisão criticada por meio de um procedimento lógico que permita demonstrar a coerência entre os dados do processo, a atividade estimativa e as conclusões obtidas;
  4. Nesse sentido, qualquer conceito de prova deve levar em consideração a sua finalidade real e a sua aptidão exclusivamente probabilística de representar os fatos que ensejaram a lide

Autor

  • Jean Carlos Dias

    Jean Carlos Dias

    advogado, professor de Direito, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá (RJ), mestre em Instituições Jurídico-Políticas e doutorando em Direitos Fundamentais e Relações Sociais pela Universidade Federal do Pará

    é professor de Direito da graduação e pós-graduação da Universidade da Amazônia (UNAMA), do Centro de Ensino Superior do Pará (CESUPA), da Escola do Ministério Público do Estado do Pará e da Escola da Magistratura do Estado do Pará. É também autor dos livros: "A gestão das sociedades anônimas" (Juruá, 2001) e "Direito Contratual no Ambiente virtual" (Juruá, 2001).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Jean Carlos. O problema dos limites da prova e sua valoração no moderno estudo do Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3418. Acesso em: 19 abr. 2024.