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"Dei delitti e delle pene”: Dos Delitos e das Penas, Cesare Bonesana Beccaria

"Dei delitti e delle pene”: Dos Delitos e das Penas, Cesare Bonesana Beccaria

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Estudo do livro "Dos delitos e das penas" de Cesare Bonesana Beccaria

Como dizia Bacon: “In rebus quibuscumque difficiloribus non expectandum, ut quis simul, et metat, sed praeparatione opus est, ut per gradus maturescant”(“Em todas as coisas, e especialmente nas mais difíceis, não devemos esperar semear e colher ao mesmo tempo, mas é necessária uma lenta preparação  para que elas amadureçam gradativamente”). O caso do livro “Dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria, se encaixa perfeitamente na máxima que preconiza a ideia de como são e de como deveriam ser as leis:

(...) “As leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não passaram, geralmente, de instrumentos das paixões de uns poucos, ou nasceram da necessidade fortuita e passageira; jamais foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana (...). Felizes as raras nações que não esperaram que a lenta evolução das circunstâncias e das vicissitudes humanas conduzisse ao bem após ter atingido o mal extremo, mas que por meio de boas leis aceleraram as passagens intermediárias; e merece a gratidão dos homens o filósofo que, de seu desprezo e obscuro gabinete, teve a coragem de lançar à multidão as primeiras sementes por longo tempo infrutíferas das verdades mais úteis.”[1]

Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, nasceu na cidade de Milão em 15 de Março de 1738. Por aqueles lados sempre foi destaque. Formou-se em Direito pela Universidade de Parma vinte anos depois. Todavia suas ideias e ensinamentos são notórios e contagiantes até a atualidade. Em 1763 por sugestão de Pietro Verri, começa a dedicar-se a um estudo crítico sobre a legislação penal, ganhando notoriedade ao dar um grito inicial de revolta contra as arestas desumanas do sistema penal de sua época, instigando a todos a refletirem sobre ele, a fim de que a sociedade goze de instituições melhores e mais justas e com “leis sábias”. Beccaria, devido ao seu comportamento impertérrito foi vítima de perseguições causando-lhe enorme desconforto social.

Beccaria, até hoje é premiado por inúmeros leitores assíduos de suas obras, pois sua inteligência e sensibilidade para abordar assuntos jurídicos lhe possibilitaram isso. 247 anos depois de escrito “Dos delitos e das penas” as palavras de Beccaria ecoam pelo universo jurídico.

Cesare busca demonstrar forma sábia logo na gênese de seu livro sua percepção sobre o poder e a sociedade.

Vejamos:

“Os homens geralmente abandonam as minhas importantes resoluções à prudência cotidiana ou à discrição daquelas cujo interesse é opor-se às leis mais sábias; estas, por natureza, tornam as vantagens universais e resistem às pressões que levam a privilegiar a poucos, separando de um lado o máximo de poder e felicidade e, do outro, toda a fraqueza e miséria.”[2]

Observa-se a consciência que Beccaria possuía e, mesmo discretamente deixou tipografado para a posteridade a sua indelével visão e suas reflexões sobre o desprezo pela maioria humilde da sociedade. Devemos nos atentar para o fato de que há quase 300 anos, essa ideia de concentração de rendas e privilégios entre os poderosos, que são minoria, já impunha certa rotina, na arcaica e nublada Itália do século XVI.

Ao continuar a leitura deste clássico, nos deparamos mais à frente com um ensino mais consistente em referência a Lei. Ele reverencia a Lei, demonstrando de forma indelével que a Lei está acima de tudo e de todos. A Lei, depois a Lei, e a Lei, e somente depois é que institutos auxiliares do Direito devem ser usados. Cesare naquele momento de forma vigorosa defendia a bandeira do Estado Democrático de Direito. Beccaria asseverou:

“(...) só as leis podem decretar as penas dos delitos, e esta autoridade só pode residir no legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social; nenhum magistrado (que é parte da sociedade) pode, com justiça, infligir penas contra outro membro dessa mesma sociedade. Mas uma pena superior ao limite fixado pelas leis corresponde à pena justa mais uma outra pena; portanto, um magistrado não pode, sob qualquer pretexto de zelo ou bem comum, aumentar a pena estabelecida para um cidadão delinqüente.”[3]

Acreditava Beccaria que a sociedade e o sistema jurídico estariam em risco quando a prática política ou social de majorar punições ou criar novas atitudes não fossem postas senão por força legal, fragilizando, assim, a segurança e confiança que o cidadão deveria depositar nos seus representantes.

Dedilhando a obra de Beccaria, identificamos uma premissa na qual ele diz que a sociedade romana deveria servir de exemplo para outras sociedades no quesito “respeito às decisões judiciais”.

“Vemos, pois, a sorte de um cidadão mudar muitas vezes em sua passagem por diversos tribunais, e a vida dos miseráveis ser a vítima dos falsos raciocínios ou das variações ocasionais de humor de um juiz, o qual toma como interpretação legítima o vago resultado de uma série de noções confusas que agitam em sua mente. Vemos, pois, os mesmos delitos punidos de forma diferente em épocas diferentes pelo mesmo tribunal, por ele ter consultado não a voz imutável e constante da lei, mas a instabilidade errante das interpretações.”[4]

Dessa forma reforça Cesare que as decisões judiciais devem ser respeitadas e devem servir de modelo para toda a sociedade. Devemos salientar que tal prática só será alcançada no momento que a sociedade acreditar que as nossas cortes e nossos aplicadores do Direito são honestos e justos.

E prossegue em seu discurso emitindo sua opinião não somente sobre o que acometia a sociedade de sua época, mas também lecionou sobre modelos de conduta e formas de sua almejar a justiça mais certeira e integral. Leciona Beccaria acerca dos testemunhos.

“É um ponto crucial em toda boa legislação a determinação exata da credibilidade das testemunhas e das provas do crime. Todo homem razoável, isto é, que tenha um certo nexo nas suas ideias e cujas sensações sejam conformes às dos outros homens, pode ser testemunha (...). É necessária mais de uma testemunha, porque enquanto uma afirmar e outra negar, nada haverá de certo, e prevalecerá o direito que cada um tem de ser considerado inocente.”[5]

Pode parecer óbvio tal preceito em nossos tribunais atualmente, dito por Beccaria, quando o juiz perquire acerca de parentesco, amizade, afinidade, discórdia, etc., mas não nos esqueçamos que ele falava sobre isso nos longínquos anos do século XVI.

Ainda no capítulo “Das testemunhas”, Beccaria expõe um comentário relevante relativo a homens consociados a grupos ou fraternidades, senão vejamos:

“Igualmente, a credibilidade de uma testemunha pode ser às vezes diminuída, quando ela seja membro de alguma sociedade privada cujos costumes e normas não sejam bem conhecidos ou divirjam das públicas. Tal indivíduo não só tem suas próprias paixões, mas também as alheias.” [6]

Quando num processo a testemunha apresenta esses predicados isso faz muita diferença em seu funcionamento.

Segundo RIBEIRO, a preocupação de Beccaria no estudo exaustivo dos delitos e das penas era idealizar no final uma sentença justa e pura. O sonho de Beccaria era alcançar um dia em que o exame conjeturatório de um cidadão fosse a correção íntegra de uma sociedade justa e sem mácula.

Beccaria se preocupava com o comportamento contumaz de seus concidadãos em caluniar o próximo tendo como desejo uno ver penas injustas, desumanas e cruéis. Sob esse aspecto exclamava:

“Já disse Montesquieu que as acusações públicas são mais conformes ao espírito da república – onde o bem público deveria constituir a primeira paixão dos cidadãos – que ao da monarquia, onde esse sentimento é fraquíssimo pela própria natureza do governo e onde é ótimo o procedimento de nomear comissários que, em nome de todos, acusem os infratores das leis. Mas todo governo, republicano ou monárquico, deve infligir ao caluniador a pena que caberia ao acusado.” [7]

Essa seria, segundo Beccaria, uma forma justa de se combater os excessos de calúnias que assolavam os comportamentos abusivos da sociedade de sua época.

Já citamos mais acima a forma indelével com que Beccaria defendia a relevância da lei, nesse âmbito ele liderou um movimento de vanguarda contra a tortura, dizia ele que a lei deveria ser o remédio para os males jurídicos da sociedade de sua época. Pensamento esse válido em nossos dias. Nesta seara Beccaria discorre:

“Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só pode retirar-lhe a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi concedida. Qual é, pois o direito, senão o da força, que confere ao juiz o poder de aplicar uma pena a um cidadão, enquanto perdure a dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência? Não é novo este dilema: ou o delito é certo ou incerto; se é certo, não lhe convém outra pena que não a estabelecida pelas leis, e são inúteis os tormentos, pois é inútil a confissão do réu; se é incerto, não se deve atormentar um inocente, pois é inocente, segundo as leis, um homem cujos delitos não estejam provados.” [8]

Temos então nessa proposição “o princípio da presunção da inocência” que já era ansiado pelos quatro cantos, nesta grafia percebemos como Beccaria homenageia e ratifica com maestria um dos princípios mais belos existentes em nosso Ordenamento Jurídico. Além disso, detectamos ainda nessas poucas linhas sua aversão à tortura, prática essa bastante difundida em sua época. Neste sentido ele demonstra através de seu pensamento sociológico que “violência gera violência”.

Vejamos:

“Não é difícil remontar às origens dessa lei ridícula, pois os próprios absurdos adotados por uma nação inteira sempre têm alguma relação com outras ideias comuns e respeitadas pela própria nação. Esse uso parece derivar das ideias religiosas e espirituais que tanta influência exerce sobre os homens, sobre as nações e sobre os séculos. Um dogma infalível nos assegura que as nódoas contraídas pela fraqueza humana e que não mereceram a ira eterna do Ser Supremo serão purgadas por um fogo incompreensível.” [9]

Já dizia Alexandre Lacassagne: “A sociedade tem os criminosos que merece”.

Cesare Beccaria conseguiu brilhantemente ilustrar de maneira clara e objetiva que as punições devem ser comensuradas no bojo da LEI, uma vez que a aplicação dessas punições “fuja da lei” isso se torna temerário para a sociedade.

Finalizando o estudo desse clássico jurista italiano Cesare Beccaria, visualizamos um teorema simples, claro, objetivo e que indubitavelmente é consenso entre aqueles que sejam ou não operadores do Direito para a restauração de nossa sociedade globalizada, senão vejamos:

“Finalmente, o meio mais seguro, porém mais difícil, para prevenir os delitos é aperfeiçoar a educação, assunto demasiado vasto que excede os limites que me impus. Ouso também dizer ele está muito intimamente ligado à natureza do governo, razão para que seja sempre um campo estéril, só cultivado aqui e acolá por alguns poucos sábios, até nos mais remotos séculos da felicidade pública. Um grande homem que ilumina a humanidade que o persegue[1]·, mostrou em detalhe quais sejam as principais máximas da educação realmente útil aos homens, a saber: preterir uma estéril multidão de objetos em favor de uma escolha precisa deles (...)” [10]

Permito-me partilhar da efusiva ideia de Beccaria parafraseando Pitágoras, dizendo que: “Educando a criança, jamais será necessário punir o adulto”. O pensamento deste autor é tão grandioso e avançado para sua época, que Beccaria cogitava já a possibilidade de se prevenir a criminalidade por meio de uma educação adequada e de recursos capazes de melhorar socialmente a situação do infrator, que é difícil ainda hoje.

Finalizo com um sábio ensinamento de Beccaria:

“ De quanto se viu até agora pode tirar-se um teorema geral muito útil, mas pouco conforme ao uso, esse legislador ordinário das nações, a saber: para que cada pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão privado, deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos e ditadas pelas leis.” [11]

Notas:

[1] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 39

[2] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 39

[3] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 44

[4] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 47

[5] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 62, 63

[6] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 64

[7] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 68, 69

[8] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 69

[9] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 70, 71

[10] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 136, 137

[11] BECCARIA, Cesare, Dos delitos e das Penas. São Paulo: Martins Fontes, p. 139

RIBEIRO, Roberto Victor Pereira. Aspectos importantes da obra dos delitos e das penas – CESARE BECCARIA. Conteúdo Jurídico, Brasília – DF: 24 dez. 2008. Disponível em: <HTTP://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.22533>.Acesso em: 20 mar. 2010.


[1] Trata-se de Rousseau. (N. do T.)


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