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Lombroso e o homem delinquente

Lombroso e o homem delinquente

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O presente estudo se remete à obra 'O homem deliquente' de Cesare Lombroso. O impacto dos conceitos deste autor na esfera do Direito Penal e ecos na criminalística atual. Abordará também as influências, as críticas e deturpações do pensamento lombrosiano.

1. Introdução

O presente artigo tem por objeto dissertar a influência da obra do médico italiano Cesare Lombroso. Não se trata de proselitismo à respeito da teoria positivista do Direito Penal, mas sim da análise da repercussão das ideias lombrosianas, suas consequências, os erros e os acertos. É ponto fundamental também esclarecer o contexto em que surgiram tais conceitos e o caldo de influências no qual se encontrava mergulhado este estudioso.

Conceitos como frenologia, craniometria, racismo e eurocentrismo surgirão não como verdades, mas apenas como referências ideológicas, muitas das vezes erroneamente imputadas ao pensador.

O autor foi o primeiro a intuir a existência de um fator subjetivo dentro do crime e achar que este deveria ser estudado com maior profundidade. Perante tal hercúlea tarefa ele realmente abriu “a caixa de pandora” de cada ser humano tocando e estudando não apenas características físicas, mas também preconceitos e temores de cada um.

Ainda existem aqueles que o acusam de racista, eurocentrista e nazista; esquecendo-se de que ele era judeu e todas as suas obras foram escritas com o fito de pesquisa científica sempre aberta à revisões. Em verdade ele nunca considerou sua obra como uma verdade absoluta e definitiva, mas sim, como um início da busca de uma resposta, uma explicação, um porquê. Prova disso é que sua principal obra “O Homem Delinqüente” em sua primeira edição continha 252 páginas, passando à 1903 páginas em sua quinta edição de 1896 e 1897 por conta das revisões oriundas de suas pesquisas posteriores à primeira edição. (LOMBROSO, 2007.)

Cesare Lombroso era ciente das limitações de seu tempo, mas nunca usou das mesmas como justificativa para a inércia da busca do conhecimento. Logrou fundar uma escola de pensamento, onde diversos mestres do Direito Penal encontraram um caminho mais plano por onde trilhar. Separou o conceito de criminoso habitual e criminoso comum ou de ocasião. Despertou a atenção para o fato de que existem dementes no crime e que estes devem ser tratados como tal. Encerrou um ciclo de visão estritamente moral do crime e das sanções penais. Dilatou a visão do Direito Penal transformando-o de uma cadeira especulativa de punição e repressão, para uma ciência propriamente dita, buscando através do estudo e da observação, alcançar a tão almejada paz social e sensação de justiça não apenas pela punição, mas também pela prevenção do crime.

2. Influências de Lombroso

Cesare Lombroso nasceu em Verona no dia 6 de novembro de 1835. Filho de uma família judia abastada graduou-se em Medicina pela Universidade de Pavia em 1858. Durante os anos de estudos posteriores em Viena tornou-se adepto do Positivismo. Iniciou a prática da medicina no manicômio da cidade de Pesaro, vindo a tornar-se posteriormente Diretor da instituição. Essa vivência psiquiátrica íntima e diária foi fundamental para estabelecer a relação entre demência e delinquência. Também foi médico da penitenciária de Turim e de outras cidades; foi ainda médico militar o que explica o seu envolvimento intelectual com os delinquentes e militares (em particular os marinheiros). Aos 30 anos assumiu a Cátedra de Medicina da Universidade de Turim, que só deixou ao final da vida em 19 de Outubro de 1909. (LOMBROSO, 2007)

O meio histórico e social no qual Lombroso surgiu também foi uma influência relevante em sua obra. Nascido numa Itália ainda dividida, formada por vários reinos influenciados pela Igreja Católica, que por sua vez, mantinha-se acima das disputas territoriais, foi contemporâneo do movimento chamado Risorgimento, embora não existam documentos que comprovem sua participação em tais eventos políticos.

As cidades onde Lombroso residiu (Turim, Verona e Pavia) fazem parte da região norte da Itália, tradicionalmente mais desenvolvida e rica que a região sul do país possuindo uma influência menor da Igreja.

Cesare Lombroso, apesar de ser um homem a frente de seu tempo, foi fruto do mesmo. Há de se levar em conta que Lombroso se forma médico e inicia a prática profissional em um tempo no qual a Frenologia era considerada ciência.

Ciência desenvolvida modernamente por Franz Gall, a frenologia afirmava que o caráter, a personalidade e o potencial para o crime poderiam ser identificados pela forma da cabeça de cada pessoa. Se hoje é motivo de descrença e intitulada como pseudociência por aqueles que a desconhecem, ela possui mérito suficiente para ser considerada como protociencia por romper com o pensamento clássico de que o crime é apenas um fato de causa moral ou social. Para tal justificativa necessário apenas é lembrar a existência do psicopata que não poderia ser identificado ainda sem a ajuda da psicologia forense e do estudo do DNA. (CALDAS, 2001)

A frenologia teve tal relevância que evoluiu com o advento do darwinismo para a craniometria, esta sim, pseudociência que justificava o racismo e o eurocentrismo estabelecendo o crânio europeu como referência do dito “normal” e todo diverso como atrasado ou deturpado. A craniometria serviu aos ingleses como justificativa para políticas racistas contra os irlandeses e africanos, depois servindo de justificativa para os nazistas determinarem o que era ariano e não ariano. Caso clássico de pergunta certa com resposta errada. Tais ciências não tiveram influência nas afirmações de Lombroso, mas sim nos questionamentos dele sobre a relação da demência com a delinquência.

Influência singular na obra Lombrosiana foi o pensamento darwinista, embora os dois sejam anteriores aos conceitos de genética e DNA, ainda assim, já intuíam fatores hereditários que, posteriormente, somados à psicologia Freudiana completariam o verdadeiro “quebra-cabeças” da antropologia criminal e psicologia forense.

Influência interessante em Lombroso foi o espiritismo. Misto de ciência, religião e filosofia o espiritismo foi objeto de estudo de uma grande parcela de intelectuais e burgueses do século XIX na Europa. Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, foi o codificador das leis deste movimento que se baseava também na metodologia de Augusto Comte pela metodologia da observação.

Cesare Lombroso não foi imune à curiosidade despertada por esse movimento tendo sido por certo tempo duro crítico ao fenômeno das “mesas girantes”. No entanto, por influência e comentários de amigos Lombroso buscou estudar tais fenômenos. Apesar de seu rigor positivista na observação dos fatos ao final de algumas “sessões espíritas” declarou: “Estou muito envergonhado e desgostoso por haver combatido com tanta persistência a possibilidade dos fatos chamados espiríticos; mas os fatos existem e eu deles me orgulho de ser escravo.” (JORNAL VERDADE E LUZ, 2001, online) A relevância de tal fato se deve, e tão somente, ao fato de Lombroso ter escrito a obra “Espiritismo e Mediunidade”.

No entanto, entre tantos pensadores que influenciaram o mestre italiano, nenhum o fez de forma tão absoluta quanto Augusto Comte. Adotando o método da observação que foi largamente utilizado ao longo de sua vida profissional como médico psiquiatra em manicômios e prisões italianas torna-se até lógica a construção de uma visão positivista metodologicamente científica que buscava responder a questão do criminoso habitual, diferindo o mesmo do criminoso circunstancial. As possibilidades de utilidade para a sociedade justificavam o interesse em pesquisar tão espinhoso assunto, que inevitavelmente confrontaria o pensamento vigente sobre a relação entre demência e delinquência. Se a Escola clássica do Direito Penal estabelecia a responsabilidade penal lastreada pelo livre-arbítrio, ele agregaria novos elementos.

Nos grandes centros culturais europeus o positivismo atrelado aos novos estudos no campo da biologia faz nascer à escola positiva. Fruto da literatura naturalista, trazia em seu bojo as mais diversas influências intelectuais como a doutrina evolucionista de Darwin, o Lamarquismo, o materialismo de Buchner, a própria visão sociológica de Comte, a protociencia da frenologia de Franz Gall entre outros mestres do pensamento. (PRADO, 1999)

Esta revolução intelectual influenciou os novos rumos do Direito, dilatou os estudos no âmbito penal, trazendo-o ao patamar de ciência antropológica, com maiores responsabilidades sociais, redirecionando desta forma o norte dos estudos criminológicos.

A Escola Positiva priorizando os interesses sociais em relação ao indivíduo estabeleceu o paradigma da defesa do corpo social frente à ação do delinquente, opondo-se dessa forma ao abstrato individualismo da Escola Clássica.

Tal forma de pensamento reverberou na sociedade europeia, liberal e burguesa de forma aprazível que via neste discurso não somente a organização de um Estado que defendesse a propriedade privada, e justificasse o “status quo”, mas também implementasse um progresso linear do saber humano. Consagravam-se assim as ciências que de uma forma laica eram capazes de explicar, prever e manipular o universo. Perante tal linha de pensamento tudo que não fosse capaz de ser demonstrado de forma metódica e materialmente reproduzível saia do campo do científico e caia no abismo das noções religiosas, superstições e moralidades infundadas.

3. O Crime e o Homem criminoso propriamente dito

Lombroso expôs em detalhe suas observações e teorias na obra O Homem Delinquente cuja primeira edição apareceu em 1876. Anteriormente já havia escrito em 1874 a obra Gênio e loucura. Posteriormente ele iria escrever outros livros como O delito (1891),O antissemitismo e as ciências modernas (1891), A mulher delinquente, a prostituta e a mulher normal (1893), As mais recentes descobertas e aplicações da psiquiatria e antropologia criminal (1893), Os anarquistas (1894), O crime, causas e remédios (1894). (LOMBROSO, Cesare. 1885-1909 O homem delinquente/ Cesare Lombroso; tradução Sebastião José Roque. – São Paulo: Ícone 2007.)

O cerne do pensamento de Cesare Lombroso está em sua obra O Homem delinqüente, fruto de suas observações enquanto psiquiatra e médico. Sua teoria do delinquente nato foi formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinquentes e seis mil análises de delinquentes vivos; e o atavismo que, conforme o seu ponto de vista, caracteriza o tipo criminoso – ao que parece – contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões europeias. (MOLINA, 2002, p. 191.)

No entender de Lombroso o crime não é uma questão moral, mas sim, um fenômeno científico que deve ser estudado como tal. Ao contrário do que muitos pensam, o homem criminoso, ou o “cretino moral”, não era, no entender de Lombroso, um indivíduo inexoravelmente predestinado a cometer crimes, muito menos, que o simples fato de um homem possuir uma fronte fugidia o caracterizava como um “cretino moral” que fatalmente iria matar ou roubar. Tal simplificação se deve as deturpações de interpretação daqueles que se arvoravam lombrosianos para justificar seus próprios preconceitos e desejos. Exemplo claro que temos dos nazistas, que não apenas deturparam a obra de Lombroso, mas também o conceito do “Além-homem” de Nietzsche, a fim de justificar a supremacia ariana em oposição à inferioridade dos judeus. (NIETZSCHE, 2011)

Em sua obra ele afirmou que dentro da espécie humana existe uma “subespécie”, uma degenerescência que ele denomina cretino moral, pois não se trata de uma raça, e sim, um grupo de doentes em que o senso de valor moral apresenta variações incompatíveis com o senso comum da sociedade. Estes cretinos morais possuem a tendência sob certas circunstâncias de cometer certos tipos penais. Fato secundário é que eles podem ser identificados por certas características físicas ou morais.

Dentro desse conceito principal encontraremos a figura do psicopata atual que já ocorria desde tempos imemoriais. Fato irrefutável é que somente com o advento dos estudos de Freud, do conceito do DNA e da genética é que se elucidaram luzes para explicar essas anomalias.

A oposição teoria do Homem delinquente à escola clássica se dá justamente no aspecto de que o crime ocorre apenas pela vontade do autor, pelo confronto entre o imoral perante a norma, o conceito clássico do criminoso de ocasião. Ele retira uma parte dos criminosos, os cretinos morais, criminosos habituais que enfrentam a, já citada, tendência a cometer o tipo penal.

Estes além do sentimento imoral em confronto a norma, possuem uma tendência nata para o delito que somente surge sob certas circunstâncias. O aspecto de reeducação e reinserção social não os atinge, pois uma vez despertada essa engrenagem criminosa pouco ou nada resta a fazer por eles, são doentes sem cura.

Verdadeiros infernos na terra, as penitenciárias europeias do século 19 não ofereciam condições de reinserção ou reeducação dos detentos. Obra clássica da literatura mundial, Os Miseráveis de Victor Hugo trata do caso de Jean Valjean, condenado à cinco anos de trabalhos forçados nas galés por ter roubado um pão tem sua pena aumentada para 19 anos por conta de tentativas de fuga sendo classificado como criminoso altamente perigoso depois de pagar a pena sendo forçado a se apresentar as autoridades policiais para o resto de sua vida. Desaparece assumindo uma nova identidade, mas torna-se perseguido por Javert que o considera a síntese do mal por ter sido legalmente marcado como criminoso. A proposta de Lombroso é justamente o contrário. Identificar-se os cretinos morais e dar-lhes o tratamento adequado (lobotomia). Quanto aos criminosos de ocasião outro tipo de punição. (HUGO, 1962)

Talvez um dos aspectos mais controversos da teoria de lombrosiana sobre o cretino moral seja a questão das características físicas. De fato, após milhares de exames de detentos e a formatação de um tipo físico para cada tipo penal, a teoria se confirma em um universo bastante restrito formado basicamente por tipos caucasianos do norte da Itália com poucas miscigenações. Interessante notar que no Brasil o Dr. Nina Rodrigues, entusiástico da Escola Penal Italiana, conduziu estudos semelhantes e concluiu que o problema da criminalidade se devia à miscigenação, fato bastante controverso se levarmos em conta a amostragem original de Lombroso. Com certeza, este é um dos diversos casos de errôneas interpretações e deturpações de que o pensamento lombrosiano se viu vitimado. (RODRIGUES,1894)

Lombroso apontava as seguintes características corporais do homem delinquente:

[...] protuberância occipital, órbitas grandes, testa fugidia, arcos superciliares excessivos, zigomas salientes, prognatismo inferior, nariz torcido, lábios grossos, arcada dentária defeituosa, braços excessivamente longos, mãos grandes, anomalias dos órgãos sexuais, orelhas grandes e separadas, polidactia.  As características anímicas, segundo o autor, são: insensibilidade à dor, tendência à tatuagem, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo. (apud ALBERGARIA, 1999, p. 13107)

Entretanto a questão das características físicas sempre teve um espaço menor na obra de Lombroso, o mesmo nunca chegou a rever essas estatísticas, pois sempre considerou este aspecto como consequência e não como causa. Por ser um pesquisador empírico por excelência Lombroso sempre manteve sua obra aberta a revisões conforme os novos dados que obtinha.

O motivo que provocava a degeneração mental do “cretino moral” sempre foi a pergunta que Cesare Lombroso buscou responder. Inicialmente ele acreditou tratar-se de um retrocesso mental no senso de valoração do “cretino moral” que o levava ao estado primitivo, característica que ele chamou de atavismo. Posteriormente, chegou a conclusão de que se tratava de um subdesenvolvimento psíquico do “cretino moral” que se encontrava no patamar de uma criança. Por fim acreditou tratar-se da agressividade explosiva do epilético, ideia esta que foi refutada posteriormente por seus discípulos. Sempre é válido lembrar que ele não dispunha dos conceitos atuais sobre DNA e psicologia, fato este que embasa sempre que a valoração de um pensamento científico fora do contexto histórico é sempre viciada. Lombroso foi modificando seus postulados nas edições sucessivas de sua obra e, por ela, se viu obrigado a incorporar os resultados daquelas observações empíricas que justificam suas mudanças de orientação. As correções que foi introduzindo não alteravam o núcleo de sua teoria, ou seja, o postulado segundo o qual existe uma diferença biológica entre o delinquente e o não delinquente. (ROMERO, 1999)

Carlos Alberto Elbert registra que, em muito pouco tempo, diversas verificações médicas foram relativizando a validade das descobertas de Lombroso, que teve de retificar constantemente suas afirmações mais ousadas; assim, no princípio afirmou que entre 65% e 75% do total de criminosos tendiam à classificação de "natos", para depois fixar essa quantidade em 40%, e finalmente em um terço. Terminou atribuindo à epilepsia a causa da delinqüência, tese que também foi refutada em pouco tempo. (ELBERT, 2003)

4. O judeu que influenciou Goebbels

Em 1937 na Alemanha Paul Joseph Goebbels, Ministro de Propaganda do III Reich à pedido de Hitler incluiu no programa de manifestações públicas exposições de sua concepção da arte ideal para a Alemanha nazista. Era a Entartete Kunst, ou a exposição de “arte degenerada”, sobre a qual o filme Arquitetura da Destruição, dirigido por Peter Cohen, discorreu com sucesso. A exposição ocorrida em Munique reuniu coleções de hospitais psiquiátricos com obras de artistas modernos, as quais eram comparadas por psiquiatras do Governo. Artistas profissionais como Otto Dix, Heckel, Kandinsky, Kirchner, Klee, Kokoshka, Franz Marc, Nolde, entre outros, foram expostos ao lado de obras recolhidas nas coleções psiquiátricas, como aquela formada por Prinzhorn, onde figuravam peças de Karl Brendel, Paul Goesch e Georg Birnbacher. (ANDRIOLO, 2006)

Os nazistas utilizaram-se da ideia da degenerescência, que mesmo não tendo sido o autor, encontrou forte embasamento em Lombroso. Conforme lembrou Osório Cesar, Lombroso reunira “produções artísticas” de 107 doentes mentais que começaram a pintar ou esculpir depois da moléstia: “Ele foi o primeiro observador que chamou a atenção para a semelhança da arte de alguns alienados com a arte primitiva e considerou as obras artísticas desses alienados como um retorno à infância da humanidade” (CÉSAR, 1955).

A explicação da manifestação artística nos doentes mentais como expressão de mentalidade primitiva ou infantil, por intermédio do método comparativo, foi possível com o suporte da teoria da degenerescência, sobretudo com o próprio Lombroso, em Turim. (POSTEL, 1987)

A linha de pensamento da arte degenerada se detinha no fato de que as manifestações artísticas dos alienados eram semelhantes em estilo as de povos da África selvagem, considerados atrasados ao modelo europeu que representava o padrão referencial.

Desta forma deduzia-se que a manifestação artística dos alienados era fruto de uma mente que havia se degenerado ao patamar de seus ancestrais selvagens (atavismo).

Goebbels, mestre da propaganda nazista foi um dos muitos exemplos de deturpadores da obra lombrosiana. Embora no início de sua obra Cesare Lombroso creditasse ao atavismo a razão da existência do cretino moral, ao longo de seus estudos ele acabou revendo esse conceito anos antes de sua morte (1909). Deste fato surgem duas possibilidades: a) Goebbels não conhecia com profundidade a obra de Cesare Lombroso. b) Goebbels deliberadamente distorceu a obra de Lombroso.

5. Porque ainda se estuda Lombroso?

É sempre pertinente e questionável o estudo da obra de Cesare Lombroso.  Diversos estudantes e profissionais do Direito sempre se questionam por que estudar um teórico que tantas vezes teve suas ideias refutadas, sendo que, o próprio autor revisou seus apontamentos. Isso sem falar que a obra lombrosiana está desde a década de 40 praticamente “caída em desgraça”. Em tempos de diversidade racial, cultural e até sexual, o estudo de tal teórico chega a soar como um retrocesso.

Não obstante o lado fascinante e temerário de sua teoria que faculta encontrar por características físicas um “cretino moral” em qualquer rosto, despertando o medo de ser apontado pela sociedade como um criminoso nato, o estudo do “cretino moral” tem por lastro de justificativa os aspectos históricos, filosóficos e doutrinários.

Sob o ponto de vista histórico percebe-se que até o advento de tal teoria não existia a idéia de um cretino moral, ou o psicopata como entende-se hoje. O homem criminoso abriu as portas para uma nova abordagem do estudo do fenômeno social que denominado crime. A prática da delinquência se restringia ao patamar moral, ou seja, o delinquente cometia o delito por ser simplesmente mal ou possuir intenções ruins. O pensador italiano foi o primeiro a entender que existiam delinquentes que sofriam de uma doença que poderia levá-los à prática do crime. Sua dedicação ao estudo do criminoso pelo viés psiquiátrico lançou bases para o reconhecimento do Direito Penal como ciência.

Prova do impacto de sua nova metodologia é que em 1885, realizou-se em Roma um Primeiro Congresso de Antropologia Criminal, e as teses e propostas de Lombroso obtiveram grande sucesso e reconhecimento científico. Esses dez anos transcorridos entre seu livro e o congresso demonstraram a rapidez com que se alcançava o "êxito científico" nas sociedades européias, ávidas por novidades, descobertas espetaculares e "gênios", à base de uma imprensa alimentada com os descobrimentos do fim do século XIX. (ELBERT, 2003)

O uso deturpado de suas teorias também validam a importância de seu estudo. O escritor George Santayana falava que aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo. Tal premissa torna obrigatório o conhecimento, ainda que superficial, da obra lombrosiana para lembrar que a ciência em sua aplicação deve possuir uma consciência moral, a fim de que a mesma não possa ser distorcida e manipulada para justificar atrocidades como o Holocausto. (SANTAYANA, 1905)

De fato, a validade da teoria de Lombroso era bastante ofuscada pelas novas portas de pesquisa e questionamentos que ela abria.  No campo filosófico é necessário compreender que tal Escola Criminal bebia das fontes do que representava a vanguarda do pensamento filosófico positivista no campo do Direito. Reuniam-se nela todas as influências e características do pensamento de Augusto Comte. Ao lado de Ferri e Garofalo, Lombroso ocupa papel central na formatação da idéia inicial da Criminologia, bem como na Escola Positiva do Direito Penal.

De fato, o modelo proposto pelos juristas que se aliaram ao movimento positivista respondia às necessidades da burguesia no final do século XIX. Esta havia se apoiado inicialmente em um Direito Penal Liberal que lhe havia permitido neutralizar a nobreza, limitando, através de um órgão legítimo, seu poder arbitrário. Agora, com o estabelecimento definitivo da nova ordem burguesa, era necessário encontrar outros recursos penais que assegurassem a superveniência da nova ordem social. A burguesia se sentia ameaçada, não mais pela nobreza e seu poder arbitrário, senão pelas "classes perigosas", ou seja, pelas classes menos favorecidas que levavam dentro de si o germe da degeneração e o crime. As idéias penais e criminológicas dos positivistas coincidem com esta preocupação central das novas classes privilegiadas e lhes proporcionaram um instrumento prático e teórico para afugentar o perigo que para a estabilidade social representavam os despojados. (ROMERO, 1999)

Os positivistas rechaçaram totalmente a noção clássica de um homem racional capaz de exercer seu livre arbítrio. O positivista sustentava que o delinqüente se revelava automaticamente em suas ações e que estava impulsionado por forças que ele mesmo não tinha consciência. (RABUFFETTI, 1999.)

As idéias defendidas por Lombroso acerca do "criminoso nato" preconizavam que, pela análise de determinadas características somáticas, seria possível antever aqueles indivíduos que se voltariam para o crime.

Por fim, o aspecto doutrinário, que muitas vezes não é compreendido por aqueles que nunca leram Cesare Lombroso, decodifica esse verdadeiro “DNA” do Direito Penal, que se não acata sua teoria no todo, acaba por validar seus questionamentos. As idéias de pensador sustentaram um momento de rompimento de paradigmas no Direito Penal e o surgimento da fase científica da Criminologia. Os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal rebateram a tese da Escola Clássica da responsabilidade penal lastreada no livre-arbítrio.

Se, naturalmente, com a sucessiva especificação das ciências, estas idéias revelaram-se passíveis de complementação - especialmente pela ciência sociológica, então em franca ascensão - Lombroso exerceu ainda por muito tempo, após as críticas que lhe foram feitas, importante influência no Direito Penal do mundo, sendo dos primeiros a defender a implantação de medidas preventivas ao crime, tais como a educação, a iluminação pública, o policiamento ostensivo - além de outras tantas ideias inovadoras referentes à aplicação das penas. Especialmente na América Latina, encontramos até os anos 1930 seguidores da Escola antropológica italiana.

Dentre aqueles que foram influenciados por suas ideias, temos Émile Zola, Anatole France, Kraepelin, Fernando Pessoa. No Brasil, o jusfilósofo Tobias Barreto, fundador da Escola do Recife, A chamada "vitimologia" também tem raízes em suas ideias, embora tenha conhecido melhores desenvolvimentos com as críticas da sociologia criminal - do influente aluno de Lombroso, o sociólogo-criminal socialista Enrico Ferri - à antropologia criminal lombrosiana, gerando uma nova ordem de estudos científicos sobre o crime: inicialmente, chamou-se sociologia criminal, e depois, criminologia como hoje nós a conhecemos.

Dentre um dos mais controversos seguidores das idéias de Lombroso no Brasil surge a figura do médico Raimundo Nina Rodrigues que, de tal forma foi influenciado por Cesare Lombroso, dedicou seu livro As Raças Humanas e a responsabilidade penal no Brazil:

[...] aos chefes da nova escola criminalista - Srs. Professores Cesare Lombroso de Turin, Enrico Ferri de Pisa e R. Garofalo de Nápoles...

Em homenagem aos relevantes serviços que os seus trabalhos estão destinados a prestar à medicina legal brazileira, actualmente simples aspiração ainda. (RODRIGUES, 1894, p. 23)

Muitas outras mudanças benéficas adotadas por legisladores criminais de todo o mundo derivaram dos estudos iniciados pioneiramente por Lombroso. Numa época em que, recorde-se, o Direito Penal fatigava muito a desvencilhar-se da teologia e da superstição, somente mais de um século depois do libelo iluminista de Beccaria pela humanização das penas surgiram os estudos antropológico-criminais pioneiros de Lombroso. Não se pode dizer que sua contribuição foi pouca e suas observações devem ser analisadas no contexto histórico-social no qual foram realizadas. A afirmação se a teoria lombrosiana está certa ou errada, assim, não tem utilidade científica.

6. Conclusão

Desta forma, encerra-se esta dissertação. Se para alguns talvez seja vista como proselitista, isso se deve à força das idéias do pensador e jamais à alguma pretensão de quem escreveu este TCC. Limita-se tal texto tão somente a demonstração do estudo de um assunto que apesar de ser controverso, ainda hoje ecoa nos anais do Direito.

O Direito enquanto ciência é fruto de um conjunto de valores e anseios de uma sociedade temporal. Dessa forma, qualquer interpretação ou valoração que ignore a conjuntura histórico-social do nascimento da norma jurídica estará fadada ao erro. Torna-se claro a partir desse axioma o quão injusto tem sido o julgamento de Lombroso. Àqueles que entenderem que a busca da Justiça é um exercício constante de aprimoramento de uma sociedade, perceberão que a dimensão do pensador italiano no campo jurídico ombreia indubitavelmente com Hamurábi, Moisés e Beccharia. 

BIBLIOGRAFIA

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HUGO, Victor. Os Miseráveis. Lisboa: Minerva, 1962.

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POSTEL, J.; QUÉTEL, C. Historia de la psiquiatría. México: Fondo de Cultura Económica, 1987.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, São Paulo: RT, 1999.

RABUFFETTI, M. Breve ensayo acerca de las principales escuelas criminológicas. Buenos Aires: Fabián J. Di Placido, 1999.

ROMERO, G. N. La evolución hacia una criminología radical. Buenos Aires: Fabián J. Di Placido, 1999.

SANTAYANA, G. A Vida da Razão. 1905. v.I


Autores

  • Edson de Sousa Brito

    Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (1999), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (2002) e doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2013). Atualmente é membro da Comissão Assessora de Área de Filosofia ENADE (INEP-MEC), pesquisador da Universidade Federal de Goiás, coordenador do curso de filosofia da Faculdade Phênix de Ciências Humanas e Sociais do Brasil e professor titular do Centro Universitário de Anápolis. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: ética, filosofia, educação, política e estado civil. CONTATO: [email protected].

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  • Leiff Soares de Oliveira

    Leiff Soares de Oliveira

    Acadêmico do curso de Direito da UniEVANGÉLCA de Anápolis.

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