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As restrições existentes na celebração de tratados internacionais no Direito Tributário

As restrições existentes na celebração de tratados internacionais no Direito Tributário

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O presente trabalho tem por objetivo analisar os aspectos concernentes a acordos internacionais firmados pelo Brasil que tratem de matérias de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios. O tema é de grande relevância devido à atual tendência dos países para a integração e regionalização, dentre os quais os latino-americanos, através do Mercosul. Como o Brasil segue a forma federativa, outorgando a cada um dos entes de direito público interno determinadas competências legislativas, há certos tributos cuja competência não pertence à União, mas aos Estados-membros e aos Municípios.

O tema abordado aqui não é recente, já tendo sido discutido por diversos doutrinadores, tanto na área de Direito Tributário, como na de Direito Constitucional e de Direito Internacional. Entretanto, é relevante ressaltar que há, ainda hoje, controvérsias a este respeito, de modo que o escopo deste estudo não é trazer uma posição pacífica, mas analisar criticamente as idéias já formuladas e emitir uma opinião.

Por fim, não se pretende aqui tratar do tema exaustivamente, mas apenas alcançar uma resposta para a questão de ser ou não possível ao Brasil firmar tratados sobre matérias de competência legislativa de entes que não a União.


Forma federativa

O Brasil adotou como forma de Estado o federalismo, sendo formado, como descrito na Carta Magna, pela "união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal".

Dessa forma, diferente do sistema unitário, em que, tanto as decisões políticas, como o poder para legislar, partem de um único centro sobre todo o território do Estado, no Brasil deve-se obedecer às diferentes competências atribuídas pela Constituição Federal a cada ente de direito público interno.

Assim, como ensina o grande mestre Geraldo Ataliba, "exsurge a Federação como a associação de Estados (foedus, foederis) para formação de novo Estado (o federal) com repartição rígida de atributos da soberania entre eles. Informa-se seu relacionamento pela ‘autonomia recíproca da União e dos Estados, sob a égide da Constituição Federal’ (Sampaio Dória), caracterizadora dessa igualdade jurídica (Ruy Barbosa), dado que ambos extraem suas competências da mesma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera, tal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes)".1


Da conclusão dos tratados internacionais

Ainda sob a égide do princípio federativo, a representação de nosso país se dá através da União, sendo os tratados firmados pelo Poder Executivo, como se depreende do inc. VIII do art. 84 da CF/88, in verbis:

"Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

......

VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional."

Assim, inicialmente, o Presidente da República assina o tratado. Após a assinatura, o mesmo passa por aprovação do Congresso Nacional, através de Decreto Legislativo, e, então, retorna ao Presidente da República, o qual, mediante Decreto presidencial, promulga-o. Após este processo interno, o tratado é ratificado.

É relevante observar os momentos distintos em que o tratado passa a gerar efeitos no âmbito interno e no internacional. O conteúdo do tratado apenas integra o ordenamento jurídico interno após o referido decreto presidencial, ou melhor, após sua publicação no Diário Oficial. Já no âmbito internacional, o tratado só é realmente tido como aceito pelo Estado signatário a partir do momento de sua ratificação.

Como ensina Guido Fernando Silva Soares, "da assinatura dos tratados, bilaterais ou multilaterais, não defluem, necessariamente, obrigações para os Estados signatários, reafirmando-se que o efeito mais evidente da assinatura é a imutabilidade de seu texto". 2 (grifo nosso)

Muitos afirmam, erroneamente, que a ratificação se dá através do Congresso Nacional. Na realidade, o ato de ratificação, em sendo um instituto de Direito Internacional, apenas é possível de ser realizado pelo Estado, através do Poder Executivo da União, como define o supracitado artigo da Constituição Federal.

Assim, o ato que compete ao Congresso Nacional é, assim, a aprovação referendária, que gera apenas efeitos internos, bastante diferente da ratificação.


Hierarquia dos tratados no plano interno

Diferente dos países em que se dá o Direito Comunitário — tal como na União Européia, onde os tratados firmados possuem força vinculante — no Brasil se formou, conforme decisões do STF, uma posição que iguala o tratado a leis ordinárias. Assim, seguindo o preceito de que lei posterior revoga anterior, um tratado pode ser revogado por qualquer lei ordinária federal.

É relevante ressaltar que muitos autores acreditam haver, no Direito Tributário, uma distinção em relação a tal posição, o que já vem sendo considerado pelos tribunais. Isso se dá pelo fato de o Código Tributário Nacional, em seu art. 98, ter determinado que "os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha". (nosso grifo). Dessa forma, os tratados teriam uma posição hierárquica superior à das leis, não podendo estas alterá-los, sendo inaplicável o preceito antes mencionado. Não obstante, tal artigo não pode ser tido como válido, justamente por tratar de matéria que não pode ser objeto de lei ordinária ou complementar.

Cumpre aqui destacar que a Lei nº 5.172/66, que dá redação ao CTN, ainda que formalmente lei ordinária, foi recepcionada pela Constituição Federal materialmente como lei complementar, devido ao fato de que no momento de sua criação não existiam as leis complementares, as quais tiveram início com a CF de 67/69.

Ora, todas as normas infraconstitucionais obtêm sua validade na Constituição Federal, a qual é a fonte de todas as normas integrantes do sistema jurídico de um país, ou, como afirmara Kelsen, "é o fundamento último de validade das normas jurídicas".3 Assim sendo, apenas à Lei Maior cabe determinar a hierarquia das normas jurídicas, de modo que não podem as leis infraconstitucionais, sejam elas ordinárias ou complementares, ter como objeto tal conteúdo.

Assim, apesar de não concordarmos com os recentes julgados dos tribunais, que igualam os tratados às leis ordinárias, somos obrigados a afirmar que às normas tributárias deve-se aplicar a mesma determinação, de modo que em nada se diferenciam estas das normas que tratam de outras matérias, pela clara inconstitucionalidade do supracitado artigo do Código Tributário Nacional.


Da natureza jurídica do tratado

Existem diversas tentativas de definição dos tratados, bem como de sua classificação. Assim, há alguns doutrinadores que propugnam a classificação em tratados-leis e tratados-contratos, de modo a distinguir tratados que impõem obrigações idênticas a todas as partes, criando normas gerais, e tratados que se assemelham a contratos, geralmente bilaterais, instituindo direitos e deveres recíprocos aos Estados, não criando normas jurídicas. Acreditamos não ser correta tal distinção.

A lei, em sentido amplo, é sempre compulsória, não podendo alguém simplesmente decidir não cumpri-la, ainda que existam aquelas normas denominadas dispositivas. Ocorre que estas normas não podem ser simplesmente consideradas não-obrigatórias. Ainda que permitam seus destinatários agir de forma diversa à descrita por ela, tal norma possui força compulsória, de modo que a opção outorgada a seus destinatários deriva dela mesma. Apenas a lei, com sua força vinculante, pode permitir ou não determinadas atitudes ou deliberações. Assim, a lei é imposta aos cidadãos, não sendo sua eficácia objeto de aceitação por parte dos mesmos.

Já o contrato é necessariamente manifestação de vontade. O contrato nunca é imposto às partes, mas a sua compulsoriedade deriva de sua aceitação, que determina serem as partes obrigadas ao seu conteúdo. O mesmo se dá com os tratados internacionais. Os tratados não são impostos ao Estado, sob pena de ferir sua soberania. Para que um Estado se obrigue perante outro deve haver impreterivelmente manifestação de vontade, isto é, faz-se necessário que tal Estado aceite o conteúdo do tratado para que seus dispositivos tenham eficácia sobre ele.

Assim, o fato de traduzirem os tratados normas gerais ou particulares não implica em distingui-los em lei e contrato, mas apenas demonstra possuírem conteúdos diferentes.

Outrossim, Guido Fernando Silva Soares, apesar afirmar a distinção supramencionada, confessa que "as responsabilidades por inadimplemento de obrigações internacionais, pelos destinatários do Direito Internacional Público, em particular os Estados, são as mesmas, sejam originárias de uma norma do Direito Internacional Público Geral, ou contida num tratado geral, um tratado-lei, na terminologia de Triepel, sejam de um tratado particular, quer dizer, um tratado-contrato, ainda segundo aquele mestre alemão".4

O que queremos dizer aqui é que os tratados, independente de tal distinção, derivam de manifestação de vontade dos Estados signatários e criam sempre deveres aos mesmos, qual seja, cumprir o pactuado, seja fazendo algo ou se abstendo de fazê-lo, sob pena de sofrerem as devidas sanções internacionais.

Não resta dúvidas de que há tratados que regulam interesses recíprocos dos Estados de modo concreto, enquanto que há outros que visam fixar normas gerais. Entretanto, como acima demonstrado, todos eles são iguais quanto a sua natureza jurídica, de modo que o que muda é meramente o seu conteúdo. Tal distinção ultrapassa os limites do Direito, atingindo uma classificação muito mais política ou operacional do que jurídica, haja vista que seus pressupostos e efeitos são os mesmos.

Como afirma Orlando Gomes, referindo-se a institutos jurídicos internos "existem acordos patrimoniais que não são considerados contratos porque não originam, para as partes, obrigações que modifiquem a situação preexistente, mas se limitam a estabelecer regras a serem observadas se os interessados praticam os atos prefigurados. (...) Esses negócios jurídicos são, porém, autênticos contratos". 5 Dessa forma, a melhor definição para a natureza jurídica dos tratados seria a de um negócio jurídico, mais especificamente um acordo ou contrato.


Direito Interno e Direito Internacional

É importante ter em mente que existem dois planos normativos: o plano internacional, regido por tratados, que se traduzem em obrigações assumidas por pessoas de Direito Internacional, e tutelado com sanções e cominações específicas; e o plano interno, onde as normas constituem um sistema jurídico, que obriga pessoas, físicas ou jurídicas, de direito interno, incluindo nestas a União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal.

Definimos acima a natureza jurídica do tratado como sendo um acordo, um contrato. Como bem afirmou Kelsen, "com o termo ‘contrato’ se designa um estado de fato da ordem jurídica interna. Porém o mesmo estado de fato existe igualmente sob o nome de ‘tratado’ no direito internacional. Em ambos os casos se colocam, em princípio, os mesmo problemas". 6

Ocorre que o tratado possui tal natureza apenas no âmbito internacional. Quando o tratado integra o ordenamento jurídico interno, ele deixa de ser um negócio jurídico, passando a fazer parte do sistema jurídico do País.

Devemos notar que o tratado não é então um único instituto, mas dois, que se utilizam da mesma forma de expressão. Ou seja, o texto do tratado é um só, mas tal texto traduz dois atos diversos, em momentos e em planos diferentes.

A partir do momento em que se dá a publicação do decreto presidencial no Diário Oficial, o ordenamento jurídico do país passa a possuir normas antes inexistentes. Tais normas utilizam como veículo de comunicação o próprio texto do tratado. Deve-se perceber, então, que o processo pelo qual passa o tratado, tendo como último ato o da publicação do decreto presidencial no Diário Oficial não é uma transformação, mas uma criação. Assim, não se dá exatamente uma integração do tratado ao ordenamento jurídico interno, mas o que ocorre é a criação de uma norma, com processo legislativo próprio, cujo conteúdo fora determinado no tratado celebrado pelo Brasil.

Não se trata, portanto, de um único ato jurídico que cria duas situações diferentes, mas realmente consiste em dois atos distintos, cada qual com sua natureza e processo próprio: o tratado lato sensu, acordo que obriga entes de direito público externo, sendo, portanto, de natureza negocial; e o tratado stricto sensu, ato normativo cujos destinatários são as pessoas do direito interno, de natureza jurídica normativa. Dessa forma, o primeiro é fonte do DI, enquanto que o segundo é fonte do direito interno.

É importante ressaltar que há alguns que pretendem que o tratado não existe no ordenamento jurídico interno, mas apenas no âmbito internacional, afirmando que é o decreto presidencial que constitui norma interna. Tal posição não é, entretanto, a mais adequada, pois o decreto presidencial apenas deriva de ato do Poder Executivo, diferente do processo pelo qual passa o tratado. Ora, o decreto presidencial é apenas um dos atos necessários para a criação da norma jurídica de conteúdo do tratado (em seu sentido lato). Assim, o tratado stricto sensu, ato jurídico interno, deriva de processo complexo que envolve não só o Presidente da República, mas também o Congresso Nacional.

A título de exemplo, se um tratado determinar que computadores devem ter isenção ou imunidade na legislação tributária, para os Estados signatários existirá um acordo, mediante o qual eles se obrigam a não cobrar dos contribuintes ICMS sobre operações relativas a computadores, enquanto que para as pessoas de direito interno, sejam físicas ou jurídicas, tal acordo não existe. O que existirá é, após o devido processo legislativo, uma norma jurídica, a qual exclui da hipótese de incidência da norma tributária que instituiu o referido imposto operações envolvendo computadores.

Tal distinção passará a ter relevância no momento em que analisarmos as responsabilidades dos entes jurídicos no plano interno e internacional.


O tratado no plano internacional

Responsabilidade dos Estados signatários

Como determina a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 46, "um Estado não poderá invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados".

Apesar de referida convenção não ter sido ainda aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro, o Brasil não pode se escusar de tal regra. Ora, um tratado internacional, assim como qualquer outro contrato ou acordo, possui como fim o cumprimento de seu objeto por parte de seus sujeitos, de modo que, se firmado por um país, deve ele ser obedecido, sob pena de cominação de sanções devidas.

Não se pode, ainda, alegar a soberania nacional. Ora, ao firmar um tratado, o Estado signatário assume internacionalmente uma obrigação, cujo efeito é meramente o dever de cumpri-lo. Assim, ao celebrar um tratado, o Estado deve levar em conta seu sistema jurídico interno, prevendo quaisquer eventos que venham a impossibilitá-lo de cumprir o pactuado.

Ainda tendo em vista a existência de dois planos — interno e internacional — devemos notar que não importa aos Estados, sujeitos de direito internacional, o sistema jurídico interno dos outros. Assim, não interessa a um Estado o sistema hierárquico normativo determinado pela Constituição de outro Estado signatário, de modo que este não pode utilizar qualquer dispositivo em sua Constituição ou em qualquer outro ato normativo interno, para se eximir de responder pelas obrigações firmadas. Ora, o que existe para os Estados é apenas o acordo firmado (tratado lato sensu), não lhe importando a forma adotada pelos outros para sua integração ao sistema jurídico, isto é, não sendo relevante a feição que tomará o tratado stricto sensu, como ato jurídico no ordenamento interno.


O tratado no plano interno

responsabilidade da União

Deve-se, então, questionar a legitimidade da União para firmar tratados. Cumpre observar que a mesma assume responsabilidades, tanto perante as pessoas de direito externo como perante as pessoas de direito interno.

Também devemos lembrar que a União não possui existência internacional, apenas exercendo internacionalmente a representação do Brasil. Assim, tecnicamente não possui a União uma dupla responsabilidade. Há, no plano internacional, a responsabilidade do Brasil, como Estado que é, perante as pessoas jurídicas de direito internacional e, no plano interno, a responsabilidade da União perante as pessoas de direito interno.

Assim, apesar de a União possuir, como representante do Estado brasileiro, legitimidade para assumir qualquer obrigação e para firmar qualquer tratado no plano internacional, o mesmo não se dá no plano interno, onde devem ser observadas as restrições impostas pela Constituição Federal.

Como já visto, o tratado no plano interno (stricto sensu) possui caráter normativo. Como tal, deve obedecer aos mesmos requisitos determinados na Carta Magna para os outros atos normativos, entre eles, a distribuição de competências legislativas.

Ora, os tratados, por serem firmados pela União são de nível federal, possuindo no Brasil, conforme interpretações dos tribunais, força de lei ordinária federal. Assim, a União apenas pode "criar" tratados stricto sensu nas matérias que concernem a sua competência, não podendo ultrapassar os limites impostos pela Carta Constitucional, invadindo as competências legislativas dos Estados-membros e Municípios.

Dessa forma, a partir do momento em que fica impedida de criar tais normas, sob pena de violação do princípio federativo, a União não pode assumir internacionalmente a responsabilidade sobre as mesmas matérias, ficando-lhe vedada a celebração de tratados cujo conteúdo seja de competência legislativa dos Estados-membros e Municípios.

Importante é lembrar que tal impedimento é apenas interno, sendo válido internacionalmente o consentimento do Estado a respeito de qualquer matéria. Assim, enquanto que o problema no âmbito interno surge no momento em que a União "cria" o tratado stricto sensu, no âmbito internacional só haveria conflitos a partir do momento em que se declarasse inconstitucional o tratado, tirando-lhe a eficácia interna e fazendo, conseqüentemente, com que o Estado recaísse em inadimplemento ou violação no âmbito internacional.

Ademais, deve-se observar que a soberania, como atribuição outorgada aos Estados no plano internacional, da mesma forma que é utilizada para assumir obrigações no plano internacional, possibilita ao Estado a decisão de não firmar tratado de que não queira participar.

Deve, portanto, a União, ao firmar um tratado, levar em conta a existência dos dois planos existenciais — interno e internacional —, observando os impedimentos existentes em ambos, isto é, deve ela observar tanto o dever de adimplir a obrigação assumida internacionalmente, como a limitação do campo de abrangência da competência outorgada à mesma para legislar no plano interno.


Sistema Constitucional Tributário

Muito elogiada pela doutrina, a Carta de 88 define com precisão a competência para legislar sobre tributos, determinando o ente competente, a forma como a competência deve ser exercida e os limites para o exercício de tal atribuição.

Assim há tributos cuja competência legislativa é exclusiva da União, outros dos Estados-membros e outros dos Municípios.

Deve-se observar, entretanto, que essa distribuição de competências não segue uma forma horizontal, mas vertical, tendo sido outorgada à União a competência para legislar sobre normas gerais de direito tributário, através de lei complementar (art. 146, III, CF/88). Assim, ainda que a competência para legislar sobre determinado tributo seja exclusiva dos Municípios, tal competência limita-se à instituição do referido tributo e à definição de normas que não aquelas já definidas pela União ou pela própria Constituição Federal.

Conforme ensina Alexandre de Moraes, "pelo princípio da predominância do interesse, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral ao passo que aos Estados referem as matérias de predominante interesse regional, e aos municípios concernem os assuntos de interesse local". 7

Outrossim, é de extrema lucidez a norma constitucional que outorga à União a competência para legislar sobre as normas gerais de direito tributário, pois, sendo o tributo o principal meio de arrecadação pecuniária do Estado, a livre atribuição legislativa aos Estados-membros e aos Municípios geraria tamanha insegurança jurídica, que cada qual, visando interesses políticos e econômicos, legislando em favor próprio, conduziria o sistema tributário a uma guerra fiscal maior do que a atual, a ponto de tornar-se incontrolável.

Como bem afirmou o mestre Gilberto de Ulhôa Canto, "em que pesem suas muitas deficiências, o CTN tem prestado ao Brasil o relevantíssimo serviço de amparar os contribuintes contra a arbitrariedade e a prepotência fiscais, justamente porque formula diversos princípios e regras que submetem a administração tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, à observância de critérios uniformes em matéria que tem a ver com as normas constitucionais, que dificilmente se poderia impor a mais de 5.000 entes políticos diferentes, se a cada um deles fosse lícito entender e aplicar certas formas básicas que lhe aprouvesse".8

Assim, faz-se necessário uma unificação das normas gerais para que se obtenha uma razoável harmonia entre os entes tributantes, de forma a controlar eventuais distúrbios causados por uma incessante busca por arrecadação, da qual sairia o contribuinte como o principal afetado.


A problemática das competências

Haja vista a competência exclusiva outorgada pela Constituição Federal de 1988 aos Estados-membros e aos Municípios para legislar sobre determinados tributos, fica a União limitada a apenas determinar-lhes regras gerais.

Para que fique clara a competência legislativa de cada ente tributante, vale elencar os principais impostos atribuídos a cada um:

União: imposto sobre importação de produtos estrangeiros (II); imposto sobre exportação de produtos nacionais (IE); imposto sobre a renda (IR); imposto sobre produtos industrializados (IPI); imposto sobre operações financeiras (IOF); imposto sobre propriedade territorial rural (ITR).

Estados e Distrito Federal: imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD); imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS); imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA).

Municípios: imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (IPTU); imposto sobre transmissão inter vivos, por ato oneroso (ITBI); imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS ou ISSQN).

Ora, pelo exposto em tópicos anteriores, se a União não pode fixar normas sobre matérias que não sejam de sua competência, também não pode celebrar tratados a respeito das mesmas, sob pena de responsabilidade no âmbito interno.

Deve-se lembrar ainda que também não possuem os Estados-membros e Municípios legitimidade para firmar tais tratados, devido ao fato de os mesmos não possuírem representação internacional.

Notamos, assim, um grande conflito entre o sistema jurídico interno e o Direito Internacional, que consiste justamente na impossibilidade de o Brasil tomar parte em tratados concernentes a matérias de competência legislativa de outros entes que não a União.


Análise da doutrina de opinião oposta

Há na doutrina muitos que afirmam a possibilidade de a União firmar tratados internacionais, ainda que sobre matérias de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios. Tal posição se funda na idéia de que a União, por representar o Estado brasileiro, tem total legitimidade para firmar tais tratados, haja vista estar atuando em nome da nação. Chega-se ainda a afirmar que, por o tratado passar pela aprovação do Congresso Nacional, o qual é parcialmente formado por representantes dos Estados-membros, estes estariam, também, aprovando o tratado em questão.

Ora, tal assertiva não pode ser verdadeira. Tal posição não passa de um pretexto para violação da autonomia outorgada aos Estados-membros, Municípios e Distrito Federal, assim como ao princípio federativo, tutelado pela Carta Magna.

Se assim fosse considerado, não seria necessário um tratado para que a União interviesse na competência dos outros entes tributantes, mas bastaria uma lei ordinária federal, visto que esta também passa pela aprovação do mesmo Congresso Nacional.

Esta visão simplista ignora o complexo sistema traduzido pela Constituição Federal para a manutenção do federalismo, que, ao outorgar competências legislativas aos Estados-membros, concede-lhes total autonomia para criar leis mediante processo legislativo próprio.

Não resta dúvidas, ainda, de que ao firmar tratados internacionais a União está atuando em nome da nação. Entretanto, o mesmo se dá quando, mediante lei complementar, a União legisla sobre normas gerais de direito tributário. Mas ainda neste caso, a Constituição Federal determina a limitação da atuação da União, não sendo possível, mesmo que através de lei complementar, mesmo que em nome da nação, a violação de tal norma constitucional.

A União desempenha, sem dúvida, importante papel em um Estado Federal, mas, ainda assim, não pode violar o princípio federativo e o rígido sistema imposto pela Carta Magna, que determina a competência de cada ente público para legislar.

Os que acreditam que, por representar o Estado brasileiro no plano internacional, a União pode firmar tratados internacionais livremente, sem qualquer observância às normas constitucionais, ignoram que os tratados internacionais firmados pelo Brasil representam, no plano interno, normas jurídicas e, como tal, devem obedecer a todos os requisitos para o processo legislativo, assim como as competências determinadas pela Constituição Federal.

Ora, se a União simplesmente decidisse emitir leis ordinárias ou leis complementares tratando de matéria de competência legislativa dos Estados-membros ou dos Municípios, não haveria dúvidas quanto à inconstitucionalidade de tais atos, ainda que afirmado seu interesse nacional. Então por que tentar validar tais atos quando se trata de tratados internacionais?

O operador do Direito deve, sem dúvida, encarar o Direito como um sistema, buscando sempre uma solução para todo conflito de normas. Entretanto, não pode utilizar tal escusa para ignorar os princípios definidos pela Constituição Federal. Nota-se claramente um conflito existente entre o sistema jurídico interno e o Direito Internacional, que chega a inviabilizar, de certa forma, a integração do Brasil com outros países, mas, ainda que visando uma solução para tal dificuldade, não podemos ultrapassar os limites impostos pela Lei Maior.


Tratados Internacionais e o Direito Tributário contemporâneo

Surge uma grande dificuldade para o país em face dos outros entes de direito público externo, pois, se um tratado destes é firmado pelo Brasil, ele tem plena validade no Direito Internacional, de modo que a obrigação é licitamente assumida pelo país. No entanto, o mesmo fica impedido de cumpri-la, haja vista a inconstitucionalidade do ato jurídico interno que internalizar os preceitos previstos pelo tratado.

Devemos crer que o conflito supracitado é inaceitável em uma época em que a globalização alcançou tais níveis que já caminhamos, ainda que a passos lentos, a um mercado comum, havendo, inclusive, previsão constitucional para tanto (art. 4º):

"A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações."

No sistema adotado pela Carta de 88, a competência legislativa sobre os tributos denominados de "impostos sobre o consumo" foi outorgada aos Estados-membros e aos Municípios.

Diferente de outros países que adotaram um único imposto sobre o consumo — como é o caso dos países europeus, que possuem o Value Added Tax (ou IVA - imposto sobre valor agregado), de competência federal — no Brasil o imposto sobre consumo foi dividido em dois, quais sejam o ICMS e o ISS.

O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que incide sobre operações mercantis, serviços de transporte interestadual e intermunicipal e serviços de comunicação, é de competência legislativa dos Estados-membros; e o ISS ou ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), que incide sobre quaisquer serviços que não aqueles abrangidos pela hipótese de incidência do ICMS, é de competência legislativa dos Municípios, apenas cabendo tal competência à União no caso de existência de Territórios Federais — que integram a União, não possuindo autonomia própria —, os quais não existem nos tempos atuais.

Ora, como imposto manifestamente mais relevante ao país, o imposto sobre o consumo não pode ficar de tal forma alheio ao plano internacional. Como pode ser possível um mercado comum sem um mínimo de harmonização das normas a respeito de tal tributo?

Faz-se necessário, portanto, repensar a estrutura do atual sistema constitucional, de modo, ou a alterar a atual distribuição de competências legislativas, concentrando o "poder de tributar" nas mãos da União, ou a modificar o sistema vigente de integração dos tratados internacionais.


Conclusão

O aqui afirmado de que se devem analisar os tratados em sua dicotomia, como dois atos distintos, não pode ser considerado válido no Direito Internacional para todos os países, mas apenas para países que adotam o mesmo sistema de "integração de tratados" que o Brasil.

O Direito Internacional, diferente das outras áreas do Direito, possui ainda conceitos muito vulneráveis, não sendo utilizados pelo seu rigor científico ou pela noção de justiça, mas sim como instrumentos de conveniência dos Estados, de tal modo que devemos crer que possui ele, até o momento, um caráter muito mais político do que jurídico.

Ademais, o DI encontra dificuldades justamente por ser demais avançado à atual visão que se tem de Estado, assim como de soberania. Por esse motivo cada Estado adota uma posição e uma maneira diferente de encarar, tanto os tratados, como as responsabilidades perante os mesmos. Segue o Brasil, assim, uma posição extremamente tradicional e arcaica em relação ao DI, a partir do momento em que iguala a força dos tratados à das leis ordinárias, ignorando completamente sua responsabilidade perante os outros Estados sobre as obrigações assumidas internacionalmente.

Dessa forma, partindo da premissa de que o Brasil segue um sistema dualista, o qual mantém em planos diferentes as regras internacionais e as normas internas, deve-se acreditar que o tratado não é um único ato visto de formas diversas no âmbito interno e no internacional, mas traduz a existência de dois atos distintos, sendo no âmbito interno não um acordo de vontades, mas uma norma jurídica, de criação da União, que como tal deve obedecer aos princípios e atribuições delineados pela Constituição Federal.

Vemos, então, apenas possível a celebração de tratados internacionais pelo Brasil de matérias que não sejam de competência legislativas da União em um cenário em que o direito interno e o DI se integrassem, onde as obrigações assumidas fossem respeitadas, o que apenas se daria após o desenvolvimento das próprias noções de DI, como se dá na União Européia, onde existe uma clara tendência a uma entidade supranacional de modo a alterar os conceitos de Teoria Geral do Estado, principalmente o de soberania nacional.

No contexto atual, portanto, somos obrigados a acreditar ser negativa a resposta à questão inicialmente formulada, afirmando ser impossível a celebração de tratados internacionais pelo Brasil cujo conteúdo seja matéria de competência legislativa dos Estados-membros ou Municípios, de modo que todos os argumentos utilizados para validar tal ato, ou recaem na extrajuridicidade, ou não correspondem ao sistema vigente no país.


Notas

1ATALIBA, Geraldo apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 267.

2Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 69.

3KELSEN, Hans apud COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 28.

4ob. cit. p. 65.

5Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.10.

6KELSEN, Hans apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 271.

7ob. cit. p. 287.

8CANTO, Gilberto de Ulhôa apud CASSONE, Vittorio. Lei Complementar e Lei Ordinária - Hierarquia Possível, in 8º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário. São Paulo: IOB, 1999. p. 178.


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SOARES, Guido Fernando Silva, Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OZAI, Ivan Ozawa. As restrições existentes na celebração de tratados internacionais no Direito Tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3713. Acesso em: 26 abr. 2024.