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Mutação constitucional

Mutação constitucional

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SUMÁRIO: Introdução; 1. Constituição e sociedade: Uma análise superficial; 2. Supremacia da constituição, 2.1. Rigidez Constitucional, 2.2. Continuidade do ordenamento constitucional e Segurança Jurídica; 3. Mecanismos de alteração do texto constitucional, 3.1. Formais, 3.1.1. Emenda Constitucional, 3.1.2. Revisão Constitucional, 3.2 Informais, 3.2.1. Mutação Constitucional, 3.2.1.1. Hipóteses Doutrinárias, 3.2.1.2. Nosso Entendimento, 3.2.1.2.1. Mutações Constitucionais "Puras", 3.2.1.2.2. Mutações Constitucionais "Impuras", 3.2.1.2.3. Concluindo sobre a Classificação, 4. Conclusão; 5. Bibliografia


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo o estudo do mecanismo de alteração informal das Cartas Políticas, as "mutações constitucionais". De forma despretensiosa, aproveitamos as considerações efetivadas sobre o fenômeno jurídico para inserirmos uma nova visão sobre o mesmo, que deve servir, se alcançado nosso intuito, para acirrar e diversificar as discussões sobre o tema.

Num primeiro momento, em nosso estudo, procuraremos demonstrar a intrínseca relação existente entre a Carta Fundamental e a sociedade que ela regula, mais do que isso, postaremos nossa atenção na necessidade de alteração dos dispositivos constitucionais sempre que se verificar a evolução do pensamento social, o que importa dizer, adequar a constituição à dinâmica ininterrupta da sociedade.

Analisando institutos jurídicos importantes no estudo das Constituições (especialmente a brasileira), discorreremos rapidamente sobre temas como a "supremacia da constituição", "rigidez constitucional" e necessidade de "continuidade" do ordenamento jurídico fundamental.

O fluir do tema nos levará aos mecanismos de alteração da Lex Legum, impondo-nos a verificar quais os instrumentos formais de alteração, para, num segundo passo, iniciarmos a desbravar o instigante assunto da mutação constitucional, mecanismo informal de modificação da Constituição.

Desenvolvendo o tema a que nos propusemos cuidar, indicaremos o variado entendimento doutrinário a respeito e tomaremos a liberdade de declinar o nosso entendimento sobre o instituto.

Sem mais delongas, passemos a desenvolver o estudo das mutações constitucionais.


1.CONSTITUIÇÃO E SOCIEDADE: UMA ANÁLISE SUPERFICIAL

"Toda lei que o povo não haja ratificado pessoalmente é nula, não é lei."

J.J.Rousseau.

Para o estudo do tema ora proposto entendemos ser imprescindível verificar o ponto de contado existente entre o direito e a sociedade, haja vista que, como se poderá observar ao longo desta monografia, de crucial importância para a análise da "mutação constitucional".

Evidentemente que não é o intuito do presente trabalho, nem objeto, discorrer filosoficamente sobre a questão direito-sociedade, o que aqui se propõe é o superficial manejo do tema com o propósito de esmiuçar o reflexo jurídico que possa advir de eventuais alterações do entendimento social acerca de determinada matéria.

Efetivadas as devidas considerações trazemos à colação entendimento do Prof. Paulo Bonavides sobre a impropriedade do isolamento da ciência jurídica do corpo social. Segundo o Mestre: "O direito não é ciência que se cultive com indiferença ao modelo de sociedade onde o homem vive e atua. Não é a forma social apenas o que importa, mas em primeiro lugar a forma política, pois esta configura as bases de organização sobre as quais se levantam as estruturas do poder." [1]

E prosseguindo, arremata o mesmo Prof.: "Trata-se, ao mesmo passo, de estruturas e bases inarredavelmente tributárias de uma certa tábua de valores, que definem a ideologia, o direito e a concepção de justiça vigentes em cada período da História." [2]

Portanto, entendimentos filosóficos à parte (e.g., o positivismo de Hans Kelsen), denota-se que existe uma rica e fluída troca de energia entre o direito e o corpo social. Sendo aquele criado para regrar este, assim o fará no interesse último da sociedade, com a sempre implícita finalidade de alcançar o bem comum, sob pena de, assim não o fazendo, restar duramente questionada a sua utilidade.

"Um poder divorciado da sociedade e hostil à soberania popular tem por única alternativa a força com que manter a obediência e a dominação". [3] Questiona-se: por que manter um poder, ou um ordenamento, dissociado da realidade social? E mais, por que usar a força para impor sua observância?

A resposta aos questionamentos formulados são encontrados em ordenamentos que tiveram seus fins degenerados e atendem aos interesses de uma minoria e não do corpo social. É ilógico o divórcio entre direito e sociedade, é uma contradição em si.

Então o que se conclui é que o direito não deve ser criado em um recipiente hermeticamente fechado, ao contrário, deve deitar raízes na fertilidade dos relacionamentos sociais, sugando daí a sua força e o seu poder coercitivo, a sua obrigatória observância, em suma, o fundamento de validade do ordenamento jurídico em cujo ápice [4] encontra-se a Constituição.

"O fundamento da Constituição não é e nem pode ser, portanto, nenhuma norma jurídica prévia ou superior. /.../ a norma constitucional (Constituição), que serve de base a todo o sistema jurídico, apóia-se, em última instância, em "algo superior e anterior a todo direito estabelecido", sobre um "fenômeno real de existência política". A base, o fundamento último de um sistema de normas jurídicas não é, portanto, em última análise, algo normativo, mas algo real: a vontade social, que dá integração à comunidade política, imprimindo-lhe certas diretivas. Esta "vontade social" não é aquela entidade misteriosa, metafísica, do romantismo político, mas um simples "processo", uma resultante, um equilíbrio das vontades individuais existentes no interior do Estado." (5)

Esse entrosamento entre direito e sociedade, o reflexo de um no outro, é o único meio viável a legitimar um ordenamento jurídico constitucional, pois "a sociedade em seus derradeiros fundamentos, tem mecanismos autônomos de ação e resistência, sendo em última análise a instância final das decisões supremas." [6]

"Em verdade, não houve nem haverá jamais uma Constituinte ou um poder com a força, /.../, de fazer o que é injusto se tornar justo e, muito menos, o que está fixo nas leis da sociedade e na essência do real se modificar ao capricho de um arbítrio ou de uma determinação irracional." (7)

Conclui-se de todo o articulado até o momento a impropriedade de se instituir um ordenamento jurídico dissociado do corpo social, dos interesses prementes da sociedade, valendo ressaltar que "não haverá neste País direito constitucional democrático enquanto o lado jurídico da Constituição estiver em desacordo com o lado político, enquanto o Estado não exprimir a vocação da alma coletiva, enquanto perdurar a menoridade do povo soberano, enquanto a legitimidade do corpo social não prevalecer sobre a legalidade do Estado na fundamentação dos comportamentos e das instituições." [8] (g.n.)

Portanto observado o necessário entendimento entre corpo social e direito, entre Soberania Popular e Constituição, é inarredável a importância de que referido "entendimento" perdure no tempo, ou seja, que o ordenamento jurídico constitucional continue cumprindo a sua finalidade de expressar a vontade da "alma coletiva".

Como a sociedade é dinâmica e refaz seus entendimentos (ou constrói outros) com o passar do tempo, o ordenamento constitucional deve acompanhar essa evolução do pensamento social sob pena de ver-se tolhido do fundamento que lhe garante vivacidade, qual seja, a soberania popular.

Assim sendo, torna-se indispensável que a Constituição (expressão maior do ordenamento jurídico) seja provida de mecanismos que a possibilitem acompanhar os desejos, anseios e pensamentos da sociedade que regra. E é exatamente a possibilidade de alteração do conteúdo das normas constitucionais que será objeto da nossa atenção, tamanha a sua importância, como pode-se notar pelas considerações já delineadas.

Antes de ingressarmos no cerne da questão que move esse trabalho, tracemos algumas rápidas considerações acerca das Constituições, pano de fundo para a análise das mutações constitucionais.


2.SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

Como anotamos no tópico anterior, o ordenamento jurídico se desenvolve nutrindo-se da seiva advinda da sociedade. É necessária uma perfeita simbiose entre a sociedade e o direito para que ambos possam prosperar juntos, alcançando as finalidades específicas que lhe são inerentes.

A materialização desse entendimento estabelece a Constituição de um determinado País. É neste documento jurídico que restará estabelecido os anseios, as idéias, o pensamento de um povo. Sendo assim, o Texto Constitucional deverá pairar acima de todo o ordenamento jurídico, que, necessariamente buscará a validade de suas normas naquele documento.

Fruto de intensos debates e discussões políticas, a Constituição, quando reflexo dos anseios sociais, é fundamento indispensável para a validade dos atos praticados sob sua órbita; o Texto Supremo, depois de redigido e aprovado, traça um caminho que não admite desvios ou atalhos, deve ser seguido à risca em obediência ao que foi determinado pelo detentor último de todo o Poder, o povo.

Para o abalizado jurista e Prof. José Afonso da Silva "... a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação as demais normas jurídicas." [9]

2.1.Rigidez Constitucional

Para alguns doutrinadores a supremacia da constituição deriva diretamente da sua rigidez, é dizer, o fato das normas constitucionais (na "constituição rígida") necessitarem de procedimento especial, mais gravoso, para alterar suas regras seria o diferencial que garante supremacia à Carta Política.

Para que não nos adiantemos demasiadamente, é interessante verificar o que se tem por rigidez constitucional, bem como o que referido instituto interessa para o estudo do tema em foco.

Salienta o Prof. Alexandre de Moraes que "rígidas são as constituições escritas que poderão ser alteradas por um processo legislativo mais solene e dificultoso do que o existente para a edição das demais espécies normativas (por exemplo:CF/88 – art. 60);". [10]

Logo, parece-nos indubitável que a rigidez de uma constituição ajuda a configurar a supremacia das suas normas, entretanto, d.m.v., não consegue, por si só, angariar à mesma tal status, é dizer, o simples fato de uma constituição ser rígida não lhe garante a observância como norma suprema.

Entendemos ser mais correto afirmar que a rigidez constitucional ajuda a conferir maior estabilidade e segurança às constituições, vedando que se altere o que foi estatuído sob intenso debate na Assembléia Constituinte, mediante a aprovação de uma lei ordinária numa véspera de feriado em que compareceram ao Congresso Nacional somente os parlamentares diretamente interessados na aprovação da lei.

Sendo assim, temos que a supremacia constitucional é importante porque expressa a soberania popular, o reflexo dos ideais de um povo. A rigidez constitucional, por sua vez, implica na garantia de que a vontade soberana cravada na constituição somente será alterada por meio de processo mais dificultoso, o que implica dizer (ou deveria), que o Texto Maior somente será alterado após ser intensamente discutida a proposta que contar com maioria significativa do parlamento.

Em sendo assim, como explicar o fenômeno da mutação constitucional ante a rigidez da Carta Magna brasileira de 1988?

Antes de respondermos ao questionamento, prossigamos analisando as questões elementares que circundam o tema e que nos auxiliarão a desvendar tal paradoxo.

2.2.Continuidade do Ordenamento Constitucional e Segurança Jurídica

As constituições, quando elaboradas, têm ínsitas em si a "vocação à continuidade" [11]. Não é lógico que se faça uma constituição com tempo determinado, com data certa para acabar, para cessar seus efeitos. A referida "vocação à continuidade" é indispensável para a estabilidade e segurança social, pois garante a mantença de direitos incorporados ao corpo social, amplamente debatidos.

Note-se que com a importante característica da continuidade da constituição não se quer imputar a eternidade a esta. Evidentemente, como já assinalado no capítulo primeiro, o Texto Constitucional é o retrato político, histórico de uma determinada sociedade, que, com o tempo, não mais será o mesmo, fazendo-se necessário o acompanhamento da mesma dinâmica por parte da constituição.

Com a maestria habitual o insigne prof. José Joaquin Gomes Canotilho [12], discutindo o problema dos limites materiais às revisões das constituições, bem capta o problema a que aludimos acima: "O verdadeiro problema levantado pelos limites materiais do poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a idéias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? A resposta tem de tomar em consideração a verdade evidente de que nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos, nenhuma constituição evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há também que se assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da constituição pelos órgãos de revisão, designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. Não deve banalizar-se a sujeição da lei fundamental à disposição de maiorias parlamentares de ‘ dois terços’."(g.n.)

Portanto, fixemos: é importante que as constituições não tenham termo final de validade, são vocacionadas à continuidade como uma das formas de assegurar a estabilidade e segurança social; a continuidade que impregna as constituições não implica em impossibilidade de mudança, ao contrário, é a viabilidade de alterar normas constitucionais, mantendo-se o texto em vigor, que confere a necessária estabilidade ao sistema. Expliquemos melhor.

A realidade social é dinâmica e encontra-se em constante evolução (novamente, vide Cap. 1). É imprescindível que a constituição também evolua conjuntamente, acompanhando o dinamismo do corpo social, logo, há necessidade de mudanças no Texto constitucional para alcançar referido desiderato.

Essas alterações, entretanto, devem ser feitas de forma pontual, adaptando o necessário, de modo que os direitos garantidos pela Carta permaneçam intocados, assegurando-se assim a estabilidade social e, porque não dizer, a própria segurança jurídica [13] (bem maior do direito).

Caso as constituições não fossem vocacionadas à continuidade, é dizer, tivessem termo certo para deixar de existir, inexistiria qualquer estabilidade, pois os membros da sociedade estariam cientes de que todos os direitos conquistados e garantidos no Texto Supremo seriam submetidos a nova batalha política, a novas discussões (e pressões) intermináveis.

Da mesma forma, se ao invés de alterações pontuais fosse necessário, para adaptação da constituição à realidade social, a edição de uma nova Carta Política, as conseqüências seriam as mesmas já apontadas acima, implicando uma segurança jurídica precária, quiçá inexistente.

O prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho [14] captou o problema ora em foco e asseverou: "A Constituição, assim posta, é peça essencial e principal do Estado de Direito, é a suprema de todas as leis. Em conseqüência disso, a Constituição deve ser dificilmente modificável, e o ideal seria que a Constituição, uma vez estabelecida, nunca precisasse ser alterada. Entretanto, como já apontava a declaração Jacobina dos Direitos do Homem de 1973, há um outro lado nessa questão. E o outro lado é, como afirmava esse documento, que nenhuma geração tem o direito de sujeitar a si própria as gerações futuras, e que, portanto, o povo sempre tem o direito de mudar suas instituições, o povo tem sempre o direito de mudar sua constituição. Na verdade, as duas teses, que extremadas se contrapõem, levam a uma opção pelo equilíbrio. Uma Constituição deve ser estável para que ela seja realmente a suprema lei, mas uma constituição deve ser adaptável a novas condições, a novos momentos e a novas exigências. Uma Constituição não pode, para se tornar lei suprema, ser ao mesmo tempo uma lei, permitam-se a expressão, uma lei esclerosada."

Tangenciando o mesmo problema, porém advertindo que a estabilidade não pode se transmutar em imutabilidade, o Prof. José Afonso da Silva [15] adverte que "A estabilidade das constituições não deve ser absoluta, não pode significar imutabilidade. Não há constituição imutável diante da realidade social cambiante, pois não é ela apenas um instrumento de ordem, mas deverá sê-lo, também, de progresso social. Deve assegurar certa estabilidade constitucional, certa permanência e durabilidade das instituições, mas sem prejuízo da constante, tanto quanto possível, perfeita adaptação das constituições as perfeitas exigências do progresso, da evolução e do bem-estar social. A rigidez relativa constitui técnica capaz de atender a ambas as exigências, permitindo emendas, reformas e revisões, para adaptar as normas constitucionais às novas necessidades sociais, mas impondo processo especial e mais difícil para essas modificações formais, que o admitido para a alteração da legislação ordinária (Meirelles Teixeira, Lições Apostiladas)."

Fica, então, estreme de qualquer dúvida que a vocação à continuidade da constituição, bem como a possibilidade de alterações pontuais na mesma durante o seu percurso para adequar suas normas à realidade social, são garantias de estabilidade e segurança de um ordenamento jurídico.

Como se não fossem suficientes os argumentos trazidos até o momento, acrescentamos que uma constituição duradoura é relevante para "a própria eficiência e eficácia normativa dos textos constitucionais, na medida em que o tempo atua favoravelmente ao conhecimento, compreensão, depuração e, afinal, à efetividade das Constituições." [16]

"É possível dizer que onde a Constituição é efetivamente aplicada, as pessoas notam sua existência e vantagens, gerando consciência constitucional que torna difícil o uso arbitrário do poder, na medida em que as pessoas estarão vigilantes para reagir aos atos que venham afrontar os dispositivos constitucionais." (17)

Como salienta Karl Loewenstein "Existen naturalmente grados de apego y de indiferencia de um peublo a su constitución. Es evidente que una constitución necessita tiempo para fijarse en la conciencia de una nación. Cuanto más tiempo haya estado en vigor tanto más habrá aprendido la comunidad a vivir con sus ventajas y desvantajas. Solamente por el hecho de estar en vigor durante largo tiempo una constitución ejerce una poderosa influencia educativa. La forma y manera de sua adaptación a los cambios sociales tiene igualmente repercusiones en la conciencia constitucional del pueblo."

Conclui-se, desta forma, ser fundamental a edição de constituições que vigorem com prazo indeterminado, desde que tais Textos possuam mecanismos que viabilizem a sua adequação à realidade social, às novas idéias e pensamentos que, com a evolução social, passaram a fazer parte da identidade da sociedade.

Em sendo assim, passemos a verificar as formas de alteração da atual Constituição brasileira.


3.MECANISMOS DE ALTERAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL

As Constituições podem ser alteradas, com a finalidade de adequar o seu texto com a realidade social em evolução, por meio de dois mecanismos, nomeados pela doutrina como sendo: formais ou informais.

Analisemos cada uma das espécies sublinhadas.

3.1.Formais [19]

Nesse tópico o embate que se leva adiante condiz com os instrumentos que propiciam a reforma do Texto Constitucional, é dizer, a possibilidade do Poder Constituinte reformador alterar formalmente disposições incrustadas na Carta Política, observando-se as limitações e requisitos impostos pelo Poder Constituinte originário.

Portanto há que se deixar claro que não se adentrará ao problemas das revoluções – implicando ruptura com a ordem jurídica anterior para, por meio de novo Poder Constituinte originário, instalar-se outro Ordenamento Fundamental (com ou sem a utilização de luta armada).

Conclui-se, desta forma, que o estudo se restringirá aos instrumentos de reforma da Constituição, assim entendido como o "processo formal de mudança das constituições rígidas, por meio de atuação de certos órgãos, mediante determinadas formalidades, estabelecidas nas próprias constituições para o exercício do poder reformador." [20]

Devidamente delimitado o assunto, analisemos, rapidamente, os institutos formais de reforma da Constituição.

3.1.1.Emenda Constitucional

"A emenda é o caminho normal que a lei maior estabelece para a introdução de novas regras ou preceitos no texto da Constituição. O estatuto supremo tem nesse instrumento do processo legislativo o meio apropriado para manter a ordem normativa superior adequada com a realidade e as exigências revisionistas que se forem manifestando." (21)

Utilizando-se de um instrumento previsto no próprio texto da Carta Política é possível alterar o conteúdo da mesma, adequando-a aos novos tempos. O instrumento Emenda Constitucional, para ser utilizado, deve observar os requisitos trazidos na própria Constituição e não transpassar as limitações que a mesma lhe impõe.

Consoante ressalta o Prof. Alexandre de Moraes: "... a emenda à constituição é produzida segundo uma forma e versando sobre conteúdo previamente limitado pelo legislador constituinte originário. Dessa maneira, se houver respeito aos preceitos fixados pelo art. 60 da Constituição Federal, a emenda constitucional ingressará no ordenamento jurídico com status constitucional, devendo ser compatibilizada com as demais normas originárias. Porém, se qualquer das limitações impostas pelo citado artigo for desrespeitada, a emenda constitucional será inconstitucional, devendo ser retirada do ordenamento jurídico através das regras de controle de constitucionalidade, por inobservarem as limitações jurídicas estabelecidas na Carta Magna." [22]

Ressalte-se, mais uma vez, o que interessa para o tema ora em desenvolvimento, ou seja, as emendas constitucionais são meios formais de alteração das Constituições, constante no corpo das próprias (com seus requisitos e limites), tendo como finalidade evitar o engessamento dos seus dispositivos.

As emendas constitucionais são normas que revogam ou alteram outras normas constitucionais por meio de uma alteração na dicção do normativo constitucional emendado.

3.1.2Revisão Constitucional

O Prof. Celso Ribeiro Bastos [23], analisando a Carta Magna brasileira de 1988, traz à tona a necessidade de se prever instrumentos que permitam uma evolução dos Textos Constitucionais, adequando-os ao futuro e, nesse contexto, alinha os principais contornos da Revisão Constitucional nos seguintes termos:

"Além disso, o novo modelo político e administrativo implementado, como todo novo projeto, precisaria de reparos e foi com essa sabedoria que o constituinte previu um processo de atualização e adaptação da constituição, ao qual deu o nome de Revisão. Tal processo implica num período de facilitação de mudanças constitucionais, no qual o Congresso Nacional se reúne em sessões unicamerais e vota em único turno os projetos de emenda à Constituição, tendo que respeitar um quorum de maioria absoluta. Isto, ao invés dos três quintos exigidos em duplo turno em cada uma das Casas para uma reforma ordinária."

Da mesma forma que as emendas constitucionais, a revisão constitucional também implica numa alteração da dicção do normativo constitucional como forma de conferir-lhe outro conteúdo.

3.2.Informais

Passaremos agora a esmiuçar o mecanismo de alteração informal da Carta Magna, que tem como principal característica conferir um novo entendimento a um normativo constitucional, fruto da evolução da sociedade, sem que para tanto seja necessária qualquer modificação no texto da Lei Maior.

3.2.1.Mutação Constitucional

O fenômeno informal de alteração do conteúdo do Texto Constitucional é denominado de "mutação constitucional". Dizemos do conteúdo do Texto porque em verdade, não há qualquer alteração formal na letra da Lei, a mudança ocorre no entendimento da mesma em virtude da dinâmica evolução social.

Com maior precisão, define Uadi Lammêgo Bulos [24] a mutação constitucional como "O fenômeno, mediante o qual os textos constitucionais são modificados sem revisões ou emendas,... ".

O mesmo autor, após indicar onde inicialmente se detectou a existência do fenômeno jurídico ora em foco [25] e percorrer as diversas impressões doutrinárias sobre o tema, conclui que as "... mutações constitucionais como uma constante na vida dos Estados, e as constituições, como organismos vivos que são, acompanham a evolução das circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que, se não alteram o texto na letra e na forma, modificam-no em substância, significado, alcance e sentido dos dispositivos."

"Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais." (26)

Finalmente, ainda nos aproveitando do entendimento do Prof. Uadi, ressalta o mestre, na direção do caminho que estamos construindo desde o Capítulo 1, que: "De fato, as mudanças informais são difusas e inorganizadas, porque nascem da necessidade de adaptação dos preceitos constitucionais aos fatos concretos, de um modo implícito, espontâneo, quase imperceptível, sem seguir formalidades legais."

"Atuam modificando o significado das normalizações depositadas na Constituição, sem vulnerar-lhes o contudo expresso; são apenas perceptíveis quando comparamos o entendimento dado às cláusulas constitucionais em momentos afastados no tempo." (27)

Desta feita é válido asseverar que a mutação constitucional constitui uma alteração no conteúdo de alguma(s) norma(s) constitucional(is), sem qualquer alteração no Texto Maior, objetivando o acompanhamento da evolução do pensamento do corpo social, mantendo intacto o entrosamento entre soberania popular e Norma Fundamental.

3.2.1.1.Hipóteses Doutrinárias

As mutações constitucionais detêm as mais diversas formulações doutrinárias sobre as espécies de modalidades nas quais podem se apresentar. Tal constatação impede que se construa uma delineação uniforme sobre o assunto ("modalidades"), ou uma congruência de entendimentos a respeito.

Desta forma, apresenta a doutrina uma variação considerável de modalidades do instituto, fruto das diferentes perspectivas captadas. As hipóteses formuladas de mutação constitucional assim o são com o fito de abarcar determinado objetivo, de desenvolver o tema com a intenção finalística de desnudar certo aspecto, ou conseqüência, ou viabilidade/legalidade do fenômeno jurídico. Estas considerações fazem surgir inúmeros critérios informadores das mais variadas acepções do tema. Confira-mo-los.

O Prof. Uadi Lammêgo Bulos salienta alguns doutrinadores estudiosos do assunto, trazendo o critério utilizado pelos mesmos para identificar a mutação constitucional: "Hsü Dau-Lin, seguido por Pablo Lucas Verdú e por Manuel García Pelayo, esboçou quatro categorias: 1ª mutação constitucional através de prática que não vulnera a Constituição; 2ª mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3ª mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Carta Maior; 4ª mutação constitucional através da interpretação." [28]

Ainda segundo o Prof. Uadi, Paolo Biscaretti Di Ruffia agrupa em dois ramos bem delineados as hipóteses de mutação constitucional: "No primeiro, encontramos as modificações operadas em decorrência de atos elaborados por órgãos estatais de caráter normativo (leis, regulamentos etc.) e de natureza jurisdicional (decisões judiciais, principalmente em matéria de controle de constitucionalidade das leis). No segundo ramos, estão as mudanças ocorridas em virtude dos fatos de caráter jurídico (como os costumes); de natureza político-social (normas convencionais ou regras sociais de conduta correta frente à Carta Suprema); ou, simplesmente, as práticas constitucionais (tais como a inatividade do legislador ordinário que, não elaborando normas de execução, logra, substancialmente, impedir a realização efetiva de disposições constitucionais)." [29]

Milton Campos [30] entendeu poder ser verificada a mutação constitucional na complementação legislativa, construção judiciária e consenso costumeiro. José Horácio Meirelles Teixeira [31], acompanhando Milton Campos no que atine à complementação legislativa, salientou a ocorrência do instituto quando da interpretação da constituição e do aparecimento dos costumes.

E prosseguindo nas variantes doutrinárias, temos que: "Para Wheare, tanto a interpretação judicial como usos e costumes podem provocar mutações constitucionais. Em sentido idêntico estão Humberto Quiroga Lavié e Hector Fix Zamudio."

"Já Anna Cândida da Cunha Ferraz examinou a interpretação constitucional, em suas várias modalidades, e os usos e costumes constitucionais, enquanto processos informais de mudança da Constituição, procurando seguir, em essência, a classificação proposta por Biscaretti Di Ruffia." (32)

Como já havíamos adiantado são utilizados na abordagem da mutação constitucional os mais diferentes critérios, restando difícil concatenar, as formulações doutrinárias existentes, numa classificação sintética.

Aliás é natural que tal aconteça, pois a Norma Fundamental não consegue agasalhar todos os casos que suplicam o seu regramento (nem é essa sua função), bem como não pode prever acontecimentos futuros que venham a necessitar de nova dicção normativa, o que viabiliza a variedade de formas, modalidades, hipóteses de mutação constitucional (consoante entendimento doutrinário majoritário).

3.2.1.2.Nosso Entendimento

É certo que, como já adiantamos no capítulo anterior, ante a própria característica da Carta Maior, de norma fundamental que não deve descer a minúcias, juntamente com a dinâmica do pensamento do corpo social, multiplicam-se as hipóteses de mutação constitucional e os critérios utilizados na tentativa de racionalizar o fenômeno.

Entretanto, como se já não fossem suficientes as modalidades apresentadas pelos mais ilustres juristas, passamos a demonstrar qual é nosso entendimento a respeito das possíveis manifestações da mutação constitucional, apresentando uma classificação que, se bem utilizada, terá como utilidade imprimir maior discussão sobre um tema tão esquecido e de inegável importância para o estudo do direito constitucional.

Em nossa singela e despretensiosa classificação entendemos que o gênero mutação constitucional apresenta apenas duas espécies, que denominamos "puras" e "impuras". Segundo esse entendimento, esta subdivisão é suficiente para abarcar as possibilidades de alteração do conteúdo do Texto Constitucional sem a mudança formal dos seus artigos.

Sem querermos ser reducionistas, introduzindo o conteúdo num continente que lhe não comporta (o que implicaria enfocar reduzida parcela do instituto, lançando mão de um bem vindo aprofundamento do tema), entendamos a classificação supra sugerida e verifiquemos a sua abrangência e pertinência.

3.2.1.2.1.Mutações Constitucionais "Puras"

Como viemos acentuando desde o início do presente trabalho, as Constituições nada mais são (ou pelo menos devem ser) que o reflexo dos pensamentos, dos valores, do estágio de desenvolvimento existente em uma determinada sociedade num determinado momento.

Em sendo a sociedade um grande aglomerado pulsante de idéias que está sempre se desenvolvendo, evidentemente que as Cartas Fundamentais devem acompanhar tal dinamismo sob pena de não mais se identificarem com o corpo social que regram.

Para tanto, como visto, existem os instrumentos formais de alteração das Constituições (revisão e emenda) e os informais, como a mutação constitucional, fenômeno qual estamos cuidando no momento, e que se divide em duas espécies: as mutações constitucionais puras e as mutações constitucionais impuras.

No nosso entender as mutações constitucionais puras seriam aquelas que alteram o conteúdo da norma constitucional em virtude da mudança do pensamento, do entendimento, ponto de vista da sociedade, como um todo, sobre determinado tema ou assunto.

As mutações constitucionais puras nada mais são que o ajuste do perfeito reflexo que deve existir entre a sociedade (ou os valores que ela contem) e a Regra Fundamental que a regula ("Direito"), é o redirecionamento da exata similitude que deve existir entre o espírito vivente no seio da soberania popular e que igualmente deve habitar o âmago da respectiva Constituição.

Essa espécie de mutação altera o conteúdo das normas constitucionais para fazer com que elas voltem a se adequar aos novos valores da sociedade, dá novo sentido a estes dispositivos, fazendo-os entrar em sintonia com a dinâmica da evolução social, garantindo a eficácia da Constituição.

Entendido o significado e o sentido das mutações constitucionais puras, ressaltamos que as modalidades de mutação apresentadas pela doutrina findam por encontrarem-se contidas em uma das duas espécies ora apresentadas (vide sobre mutações constitucionais "impuras" no capítulo seguinte). As hipóteses de mutações constitucionais aventadas acondicionam-se quer na modalidade de mutação pura, quer na impura, delas fazendo parte integrante, e não elemento distinto.

Assim, tentando dispor do maior número de "modalidades" possíveis (mas não as exaurindo), teríamos como elementos integrantes das mutações constitucionais puras os usos e os costumes, as interpretações e as construções judiciais; por sua vez, encontraríamos nas mutações constitucionais impuras, como seus elementos, as complementações legislativas, as práticas governamentais, legislativas e judiciárias e os grupos de pressão.

Os usos e costumes nada mais são do que um caminho que conduzirá a uma mutação constitucional pura, entretanto não são modalidades de mutação, o fenômeno é um só: sintonia entre evolução social e sistema jurídico fundamental, os usos e os costumes são apenas parte integrante do fenômeno, o compõe, mas não são espécie do gênero mutação.

Da mesma forma a interpretação é um importantíssimo instrumento das mutações puras. Aliás, nosso entendimento é que os usos e costumes, bem como a construção judicial (adiante melhor explicado) podem muito bem estarem contidas no elemento interpretação, assim, teríamos esta como elemento mor das mutações constitucionais puras e contida na mesma abarcaríamos, como dito, os usos e costumes e as construções judiciais.

Entretanto, melhor é delinear separadamente cada instituto para o acertado e claro entendimento da nova classificação ora apresentada.

Prosseguindo, a interpretação, processo de entendimento do normativo analisado, como é realizada por um ser inserido no círculo social, que capta seus estímulos e novas sensações (de forma idiossincrática, é certo), propicia um alinhamento de pensamentos que finda por trazer o sentido da norma para o futuro a que pertence.

Novamente ressaltamos, a interpretação, muito embora um importante processo, é elemento das mutações constitucionais puras e não sua modalidade; aquela é instrumento que integra e ajuda no desenvolvimento desta.

Da mesma forma as construções judiciais, com a peculiaridade que caso sejam elaboradas por força de pressões de qualquer espécie, é dizer, caso não reflitam, pura e simplesmente, o refluxo de uma mudança de valores e pensamentos de todo o corpo social, devem ser consideradas mutações constitucionais impuras.

Analisemos melhor a hipótese no Capítulo seguinte.

3.2.1.2.2.Mutações Constitucionais "Impuras";

Com a apresentação do nosso entendimento a respeito do que são as mutações constitucionais impuras, restará melhor elucidado, por via oblíqua, as mutações constitucionais puras, principalmente ante o inevitável confronto entre as duas espécies de mutação.

Entendemos como sendo mutações constitucionais impuras aquelas que impõem uma alteração no conteúdo do Texto Fundamental, sem alteração do seu dispositivo (que permanece intacto), entretanto não como reflexo das alterações ocorridas nos ideários sociais, mais sim advindas de pressões efetivadas por determinados grupos (ainda que representativos de determinada parcela da sociedade), de práticas governamentais, legislativas ou judiciárias, ou ainda de complementações legislativas (dentre outros).

Note-se que para as hipóteses acima indicadas não há mudança no conteúdo do Texto Magno em virtude da alteração de conceitos sociais; a pureza existente entre a transformação do espírito vivente no seio comunitário refletindo diretamente na mudança de entendimento da Carta Fundamental inexiste, o que se tem são transformações daquela concepção jurídica desenvolvida por forte "influência" de setores da sociedade (ou então por órgãos que não a representam na sua totalidade) com suas ações.

Desenvolvendo melhor o conceito, analisemos os chamados grupos de pressão. Referidos grupos (lobbies, sindicatos, partidos políticos etc.), invariavelmente, esforçam-se por defender interesses setoriais das respectivas classes, que muito embora possam imprimir uma mudança no conteúdo normativo da Lex Legum, tal não é fruto, como insistentemente ressaltado, da alteração do pensamento social como um todo e sim, como o próprio nome diz, da "pressão" exercida por esses grupos.

O mesmo ocorre com as práticas governamentais, legislativas e judiciárias, que também podem tornar-se elemento da mutação constitucional mas não na sua pureza, não em virtude de influxos sociais.

No que diz respeito à complementação legislativa, cabe uma análise um pouco mais detida. As complementações legislativas seriam as leis complementares, leis ordinárias etc., que tem como objetivo conferir efetividade a alguma norma constitucional que de tal qualidade não é provida por amoldar-se ao grupo das normas de eficácia contida ou limitada. [33]

Como ocorre com os demais institutos mencionados neste capítulo, as complementações legislativas também podem conferir uma alteração no conteúdo normativo constitucional, não, entretanto, em decorrência de qualquer alteração do espírito dinâmico do corpo social.

É certo que à referida conclusão poder-se-ia contrapor que as complementações são efetivadas pelos legítimos representantes da sociedade (parlamentares), logo, implicariam na captação da mudança do pensamento social, estando-se frente a uma mutação constitucional legitimada pela soberania popular e, via de conseqüência, impregnada da mais lídima e cristalina "pureza".

Entretanto assim não entendemos. Inicialmente porque as complementações sofrem intensa influência de grupos de pressão e são frutos de forte confronto político de interesses, sendo certo que essas situações não necessariamente refletem qualquer alteração no pensamento político-social. [34]

Além do que entendemos que a necessidade da edição de uma lei para a alteração do entendimento dum normativo constitucional finda por contaminar o instituto da mutação, que, na sua pureza, advém da simples evolução social.

Vale frisar, no entanto, que caso a complementação legislativa venha a refletir uma mudança de valores ocorrida na sociedade, considerada-a na sua inteireza, então estaremos diante de uma mutação constitucional pura. Mas, note-se, que neste caso a complementação vem apenas "formalizar" a mutação constitucional, pois que, em verdade, a mesma já existia.

Aliás, quando o mesmo ocorrer com relação a qualquer das hipóteses supra elencadas o raciocínio será o mesmo, ou seja, deverão ser consideradas mutações constitucionais puras. Isto porque é pura a mutação constitucional que corresponda a uma evolução dos valores existentes na sociedade (e não de fragmentos desta), independentemente do elemento contido no fenômeno de mutação, utilizado para averiguar a ocorrência do mesmo (acentuamos que a recíproca é verdadeira para os elementos acentuados como integrantes das mutações constitucionais puras).

Finalmente, necessário uma menção especial às construções judiciais. Como visto, num primeiro momento, enquadramos tal elemento das mutações constitucionais nas espécies que denominamos puras. Isto porque, entendemos que as construções judiciais refletem o momento social vivido, devidamente adequada às normas atinentes a um caso concreto. Desta feita, o fruto de tal equação só pode ser uma mutação constitucional pura.

Entretanto, ocorre que, pode acontecer das construções judiciais também sofrerem pressões de grupos sociais (ou quejandos). Nesta hipótese, como já salientado, o que se verificará é uma mutação impulsionada por entendimentos advindos de setores da sociedade, logo, da espécie das mutações constitucionais impuras.

3.2.1.3.Concluindo Sobre a Classificação

A simples classificação das mutações constitucionais em apenas duas espécies, as quais chamamos puras e impuras, decorre do nosso entendimento segundo o qual as mutações ocorrem como uma forma de adequar a Carta Fundamental (dever ser), à realidade hodierna da sociedade (ser), à evolução do pensamento, dos valores do corpo social. Esse é o fenômeno.

Entretanto, referido fenômeno pode findar por alterar o conteúdo de uma norma do Texto Maior, sem imprimir qualquer modificação à letra da mesma (mutação constitucional) e não refletir a evolução do pensamento de toda a sociedade, mas sim apenas de um setor da mesma, de um grupo. Neste caso estaríamos frente a uma mutação constitucional da espécie impura, porque existe a alteração informal da Carta Magna, muito embora desprovida de pureza, é dizer, do simples e natural reflexo advindo da evolução do pensamento social como um todo, por si só, influindo naturalmente na alteração informal da Constituição.

As chamadas modalidades, ou hipóteses, ou categorias de mutação constitucional nada mais são do que elementos desse mesmo fenômeno. O que se pode fazer é analisar como esse elemento atua no fenômeno da mutação constitucional, mas não classificá-lo como categoria de mutação, ou espécies diferençadas de mutação constitucional.

A assertiva acima pode ser comprovada com o seguinte entendimento: imaginemos que hipoteticamente fosse possível visualizarmos a essência das mutações constitucionais. Veríamos, desta forma, uma alteração no comportamento social influindo diretamente no conteúdo de uma norma constitucional como forma de adequá-la ao novo tempo.

Essa é a essência da mutação constitucional. Entretanto, caso seja utilizada a interpretação, e.g., para melhor detectar o fenômeno ora em análise, será a mesma, utilizada como elemento damutação constitucional, pois não interfere na essência do instituto, logo, não pode ser alçada ao cargo de uma sua modalidade ou espécie, pois, caso assim estivéssemos procedendo, estaríamos classificando institutos distintos dentro de uma mesma categoria.

Note-se que o acima demonstrado em nada discrepa dos entendimentos doutrinários elaborados pelos mais abalizados juristas, como viemos acentuando ao longo de todo o trabalho. Para mais uma vez ratificarmos nossa posição, nos apoiamos na sábia lição de Karl Loewentein : "En la mutación constitucional, por otra lado, se produce una transformación en la realidad de la configuración del poder político, de la estructura social o del equilíbrio de intereses, sin que quede actualizada dicha transformación en el documento constitucional: el texto de la constitución permanece intacto. Este tipo de mutaciones constitucionales se da en todos los Estados dotados de una constitución escrita y son mucho más frecuentes que las reformas constitucionales formales. Su frecuencia e intensidad es de tal orden que el texto constitucional en vigor será dominado y cubierto por dichas mutaciones sufriendo un considerable alejamiento de la realidad, o puesto fuera de vigor."

Todo o desenvolvido neste trabalho, até o momento, conduz à construção da classificação ora apresentada, principalmente tendo em vista a finalidade de distinguir o instituto jurídico em análise, dos demais elementos que o integram.

Entretanto, referida classificação não equivale a qualquer verdade absoluta e, como já havíamos anotado, tem como maior objetivo ampliar o âmbito de discussão do tema. No mais, a nova taxonomia apresenta contornos sutis, de difícil distinção, mas que esperamos termos sido meticulosos o suficiente para acentuar e demonstrar com clareza as nuances e a essência do instituto.


4.CONCLUSÃO

Todo o consubstanciado no presente estudo teve como objetivo traçar um entendimento linear que compreende demonstrar: a frágil, porém vital, ligação existente entre sociedade e constituição; que a sociedade apresenta uma evolução contínua e dinâmica do seu modo de pensar, dos seus valores etc. e que, por outro lado, as constituições, vivas que são, devem acompanhar essa evolução sob pena de perda da sua eficácia; para tanto podem ser utilizados mecanismos formais (emenda constitucional ou revisão constitucional) ou informais (mutação constitucional) de alteração da Carta da República.

De forma inconteste observamos essa rica e inseparável conexão existente entre a sociedade e sua Lei Suprema, bem como os mecanismos que permitem manter, no tempo, essa conexão.

Quanto às mutações constitucionais averiguamos o entendimento doutrinário a respeito, a forma utilizada para classificar o instituto e as hipóteses lançadas acerca das suas várias modalidades.

Ato seguinte, nos atrevemos a lançar nosso entendimento do fenômeno juntamente com uma classificação peculiar, por nós desenvolvida, que subdivide as mutações constitucionais em duas espécies (puras e impuras), suficientes para abarcar o instituto.

Justificamos o porquê da criação de uma nova classificação, ressaltando as diferenças existentes entre as espécies ressaltadas, bem como pontificando a necessidade de se separar o elemento que integra o instituto jurídico, do próprio instituto.

Observando mais uma vez o significado das mutações constitucionais puras e impuras e delineando suas diferenças, concluímos nosso trabalho esperançosos de podermos ter contribuído para uma melhor reflexão a respeito deste importante fenômeno jurídico.


5.NOTAS

01. Bonavides, Paulo; O direito constitucional e o momento político; Revista de Informação Legislativa, ano 21, nº 81, jan./mar. 1984, págs. 217 a 230.

02. Ibidem;

03. Ibidem, pág. 219/220;

04. "O ordenamento jurídico estatal, cuja cúpula é a constituição, somente pode encontrar seu fundamento fora do Direito positivo, porque o valor dos princípios, das normas constitucionais, não se pode explicar à base de considerações puramente jurídicas, mas de princípios e valores transcendentes ao Direito Positivo." – Teixeira, José Horácio Meirelles; Curso de Direito Constitucional; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pág.199;

05. Ibidem, pág. 200;

06. Bonavides, Paulo; op. cit., pág. 229;

07. Ibidem;

08. Bonavides, Paulo; op. cit., pág. 230;

09. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, pág.47;

10. Direito Constitucional, 10ª edição, São Paulo: Atlas, 2001; pág. 37;

11. Francisco, José Carlos, Mutação Social e Limitações às Emendas Constitucionais - Dissertação de Mestrado - São Paulo, 1998, págs. 12 a 23;

12. Direito Constitucional, 6ª edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, pg. 1129, apud José Carlos Francisco, op. cit., pág. 13;

13. "Não obstante as várias funções apresentadas pelas constituições ao longo de sua história, como corolário da vocação à continuidade e como máxima e fundamental expressão do Direito numa visão normativista (cujo objetivo elementar é a organização da sociedade no plano das relações institucionais, voltadas a uma finalidade), o papel de instrumento estabilizador das constituições escritas atende, é claro, ao princípio elementar e racional da Segurança Jurídica." – Francisco, José Carlos; op. cit. pág. 23;

14. Revisão Constitucional, Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, 1994, pg. 4, apud José Carlos Francisco, op. cit., pág. 20;

15. Curso... , op. cit. pág. 44;

16. Francisco, José Carlos, op. cit,. pág. 21;

17. Ibidem;

18. Teoría de la Constitución, 4ª edição, Barcelona, Ed. Ariel, 1986, pág.227; apud: José Carlos Francisco, op. cit., pág. 21;

19. Os mecanismos formais de alteração das Constituições trazidos no presente trabalho restringem-se às espécies existentes na Carta Política brasileira de 1988;

20. Silva, José Afonso; Curso... , pág. 64;

21. Bonavides, Paulo; Curso de Direito Constitucional, 11ª edição, Malheiros Editores: São Paulo, 2001, pág. 184;

22. Direito Constitucional – 10ª edição – São Paulo: Atlas, 2001; pág. 536;

23. BASTOS, Celso Ribeiro. A reforma da Constituição: em defesa da revisão constitucional. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 36, nov. 1999. Disponível em: jus.com.br/revista/doutrina/texto.

24. Mutação Constitucional; São Paulo: Saraiva, 1997, pág. 54;

25. "Certamente, foi a doutrina alemã quem primeiro detectou o problema, ao notar que a Constituição de 1871 sofria, freqüentemente, mudanças quanto ao funcionamento das instituições do Reich – mudanças estas que ocorriam sem reformas constitucionais" – Ibidem;

26. Mutação... , pág. 57;

27. Ibidem, pág. 58/59;

28. Mutações... , pág. 63;

29. Ibidem, pág. 63/64;

30. Ibidem, pág. 64;

31. Ibidem;

32. Mutações... , pág. 65;

33. Classificação desenvolvida pelo Prof. José Afonso da Silva. Para maiores esclarecimentos vide a obra "Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Ed. Malheiros: São Paulo, de autoria do referido Professor.

34. Então por que a chamamos de mutação constitucional se podem não refletir qualquer evolução/alteração do ideário social? Porque efetivamente podem alterar, com a simples edição do texto normativo, o conteúdo de alguma norma constitucional, mantendo-se sua dicção intacta. Tal fato perfaz-se, indubitavelmente, numa mutação constitucional, que, no entanto, classificamos de impura justamente por não refletir qualquer mudança de pensamento do corpo social. – Nota do Autor.

35. Teoria de La Constitución, Barcelona-España: Ediciones Ariel, 1964, tradução: Alfredo Gallego Anabitarte; pág. 165;


6.BIBLIOGRAFIA

BONAVIDES, PAULO. Curso de Direito Constitucional, 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

______________. O direito constitucional e o momento político; Revista de Informação Legislativa, ano 21, nº 81, jan./mar. 1984.

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TEIXEIRA, JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES. Curso de Direito Constitucional, texto revisto e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLO, Ronaldo Guimarães. Mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3841. Acesso em: 25 abr. 2024.