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A vida nos túneis nos EUA: da ficção para realidade

A vida nos túneis nos EUA: da ficção para realidade

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O sistema dos EUA se reforça enquanto se auto-destrói. Os brasileiros só podem observar, rir e fazer um "estudo de caso" do drama dos norte-americanos usando como referência a cultura deles.

A primeira vez que vi algo sobre este assunto foi no livro "Mundos Imaginados", do físico Freeman John Dyson. Ele faz uma breve referência àqueles que, nas grandes cidades dos EUA, saem dos túneis do metrô a noite. Pessoas pobres que não tem onde morar e que são invisíveis para a sociedade norte-americana. A referência ao problema político é curta e não prestei muita atenção à mesma  quando a li no livro, cujo tema central é outro. A obra de Dyson foi publicado em 1998 e o fenômeno mencionado de passagem por Dyson piorou bastante depois da crise financeira.  Hoje ele é uma verdadeira epidemia nos EUA e passou lentamente a ser discutido de maneira abertamente na imprensa, inclusive no Brasil http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/os-moradores-de-tuneis-nos-estados-unidos#.VTrmPV96JMy.facebook .

Publiquei o link do acima no Facebook e José Wellington Porto, um velho amigo advogado que começou a vida no jornalismo, fez o seguinte comentário:

“Parece relato de ficção política... Há um filme, não muito antigo, estrelado por Sylvester Stallone e Sandra Bullock, que mostra uma comunidade subterrânea de "indesejáveis" ameaçando o mundo da superfície "normal", acabando por depor o governo "normal" com a ajuda de um policial do passado...”

Wellington fez referência à distopia futurista “O Demolidor” (1993) http://pt.wikipedia.org/wiki/Demolition_Man . E isto me fez lembrar um outro filme e um probrama de TV com túneis, minas e populações subterrâneas.  

No clássico Sci-Fi “It came from outer space” (1953) http://pt.wikipedia.org/wiki/It_Came_from_Outer_Space os protagonistas assistem a queda de um meteoro e seguem até o local do impacto. Lá o herói entra sozinho na cratera e descobre que, na verdade, o que caiu na terra foi uma nave espacial. Ele vê e é visto por um alienígena e foge. Um desmoronamento impede o protagonista de provar o que viu e ele acaba sendo ridicularizado pelos demais habitantes da cidade quando seu testemunho se espalha.

Vários outros habitantes entram em contato com os extra-terrestres e passam a agir de maneira estranha. Eles foram duplicados e os originais foram retidos no túnel como reféns. As cópias humanas dos ETs. Roubam objetos nas lojas de material elétrico e de ferramentas para que a nave possa ser consertada. A namorada do herói é raptada por uma das cópias humanas e o herói tudo faz para salvá-la. No final os ETs conseguem consertar sua nave, soltam os prisioneiros e vão embora.

Na série “A Bela e a Fera” (1987/1990) diversas pessoas pobres e socialmente excluídas vivem no subterrâneo de New York. Esta comunidade utópica é protegida por um herói animalesco e virtuoso http://pt.wikipedia.org/wiki/Beauty_and_the_Beast_%28teless%C3%A9rie_de_1987%29 . A série fez muito sucesso no Brasil graças à performance de Ron Perlman, ator que sublima a feiura de seu rosto com interpretações marcantes sob intensa maquiagem desde que encarnou um homem macaco em “La Guerre du Feu” (1981).

Os homens primitivos viviam em cavernas naturais e não sonhavam com o cinema. Em razão do empobrecimento, milhares de norte-americanos pobres vivem hoje em cavernas artificiais. Eles partilhas conosco a mesma memória cinematográfica e televisiva. De fato eles são o produto da sociedade e do sistema econômico que  popularizou o cinema e a televisão e que tem utilizado a vida em cavernas como recurso dramático. O drama da pobreza deles é, portanto, bem maior do que o da pobreza dos outros povos.

Na terra dos sonhos, a vida da população norte-americana duplicada e abandonada à própria sorte nos túneis é um pesadelo que não será visto em filmes realistas. Há décadas o realismo cinematográfico norte-americano foi soterrado por HQs como “Avengers 1 e 2” e por séries como “Velozes e Furiosos 1,2,3,4,5,6,7...”. O problema é insolúvel no contexto do atual "modo de vida norte-americano". O sistema que produz empobrecimento e exclusão social nada pode fazer para reparar o mal produzido sem reconhecer seus próprios defeitos (coisa que é impensável nos EUA).

A realidade não terá espaço na vida destas pessoas porque elas não são cinematografáveis como se não pudessem fazer parte do ideal de vida norte-americana? Queira ou não a indústria do cinema, os homens dos túneis constituem agora o subterrâneo da sociedade norte-americana. E em algum momento a realidade que preenche as vidas deles irá sair de controle produzindo nos EUA guerras civis e revoluções, fenômenos que os governos norte-americanos tem fomentado no exterior desde o fim da II Guerra Mundial. 

O fenômeno retratado na matéria do GGN registra pelo menos outra ironia. A sociedade norte-americana acredita que é ou pelo menos quer ser vista como a mais cristã entre aquelas que professam o cristianismo. A religião do crucificado cresceu e se expandiu dentro do Império romano onde foi proibida por séculos. Antes de se tornar religião oficial sob Constantino (272-337), o cristianismo foi praticado nas catacumbas romanas.

Filmes antigos como “Quo Vadis” (1951) http://pt.wikipedia.org/wiki/Quo_Vadis_%281951%29 retratam esta característica do cristianismo primitivo. Curiosamente, o selvagem neocapitalismo norte-americano, que é intensamente apoiado por fundamentalistas cristão como Sarah Palin, está na gênese do crescimento da vida dos túneis. E assim podemos dizer que a religião dos excluídos se tornou a principal fonte da exclusão nos EUA. Admirável este mundo novo não?    



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