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Dignidade da pessoa humana e garantismo penal

Dignidade da pessoa humana e garantismo penal

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Um dos fundamentos do Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana [1]. No Estado democrático de Direito todos os princípios que o regem devem se basear no respeito à pessoa humana, pois esta funciona como princípio estruturante [2], ou seja, representa o arcabouço político fundamental constitutivo do Estado e sobre o qual se assenta todo o ordenamento jurídico. Por isso, é considerado como princípio maior na interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no Texto Constitucional (Nunes, 2002, pág. 46).

Isto se reflete no Direito Penal, pois este trabalha diretamente com o ius libertatis dos cidadãos. Silva leciona que " a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida" (2002, pág. 105). E, citando Gomes Canotilho e Vital Moréia, mostra que a dignidade humana por ser um valor supremo

obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invoca-la para construir a teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana.

Deste modo, partindo da premissa dignidade humana [3], que tem íntima relação com o Direito Penal garantista, faz-se necessário entender que num estado Democrático de Direito, um fato punível deve ser encarado tendo em vista a finalidade do Direito Penal, que é a proteção de bens jurídicos penais. Gomes, relacionando a dignidade humana com o Direito Penal, estatui que sendo a dignidade humana o fundamento máximo do modelo de Estado de Direito, parece não haver dúvida de que a sanção penal só deve incidir quando há uma concreta lesão ou perigo para o bem jurídico protegido pela norma. O princípio da ofensividade, destarte, dimana naturalmente dos fundamentos do Estado Constitucional e Democrático de Direito (2002, pág. 87).

Zaffaroni esclarece que

el derecho penal tiene la función de proveer a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido usamos " ético" para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la moral, que la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es autónoma. En este sentido, la "aspiración ética" del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se cometan acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar esta aspiración ética, pero la misma no es un fin sí misma, sino que su razón, su " por qué" ( y también su " para qué") es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos (1987, pág. 50).

Mas a teoria do bem jurídico, apesar de ser ponto de referência para o sistema penal, nem sempre consegue garantir os princípio da subsidiariedade e da fragmentariedade do Direito Penal. Como garantia individual e, conseqüentemente, como limite do ius puniendi, não estabelece de forma segura os limites de criminalização de certas condutas e, que, infelizmente, ficam ao arbítrio do legislador que, muitas vezes, legitima o bem jurídico como prima ratio, ignorando a fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal.

Infelizmente, delitos tomam corpo no ordenamento jurídico, independentemente de o bem jurídico tutelado resultar afetado. Ferrajoli (2002), criticando a crescente multiplicidade de proibições, diz que "justamente porque a intervenção punitiva é a técnica de controle social mais gravosamente lesiva da liberdade e da dignidade dos cidadãos, o princípio da necessidade exige que se recorra a ela somente como remédio extremo" (2002, pág. 372).

Gomes acrescenta:

a discutível-mas ao mesmo tempo absolutamente indispensável- teoria do bem jurídico passou a constituir, especialmente na experiência legislativa dos últimos anos, um dos " pretextos" para uma intervenção " máxima do Direito penal, e isso tanto no Direito penal acessório como no Direito penal tradicional. A sociedade complexa atual obrigou a intervenção do Direito penal para a tutela de novos bens jurídicos. Porém, a atividade legislativa penal foi muito além do necessário (2002, pág. 77).

Assim, como "limite" do ius puniendi atual, o bem jurídico é visto somente de forma normativista que converte o bem jurídico em uma pura categoria valorativa, que explica o crime sendo um desvalor da ação e não como ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal, ou seja, o desvalor do resultado. É nisto que o princípio da ofensividade difere e modifica o sistema penal, pois, nullum crimem sine iniuria, ancorado nos direitos fundamentais, e, ainda, tendo em consideração o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos (leia-se subsidiariedade/ ultima ratio), passa a constituir a essência do modelo de delito (de injusto) compreendido como fato típico "objetivamente ofensivo", é dizer, fato merecedor da sanção penal, porque causou uma lesão ou perigo de lesão ao bem tutelado. É o Direito Penal do bem jurídico. Bem jurídico caracterizado por sua relevância social e referência individual e que possa ser suscetível de ser ofendido. "A aplicação desse princípio decorre de uma das funções do bem jurídico, qual seja, a de estabelecer garantias ou limites para o exercício de punir do Estado" (Bianchini, 2002, p. 54).

Deste modo, a teoria do delito, que entende o crime como uma violação de um bem penalmente protegido [4] e que, sob o aspecto formal, é um fato típico e antijurídico, deve ser reformulada em favor da teoria do fato punível.

De acordo com Gomes (2002), o fato punível deve ser entendido como um fato antijurídico, ou seja, típico e ausente de causas excludentes de antijuridicidade e punível (em sentido amplo) e que envolve a culpabilidade e a punibilidade em sentido estrito. O mesmo autor estatui que o fato punível possui quatro requisitos: a conduta ofensiva típica, a ausência de causas excludentes da antijuridicidade, a culpabilidade e a punibilidade.

A teoria do fato punível pode ser conceituada tendo em vista somente dois requisitos: a conduta ofensiva típica e a ausência de causas excludentes da antijuridicidade. Seguindo a linha de Damásio [5] no que tange à teoria do delito, à culpabilidade, ao contrário do que estatui Mir Puig [6], o fato punível nada mais é do que um fato típico e antijurídico. O diferenciador seria então, a tipicidade. Na teoria do delito ela é entendida como a "conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal [7]". Já na teoria do fato punível, a tipicidade engloba a realização formal da conduta penalmente relevante, a imputação subjetiva ou normativa dessa conduta ao agente, é dizer, o dolo ou culpa, produção de um resultado penalmente relevante, isto é, desvalor do resultado penalmente relevante (nullum crimem sine iniuria) [8]. Além disso, o resultado penalmente relevante deve se caracterizar por ser transcendental, significativo, pela ausência da tipicidade conglobante [9] e objetivamente imputável ao risco criado pela conduta do agente.

Somente a teoria do fato punível, englobando o princípio da ofensividade, talvez não possa assegurar a garantia do ius libertatis, a limitação do ius puniendi estatal. Mesmo que se leve em consideração que atrás de todo tipo penal há uma norma, e um bem jurídico e uma ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma, a legislação penal brasileira e nossos legisladores não nos mostram a presença do princípio da ofensividade em muitos dos seus tipos. Os crimes de mera conduta, os crimes formais e os crimes de perigo, que têm em comum a presença de uma presunção de ofensividade, são exemplos disso. Neles não estão presentes princípios correlatos ao princípio da legalidade como o da lex certa [10] e que são contrários ao disposto no artigo 13, primeira parte do Código Penal Brasileiro reza que "o resultado de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa", ou seja, não há crime sem resultado, sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico penal.

O Superior Tribunal de Justiça em manifestação ressaltou que

a infração penal não é só de conduta. Impõe-se, ainda, o resultado no sentido normativo do termo, ou seja, dano ou perigo ao bem juridicamente tutelado. A doutrina vem, reiteradamente, negando os delitos de perigo abstrato. Com efeito, não faz sentido punir pela simples conduta, se esta não trouxer, pelo menos, probabilidade (não-possibilidade) de risco ao objeto jurídico" (REsp 34.322-0-RS-DJU de 2-8-93, p. 14.295).

Com a hipertrofia atual no Direito Penal, e a impossibilidade de catalogar os bens jurídicos que possam ser suscetíveis de ofensa para servir de escopo para a atividade legiferante, estatui-se que o legislador, para selecionar os bens jurídicos, deve proceder dentro dos limites da Constituição. A ameaça penal somente é justificada quando o bem jurídico é "constitucionalmente legítimo" e conta com "importância social" [11]. A Constituição não proporciona critérios de orientação positiva que marquem o que deve ser bem jurídico com caráter prévio à sua consagração normativa, mas sim proporciona critérios interpretativos com relação ao alcance do bem jurídico uma vez que este foi elevado à regulação positiva [12].

Tendo em vista esses obstáculos para a garantia do ius libertatis na atividade legiferante penal, é preciso caminhar no sentido de outra função do princípio da ofensividade: a dogmática e interpretativa.Função que trabalha no sentido de limitar o ius poenale. E, essa limitação viria, primeiramente, quando do oferecimento e recebimento da denúncia.

De acordo com o artigo 43, I do Código de Processo Penal, a denúncia ou a queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime. Nucci (2002, p.132), explicando o inciso I do artigo 43 do Código de Processo Penal, diz que será rejeitada a denúncia ou a queixa quando houver inexistência cabal de crime, ou seja, analisa os três elementos indispensáveis para a caracterização de um fato como delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) e a ausência de tipicidade, constatando não haver tipicidade em dois momentos: quando o fato não se encaixa em qualquer tipo penal abstrato, desde o princípio, trata-se de impossibilidade jurídica do pedido e quando em tese, o fato se amolda à lei penal, possibilitando o início da ação penal, para, então, constatar-se, durante a instrução, que é atípico, proferindo então, uma decisão de mérito absolvendo o réu.

O fato se amoldando à lei penal, como reza a tipicidade na teoria do delito, ou seja, mera subsunção formal à letra da lei, não pode prosperar num Estado Democrático de Direito. Expor uma pessoa aos dissabores de uma instrução penal para depois averiguar a atipicidade, ou seja, a não ofensividade da conduta perante o bem jurídico penal tutelado, não condiz com a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e valor-síntese de outros princípios constantes na Constituição Brasileira de 1988.


Notas

01. Artigo 1º da Constituição Federal de 1988.

02. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 1099. In: O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, pág. 39.

03. A dignidade humana se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício os direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparecem como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. (Moraes, 2000, pág. 60).

04. José Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, Saraiva, 1956, vol. 2, p. 18.

05. Para o autor, a culpabilidade é pressuposto da pena e não requisito ou elemento do crime. Damásio cita René Ariel Dotti, que entende que a culpabilidade deve ser tratada como um pressuposto da pena, merecendo por isso, ser analisada dentro deste quadro e não mais em setor da teoria geral do delito: "O crime como ação tipicamente antijurídica é causa da resposta penal como efeito. A sanção será imposta somente quando for possível e positivo o juízo de reprovação que é uma decisão sobre um comportamento passado, ou seja, um posterius destacado do fato antecedente". (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal.Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 457).

06. O autor entende que na doutrina atual vão se impondo duas idéias fundamentais com relação à definição de delito: a) seus dois pilares básicos são a antijuridicidade e a culpabilidade; b) a antijuridicidade significa aqui objetiva contrariedade ao Direito Penal. Delito é um fato penalmente antijurídico e pessoalmente imputável. (Derecho penal- Parte General. 5ª ed., Barcelona, Tecfoto, 1998, p. 110).

07. Bitencourt, 2002, p. 199.

08. Gomes, 2002, p. 76.

09. Há uma ordem mínima que as normas devem guardar entre si, impedindo que uma norma proíba o que a outra ordena, como também impede que uma norma proíba o que a outra fomenta.Tipicidade conglobante é a averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim, conglobada na ordem normativa.Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal, isto é, à adequação, à formulação legal, e sim, que deva evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário, que esteja proibida à luz da consideração conglobada da norma. Zaffaroni e Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral, pág.459e 549.

10. A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos vazios. Para que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas. Infelizmente, no estágio atual de nossa legislação, o ideal de que todos possam conhecer as leis penais parece cada vez mais longínquo, transformando-se, por imposição da própria lei, no dogma do conhecimento presumido, que outra coisa não é senão pura ficção jurídica. Francisco de Assis Toledo, 1999, p. 29.

11. Gomes, 2002, p. 102.

12. Mendez Rodriguez, Los delitos de peligro y sus técnicas de tipificación, p. 27, In: Norma e Bem jurídico no Direito Penal. Luiz Flávio Gomes, São Paulo: RT, 2002, p. 103.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOSCHI, Aline Seabra. Dignidade da pessoa humana e garantismo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3967. Acesso em: 25 abr. 2024.