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Relativização da vulnerabilidade nos crimes de estupro de vulnerável

Relativização da vulnerabilidade nos crimes de estupro de vulnerável

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O presente artigo traz alguns apontamentos acerca da relativização da vulnerabilidade nos crimes de estupro de vulnerável, de modo a afastar a vulnerabilidade em alguns casos concretos como será adiante demonstrado.

O crime de estupro de vulnerável está previsto no artigo 217-A, caput, do Pergaminho Penal, nos precisos termos:

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. 

§ 1o  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

              Ocorre que a vulnerabilidade da vítima não pode ser entendida de forma absoluta pelo critério etário, devendo ser analisada em cada caso à vista de suas particularidades, sob pena de se configurar aplicação indiscreta da responsabilidade penal objetiva.

              Nessa esteira, a Doutrina[1] hodiernamente afirma que “a tutela do Direito Penal, no campo dos crimes sexuais, deve ser absoluta, quando se tratar de criança (menor de 12 anos), mas relativa ao cuidar do adolescente (maior que 12 anos)”.

Não se pode negar o fato de que as vítimas, muitas vezes, já iniciaram sua vida sexual, tendo mantido outras relações sexuais, fato que aponta para uma evolução mais precoce em relação à sexualidade dos adolescentes. Deixando claro, do ponto de vista a ser analisado no caso concreto, que não há qualquer evidência do emprego de violência ou ameaça apto a ensejar o crime de estupro.

              Nesses casos (relação sexual entre um maior e um adolescente), não obstante presente a tipicidade formal ou objetiva (descrição objetiva do tipo penal – art. 217-A, CP) a tipicidade subjetiva – caráter psicológico do agente – não restará perfeitamente caracterizado, na medida em que não se vislumbra a lesão ao bem jurídico tutelado, qual seja, a dignidade sexual.

              Interessante colacionar, a esse respeito, trecho de entrevista concedida pelo médico hebiatra Dr. Maurício de Souza Lima, coordenador do Ambulatório dos Filhos de Mães-Adolescentes do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, membro da Associação Paulista de Adolescentes e do Departamento de Adolescentes da Sociedade de Pediatria de São Paulo, e autor do livro “Filhos Crescidos, Pais Enlouquecidos” (Editora Landscape, SP, 2006), ao também médico Dr. Drauzio Varella:

“Os jovens estão despertando cada vez mais cedo para a vida sexual. Se pensarmos que aos 15 anos 50% dos meninos e meninas já tiveram a primeira relação sexual, temos de concluir que a iniciação sexual está acontecendo mais cedo. Comparado com os dados obtidos não muitos anos atrás, o primeiro beijo também é uma experiência que ocorre mais cedo. Sem dúvida, essa precocidade é estimulada pelos meios de comunicação deste século XXI - Internet, TV, imprensa falada e escrita, bancas de jornal, etc. – e até por muitos pais que, por exemplo, aplaudem a dança erotizada da menina de cinco anos, mas se assustam e ficam preocupados quando ela, aos dez anos, começa a namorar.”

Ignorar a realidade social e tomar com objetividade cega o preceito legal ora discutido conduziria à responsabilidade penal objetiva, sem análise de dolo ou culpa, criminalizando-se a conduta do ato sexual por si, com um falso moralismo.

A título de argumentação, seria o caso, portanto, de se deflagrar a persecução penal de todos os pais dos bebês nascidos de mães adolescentes? Ou então seria fomentar a “paternidade irresponsável”, já que ninguém se habilitaria a assumir a paternidade dessas crianças sabendo do risco de serem condenados à pena de 8 a 15 anos?

Por certo é louvável a iniciativa do legislador para punir mais severamente os crimes sexuais praticados contra vítimas menores, especialmente aquelas tidas como vulneráveis. Para tanto, foi necessária a busca de um critério limitador, o cronológico, além das condições biopsicológicas especiais.

Todavia, não se pode afastar as peculiaridades de cada caso concreto. Do contrário, estar-se-á punindo, com a mesma severidade, tanto aquele que mantém relações sexuais com sua namorada adolescente, quanto o contumaz pedófilo doentio que se aproveita da fragilidade da criança ou adolescente.

              Justamente por conta desta desproporcionalidade em punir condutas totalmente diversas, os Tribunais pátrios vêm relativizando o estupro de vulnerável em casos envolvendo casais de namorados, estando presentes a consciente e deliberada concordância com o ato sexual por parte da vítima, diante da atipicidade material concernente à conduta.

              Neste sentido segue jurisprudência:

Ementa: APELAÇÃO CRIME. CRIMES SEXUAIS CONTRA VULNERÁVEIS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RELAÇÃO DE NAMORO ENTRE VÍTIMA E RÉU. RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Os elementos de convicção constantes dos autos demonstram que a vítima (com 12 anos de idade) e o denunciado (com 18 anos de idade) mantiveram relacionamento amoroso e sexual por determinado período. Tal conduta, em tese, subsume-se ao disposto no art. 217-A do Código Penal. No entanto, a vulnerabilidade da vítima não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário - o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva -, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades. Afigura-se factível, assim, sua relativização nos episódios envolvendo adolescentes. Na hipótese dos autos, a prova angariada revela que as relações ocorreram de forma voluntária e consentida, fruto de aliança afetiva, revestida de peculiaridades que permitem a relativização de sua vulnerabilidade. Como consequência, a conduta descrita na inicial acusatória não se amolda a qualquer previsão típica, impondo-se a confirmação da absolvição do réu com base no art. 386 , III , do Código de Processo Penal . Afastada a tipicidade do fato imputado ao acusado, não há falar em conduta omissiva por parte da denunciada - mãe da vítima -, pelo que vai ratificado o decreto absolutório proclamado em seu favor. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Crime Nº 70056571656, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 18/12/2013).

                       

Portanto, é necessário ao julgador, como intérprete da lei, apreciar o caso de modo concreto e fazer aplicar a lei em seus termos, relativizando a vulnerabilidade ao caso concreto, de modo a evitar punição objetiva no Direito Criminal.

[1] Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13. Ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pg. 990, 2013.


Autor

  • Rafael Leandro Lorencetti

    Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Especialista em Direito Público: Constitucional e Administrativo pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Ex-analista jurídico da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina.

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