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Ordenação constitucional da cultura

Ordenação constitucional da cultura

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O presente artigo trata da maneira como a Constituição Federal de 1988 disciplinou a matéria de Cultura, delimitando, assim, sua amplitude e nuances.

Introdução

A Constituição da República de 1988, dentre as muitas inovações que trouxe, promoveu o protagonismo da matéria cultural. Não só, o constituinte redimensionou o próprio conceito desta matéria e, a partir deste, construiu um complexo ordenamento: a Cultura deixou de ser mera expressão simbólica do projeto nacional, branco e europeu – materializado na forma de uma erudição elitista e estranha aos costumes populares – para abarcar a totalidade do processo civilizacional brasileiro, em suas diferenças e contradições; entraram em cena os elementos africanos e nativos, mas também inclusive os próprios elementos não-civilizados como a cultura indígena e quilombola.

No momento em que a Constituição reconhece essa dimensão profunda da Cultura, o Estado assume uma função que se desdobra primeiro como protetor das manifestações e obras culturais e, depois, como incentivador das mesmas, caso assim seja demandado. O Estado, pois, atua em sentido negativo, protegendo, por exemplo, o patrimônio público e sem sentido positivo, incentivando e fomentando a produção cultural, a qual vem da sociedade. A Ordenação da Cultura estabelecida em 1988 não admite, pois, uma “Cultura de Estado”, mas sim coloca o Estado em função da Cultura enquanto produção da coletividade brasileira – e esta produção é amplíssima.

Tampouco a Cultura toma forma restrita da obra de arte ou da manifestação em si: a delimitação do objeto cultural se torna imprescindível, pois existe a possibilidade de tutela judicial e administrativa no âmbito de sua preservação; este não compreende apenas o objeto físico, embora possa se reportar a objetos corpóreos – uma relíquia histórica, um exemplar de um museu natural etc – ou incorpóreos – uma dança, a culinária típica de algum lugar etc – em virtude do que estes possuem de importância simbólica e afetiva para o projeto nacional – como vínculo com a fundação da nação, sustentáculo do presente histórico e norteador para o futuro.

A Cultura, pois, é sempre imaterial, muito embora se apresente a priori tanto na forma concreta quanto abstrata: o que interessa, contudo, é essa imaterialidade simbólica bastante particular que definiremos mais adiante.

Enquanto as cartas constitucionais brasileiras anteriores reservavam um espaço pouco relevante à matéria da Cultura1, a Lei Maior de 1988, sem sombra de dúvida, gerou um giro copernicano. Este presente estudo sobre a ordenação constitucional da cultura, portanto, se estruturará no tripé de análise constituído por três premissas: (1) o conceito de Cultura contido na Constituição da República é amplo e plural; (2) o papel do Estado como garantidor, protetor e incentivador da produção cultural e (3) a existência do objeto cultural é de ser imaterial particular, o que pode se manifestar primeiramente em bens e manifestações concretas ou abstratas.

1. O Conceito de Cultura

O conceito de Cultura sempre dividiu especialistas e estudiosos, sobretudo quando os debates acerca disso se tornam centrais em virtude da moderna Antropologia: a máquina colonial europeia, ao se deparar com coletividades humanas intensivamente diferentes dos seus paradigmas simbólicos, precisou desenvolver um aparato conceitual – embora também prático e técnico – capaz de transcender fronteiras aparentemente intransponíveis do sentido.

A partir do negativo, a incapacidade de entender o sentido das significações, significados e significantes e símbolos coletivos, se passou a entender esse enorme volume de coisas de abstratas, não sem certo equívoco e confusão, como “cultura”.

Etimologicamente, “cultura” vem do latim e tem a mesma origem de “cultivo”, pois diz respeito à dimensão da atividade humana de transformação do solo e, logo, do ambiente natural: a Cultura, pois, aparece como a base do plantio – daí que dizemos agricultura –, isto é, como o conjunto de coisas pelo qual os humanos, mediante o emprego de saberes específicos, produzem elementos que lhes eram necessários, mas que, até então, tinham acesso apenas pelos ciclos da natureza.

Talvez por isso, a palavra “culto”, na forma de substantivo, apareça entre nós como o modo própria de veneração de uma religião ou feito a uma divindade: a associação de certos deuses do panteão romano à colheita e à fertilidade certamente consubstanciava isso.

Segundo os estudiosos é consensual que quem retirou “cultura” do sentido literal e construiu o conceito atual, por metáfora, foi Marco Túlio Cícero nas Tusculanas, ao se referir a uma certa “cultura da alma” que seria a filosofia2. A partir daí, a Cultura passa a se referir a uma dimensão abstrata e, ao mesmo tempo, fundante do homem como não deixava de ser, na prática a cultura no sentido originário.

A partir desse giro, a Cultura foi uma dimensão abstrata complexa, uma vez que se consubstanciava em um conjunto de saberes expresso por uma prática. Obviamente, a agricultura contemporânea se realiza na esfera econômica e é regida não apenas pelas normas correlatas como, antes de tudo, pelas próprias regras técnicas de utilidade e funcionalidade. Em si, a agricultura atual se reporta ao campo da civilização, muito embora a dimensão imaterial e simbólica da qual esta se projeta é, irremediavelmente, cultural.

A cultura da filosofia antiga, cujo sentido originário é metafórico e específico, guarda relação com a cultura atual no sentido de ser uma esfera abstrata, composta por vários saberes de determinado coletivo humano: é, enfim, não apenas o projeto de uma coletividade humana situada no tempo e no tempo, como aquilo que estrutura seu plano se significados.

Por outro lado, a Civilização se reporta ao conceito romano de cidade, isto é, civitas, a qual corresponde a substantivação do verbo fazer ou tornar cidade: entre os romanos, a cidade tinha um sentido concreto que se reportava à oposição ao espaço selvagem, à natureza natural.

Civilização, pois, se reporta ao conjunto de objetos técnicos concretos, definidas pelo critério funcional e utilitário que as fixam a finalidade de cindir e, ao mesmo tempo, permitir aos humanos superarem as contingências da vida selvagem – literalmente, a vida na selva.

Toda Civilização tem por trás uma Cultura, embora nem toda Cultura resulte em uma Civilização, pois a Cultura consiste em intervenção sensível, consciente e determinada dos humanos, em sua imaginação criadora, no ambiente; isto nem sempre se dá no intuito de nos cindir da natureza, o que é apenas uma das consequências possíveis.

Os nativos do Brasil e da África possuem todos uma cultura, embora não tenham se civilizado; aquelas culturas não se voltam à construção de objetos técnicos que os façam transcender à natureza, mas sim que tão somente os permitam se adaptar a esta e viverem melhor na imanência de suas existências.

A Cultura sempre foi, pois, o conjunto de saberes que dá sentido às coisas enquanto a Civilização é a parafernália técnica – no sentido moderno de técnica, obviamente – que é um dos desdobramentos possíveis dessa Cultura.

Por exemplo, uma velha espada do exército é uma peça de civilização em desuso, mas na medida que é exposta em um museu, se torna objeto cultural, pois ela não está lá para cortar ou matar um adversário numa guerra, mas sim pelo sentido histórico que ela representa para a nação brasileira. Já uma caneta, que decorre de certo paradigma cultural de escrita e forma de escrever é, por outro lado, um mero objeto funcional, logo, civilizacional.

Na Constituição Federal, o conceito de Cultura faz referência ao processo civilizatório nacional. Parece uma contradição em termos do capítulo anterior, mas não é: o processo civilizatório, ele mesmo, não é uma peça civilizatória, mas o dispositivo mediante o qual o projeto cultural faz civilização: e uma civilização bastante determinada, um Estado-nação com os contornos modernos.

Como bem observado pelo professor José Afonso da Silva3, a influência da antropologia de Darcy Ribeiro4 foi fundamental para a Carta Maior de 1988: o processo civilizatório lá descrito é o que ele é e não um paradigma normativo como antes se via; isto é, não é o processo civilizatório conforme uma determinada visão, um determinado projeto nacional branco e europeu, mas a própria maneira – complexa e em certa medida caótica – como a miscelânea de gentes que fundou e construiu o Brasil autoproduz seu imaginário simbólico.

A partir daí, não apenas o conceito da amálgama de outras culturas, em sincretismo, que produziram a civilização brasileira vem à tona como, também, algumas dessas culturas em sua forma não-civilizacional como ocorre com os índios5 é abarcado pelo sistema protetivo cultural da Constituição de 1988.

Não resta dúvida, pois, que tal assertiva no campo normativo decorra do fato do Brasil estar constituído como Estado Democrático, logo, a Cultura em questão não pode ser tomada a priori como um item meramente prescrito – como adotado outrora, a Cultura como certo projeto nacional restrito e pré-determinado –, mas uma prescrição calcada na verdade científica mais provável acerca da nossa cultura em toda sua radical pluralidade.

Por outro lado, a realização tardia de uma ordenação constitucional do bem-estar no Brasil coloca o plano constitucional atual diante de um problema: se, por um lado, o impasse civilizacional e racial foi resolvido na Lei de Maior, por outro lado, os novos tempos trouxeram novos desafios que são precisamente as tendências trazidas pela universalização total da cultural de massa – que, por seu turno, é técnica e industrial – e a homogeneização da cultura na forma da globalização.

O dilema em questão gira em torno da própria maneira como a produção cultural em massa toma espaço e, inclusive, suprime produções culturais originárias. Nem é preciso dizer que a globalização importa, sobretudo, no fato de que o plano das significações em escala internacional tendam à homogeneização – como se um dia viesse a ter o mesmo padrão, embora com algumas pequenas diferenças ocasionais.Teríamos, pois, uma única cultural global com meras variantes geográficas.

Do outro lado, a cultura de massa, que importa na junção entre um determinado paradigma cultural – calcado não em uma nação, mas em uma forma de pensar e sentir determinada pelo sistema de produção – e na forma peculiar como ele cria objetos técnicos toma o espaço de uma cultura autêntica. O terreno indeterminado no qual se situa a cultura de massa, que no nosso plano constitucional faz um zigue-zague entre a ordenação cultural e a econômica.

A síntese entre cultura de massa e globalização – mais do que isso talvez, a globalização como resultado da expansão da cultura de massa – produzem um quadro contraditório sobretudo no que diz respeito à regulação da cultura: é certo, no entanto, de que a nossa Ordem Constitucional, por força do art. 215, caput, proteja a cultura nacional, muito embora ela não possa barrar a difusão de cultura estrangeira, nem tenha meios de vetar de qualquer modo a cultura de massa até pela liberdade de iniciativa.

O que a ordenação constitucional da Cultura faz neste ponto é proteger a cultura nacional para que esta, em seus variados bens e manifestações, não desapareça e, por outro lado, por meio do Plano Nacional de Cultura (art. 215, §3º) realiza o incentivo à preservação e promoção da mesma

2. O Papel do Estado na Cultura

O Papel do Estado Democrático no que toca ao plano da cultura é tanto negativo quanto positivo. O Estado protege as formas de expressão cultural e, também, as promove. Em ambos os casos a sociedade civil é protagonista, seja naquilo que o Estado, por força da Constituição é obrigado a permitir ou os itens que ele pode ou deve incentivar.

No caso brasileiro, tem-se a competência concorrente entre os entes federativos para legislar, com o adendo do Sistema Nacional de Cultura, instituído recentemente e que segue, por seu turno, uma forma semelhante ao do Sistema Único de Saúde.

A respeito do primeiro item, temos o plano da liberdade no plano da Cultura. No amplo rol de liberdades previsto pelo art. 5º da Constituição da República temos, já em seu inciso II, a postulação de liberdade em sentido amplo: só somos obrigados a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de Lei. Tal prescrição fundamenta, inclusive a liberdade de atuação e ação cultural.

Ainda assim, a expressão cultural se diferencia sobremaneira disso, pois possui uma característica qualitativa: a manifestação cultural não é qualquer manifestação, ela possui um estatuto próprio como se vê, por exemplo, naquilo que toca à manifestação artística. Os fundamentos para tanto se encontram nos arts. 5º, IX, 215 e 220, §§ 2º e 3º.

A Belas Artes enquanto fruto mais belo e exuberante do complexo cultural é página a parte: não resta dúvida que, via de regra, a Constituição assegura a liberdade, não permitindo censura prévia às atividades intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX) ao passo que veda qualquer censura – a posteriori – de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 2º). Isso quer dizer que a liberdade artística é uma forma própria no plano normativo constitucional.

De fato, praticar nudismo numa obra de arte como uma peça teatral ou um filme é radicalmente diferente de fazê-lo na rua. Usar uniforme das forças armadas é inadmissível para um civil, o mesmo já não se aplica a um ator encenando uma personagem militar. É a chamada licença poética.

Obviamente, como nada é simples em matéria jurídica, dois problemas adicionais se abrem: um deles é da incerteza da própria consideração sobre o que é obra de arte ou não – ainda mais diante de uma profusão de novas formas de expressão como o happening – para delimitar o campo de liberdade em jogo; o outro é, mesmo considerando determinada como artística, qual o limite para essa liberdade?

Isto que chamamos de Arte vem mais precisamente do conceito bizantino de Belas-Artes, rapidamente assimilado no ocidente via derrocada do Império e a migração de artistas do oriente rumo à península itálica, no processo que resultou na Renascença. De lá para cá, com a divisão industrial do trabalho, um rol de atividades humanas não industriais e não meramente técnicas passaram a ser consideradas como “(Belas-)Arte(s)”. Não há um critério satisfatório em matéria conceitual, tampouco em matéria jurídica, para distinguir propriamente a “arte” da “atividade qualquer”.

De tal sorte, determinadas performances acabam até criminalizadas: quando surge uma nova forma artísticas, e esta se presta a fins de contestação social, não raro ocorrem desastres legais mesmo em democracias sólidas. Do nosso ponto de vista, a inequívoca constituição do Brasil como Estado Democrático reserva (1) um amplo espaço para as expressões artísticas, as atuais ou outras que venham a se criar e (2) que a impossibilidade de censura artística é definitiva e só é possível determinar certos limites relativos em contraste com outras determinações normativas de caráter constitucional – como a instituição de classificação etária em virtude de todo arcabouço protetivo à criança e ao adolescente.

D'outro bordo, o Estado se encontra obrigado a proteger o patrimônio cultural brasileiro e incentivar manifestações culturais. Conceito vasto e complexo, o patrimônio cultural, este se encontra previsto no art. 216, CR:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A partir daí, se pode ter a ideia da abrangência do conceito de Cultura na Lei Maior: é o próprio complexo conceitual que dá significado à civilização brasileira e aquilo que não é civilizado. Ainda que importe, a priori, em bens concretos e abstratos, tornamos a repetir, que a natureza cultural é determinada pelo significado significador, obviamente imaterial, que eventuais objetos, inclusive naturais, possuem no nosso imaginário coletivo. Lá se encontram, inclusive, as bases lógicas e abstratas da nossa produção tecnológica.

Ainda acerca do art. 216, CR temos no seu conteúdo final:

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

§ 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

O Estado, pois, possui inúmeros instrumentos administrativos e judiciais para a consecução do inequívoco dever constitucional de preservação do patrimônio cultural.
 

Ainda, o Sistema Nacional de Cultura, recentemente introduzido no sistema constitucional pela Emenda à Constituição de nº 71, propõe claramente:

Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.

É a partir daí que se desdobra o outro aspecto da dimensão positiva do direito cultural constitucional: O Estado, em parceria com a sociedade, precisa promover e gerir políticas públicas de cultura. Não se trata mais do aspecto de garantia ao exercício, isto é, a prestação negativa do Estado de Direito Democrático face à Cultura, da prestação positiva de preservar o patrimônio, mas sim da gestão e promoção de políticas públicas nessa direção.
 

3. O Objeto Cultural e Sua Tutela

Como já abordamos, a delimitação do objeto cultural é digno de controvérsias. Sobretudo nos dias atuais nos quais a cultura de massa tende a conduzir a uma enorme confusão.

A Cultura, seja como for, é o âmbito no qual se encontram objetos concretos ou não, naturais ou artificiais cujo significado é atribuir significados e produzir significância. Muitos povos ameríndios possuíam a técnica da metalurgia e conheciam o ouro, mas seus artefatos dourados tinham uma significação diferente do que para os Europeus: um bracelete de ouro era um objeto técnico comum entre o povo asteca – mexica – e para os colonizadores espanhóis, mas como os primeiros não lhe atribuíam valor de troca qualificada em termos monetários, logo, o que lhes era corriqueiro, ao mesmo tempo, despertava a cobiça do colonizador.

O fator que estabelece a diferença na forma de compreender o mesmo objeto técnico é, pois, a Cultura. Assim, é cultural o objeto que se manifestando na concretude ou não.

No plano normativo, a UNESCO elaborou uma série de recomendações acerca dos bens culturais, saber a de sua 9ª conferência, a qual estabelece os princípios das escavações arqueológicas (1956), a da 12ª reunião, que visa à proteção da beleza e do caráter de lugares e paisagens (1962), a da 15ª reunião a respeito da execução de obras públicas e privadas (1968), a da 17ª reunião que trata da proteção cultural em âmbito nacional e, principalmente, a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972.

No caso brasileiro, o Decreto-lei n. 25 de 1937 organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. A finalidade da tutela, por óbvio, é evitar a degradação, o abandono ou a destruição total ou parcial do patrimônio cultural. No art. 4º do referido diploma podemos encontrar:

  O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:

        1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.

        2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse histórico e as obras de arte histórica;

        3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;

        4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

        § 1º Cada um dos Livros do Tombo poderá ter vários volumes.

        § 2º Os bens, que se inclúem nas categorias enumeradas nas alíneas 1, 2, 3 e 4 do presente artigo, serão definidos e especificados no regulamento que for expedido para execução da presente lei.

No campo geral, temos de acordo com o art. 216, § 1º da Constituição, um rol de medidas protetivas como o inventário, registros, vigilância, tombamento, desapropriação além de outras formas de acautelamento e preservação, dentre os quais podemos destacar a ação popular e ação civil pública.

Conclusão
 

O esforço magnífico que a Constituição de 1988 realizou no sentido de ampliar o campo de abrangência da atuação do Estado face à cultura e, ao mesmo tempo, reconhecer um conceito mais amplo e também plural ao ambiente cultural.

A Cultura, pois, não é mero apêndice da Constituição, é um dos seus pontos de equilíbrio. É sobretudo, modo de vida, e mais até do que isto, o próprio fator de significação das coisas que nos rodeiam.

O papel do Estado democrático, pois, é garantir o livre exercício da cultura, protegê-la e, por fim, promovê-la, tanto pelo incentivo às atividades como, também, pela garantia do acesso à cultura como direito fundamental.

Não é uma tarefa simples, mas certamente é imprescindível. A democratização da cultura brasileira é tarefa central para os próximos anos, a qual sem exagero depende a nossa própria democracia.
 

Bibliografia

CÍCERO, Marco Túlio. Tusculanes [edição bilíngue latim-francês traduzida por Jean Marie Nisard]. Livro II, IV, disponível em <http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/Ciceron/tusc2.htm>,

RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras.

NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988, São Paulo, Verbatim, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 15a ed.

__________________. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo, Malheiros.

1A Constituição de 1969, derradeira do ciclo militar, mencionava a Cultura apenas em seu derradeiro artigo de forma vaga:

Art. 180. O amparo à cultura é dever do Estado.

Parágrafo único.Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.

Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm.> último acesso em 25.11.2014.



 

2 Cícero, Marco Túlio. Tusculanes [edição bilíngue latim-francês traduzida por Jean Marie Nisard]. Livro II, IV, disponível em <http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/Ciceron/tusc2.htm>, último acesso, 30.11.2014.

“sic animi non omnes culti fructum ferunt. Atque, ut in eodem simili verser, ut ager quamvis fertilis sine cultura fructuosus esse non potest, sic sine doctrina animus; ita est utraque res sine altera debilis. Cultura autem animi philosophia est”

3Silva, José Afonso da. Ordenação Cultural da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001.

4Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras.

5 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições [grifo nosso].

Extraído de <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>, acesso em 30.11.2014


Autor

  • Hugo Thomas de Araujo Albuquerque

    Advogado desde 2013, atua como consultor nas áreas de direitos humanos, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012). Desenvolve pesquisa de Mestrado Acadêmico sobre a tensão entre minorias e maiorias na democracia contemporânea -- no núcleo de pesquisa de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo desde 2013. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos, Políticas Públicas, Estado de Exceção, Lutas Constituintes, Minorias e Democracia. <br><br>

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