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A Fazenda Pública como parte no Juizado Especial

A Fazenda Pública como parte no Juizado Especial

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Resumo informativo

O presente estudo, de natureza eminentemente qualitativa, tem como escopo verificar a possibilidade da Fazenda Pública figurar como parte nos Juizados Especiais. A nosso ver, encontra-se plenamente justificada a adoção de privilégios processuais em favor da Fazenda Pública, eis que esta encontra-se em situação diversa do particular, seja pela conjuntura estrutural burocrática do Estado em razão da incumbência de guarda e execução dos interesses públicos, de toda a coletividade, sendo portanto metaindividuais. É o caso de se proporcionar o tratamento isonômico – tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais – igualdade essa no sentido de garantia constitucional fundamental que corresponde a isonomia real e substancial, e não meramente formal [1]. Adotar porém critérios discriminadores entre as próprias Fazendas Públicas carece de suporte principiológico, onde concluímos estar revogado o § 2º do art. 3o da lei 9.099/1995 por flagrante inconstitucionalidade em face da violação ao princípio da isonomia, sendo plenamente possível a demanda das Fazendas Públicas Estadual, Distrital e Municipal perante os Juizados Especiais Cíveis, inclusive excetuando-se a satisfação dos créditos pelo precatório requisitório, aplicando-se os pagamentos de pequeno valor, previstas no § 3º do art. 100 da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional 30/2000.


Conceito da expressão "Fazenda Pública"

Antes de começarmos o estudo acerca da possibilidade de invocação da Fazenda Pública perante os Juizados Especiais, conveniente se faz saber o que se deve entender pela expressão "Fazenda Pública".

Em definição perfunctória, Fazenda Pública seria o "conjunto de bens patrimoniais, públicos e privados, da União, Estado ou Município e dos seus órgãos arrecadadores, fiscalizadores, administrativos e distribuidores; erário, tesouro público" [2].

Abstraindo conceito mais preciso, Fazenda Pública seria a "denominação genérica de qualquer espécie de Fazenda, atribuída às pessoas de Direito Público. Nela, assim, se computam as Fazendas Federal, Estadual e Municipal. E, desta forma, Fazenda Pública é sempre tomada, em amplo sentido, significando toda soma de interesse de ordem patrimonial da União, dos Estados federados ou do Município, pois que, sem distinção, todas se compreendem na expressão." [3]

Porém, excedendo a seara terminológica e letrada, a interdisciplinaridade da Ciência do Direito nos leva a diversas definições técnicas da expressão Fazenda Pública.

No que tange ao Direito Administrativo, MEIRELLES nos assevera que "a Administração Pública, quando ingressa em juízo por qualquer de suas entidades estatais, por suas autarquias, por suas fundações públicas ou por seus órgãos que tenham capacidade processual, recebe a designação tradicional de Fazenda Pública, porque o seu erário é que suporta os encargos patrimoniais da demanda" [4].

Alguns doutrinadores tendem a equiparar as definições "finanças públicas" e "fazenda pública", pois de acordo com Adolfo Wagner, "fazenda" deriva-se de chasêna – câmara ou gabinete do tesouro. Seria pois o vocábulo que utilizado para apontar o emprego do dinheiro público, assim compreendidos nos recursos e despesas do Estado [5].

Consoante o magistério de MONTEIRO, "o conceito de Fazenda Pública alcança e abrange apenas as entidades públicas (autarquias, Estados, União Federal, Distrito Federal e Municípios), que arrecadam diretamente, com autonomia administrativa e financeira própria, ou recebem tributos e contribuições criados por leis tributárias ou previdenciárias, observada a competência impositiva constante expressamente da própria Constituição Federal" [6].

Partindo então para as lições de Direito Processual Civil, quando o Estado, de alguma forma vem a juízo por qualquer de suas entidades autárquicas ou estatais, ou por seus órgãos que tenham capacidade processual, este recebe a titulação de Fazenda Pública [7], apesar de que in stricto sensu devesse significar apenas o Estado em juízo litigando no âmbito financeiro [8].

Ainda no palio do direito adjetivo, GRECO FILHO, ao definir o conceito de fazenda pública para os fins do art. 117 da Constituição Federal de 1967, assentou que "o sujeito passivo da execução contra a Fazenda Pública é necessariamente pessoa jurídica de direito público, ou seja, a União, os Estados e os Municípios, suas respectivas autarquias, os Territórios e o Distrito Federal." [9]

DINAMARCO ao dispor sobre a matéria, assenta que a Fazenda Pública é a personificação do Estado no que lhe tange as obrigações patrimoniais as quais se vincula juridicamente. Afirma ainda que em âmbito administrativo a expressão em estudo significa a administração financeira do Estado, e finaliza concluindo que no direito processual civil esta eqüivale ao Estado em juízo [10].

Já FERRAZ denomina como Fazenda Pública "um conjunto de órgãos que, segundo alguns, se apresenta exatamente como a vivência dinâmica do Estado em juízo; segundo outros, como a personificação fiscal do Estado; segundo outros mais, como sinônimo de Estado; mas, de qualquer maneira, sempre será uma conjugação de aparatos de ordem estatal" [11].

Conforme as conclusões de SILVA, o conceito Fazenda Pública restringe-se apenas às pessoas jurídicas de direito público interno da Administração Pública, já que as pessoas jurídicas de direito privado não detém a prerrogativa da impenhorabilidade de seus bens [12].

Aprimorando ainda mais o conceito de Fazenda Pública, VIANA assevera que em seus limites incluem-se as Autarquias e Fundações Públicas por também constituírem pessoas jurídicas de direito público interno, já que exercem o papel de longa manus do entes estatal [13].

Vale ressaltar que a natureza autárquica dos Conselhos de Fiscalização Profissional os enquadram no conceito Fazenda Pública, já que estes cumprem a competência da União de "organizar, manter e executar a inspeção do trabalho" [14], possuindo por determinação legal personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e patrimonial e financeira, obrigados a submeter suas contas ao Tribunal de Contas da União, em virtude das contribuições que cobram das pessoas físicas e jurídicas neles inscritas serem tributos [15].

Não figuram caracterizadas como Fazenda Pública as sociedades de economia mista e as empresas públicas "vez que mesmo constituídas por recursos públicos, por serem pessoas jurídicas de direito privado, não gozam da prerrogativa da indisponibilidade de seus bens e portanto, ficam sujeitas à execução como qualquer outra empresa formada exclusivamente por capital particular. Aliás, é a própria Carta Magna que veda a esses empreendimentos, constituídos para exploração de atividade econômica, qualquer prerrogativa em relação às empresas particulares, ao estatuir no inciso II, parágrafo primeiro, do art. 173 que a lei disporá sobre a ‘sujeição ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários’" [16].

Porém, há que se fazer distinção entre as empresas estatais prestadoras ou exploradoras de serviços públicos e as exploradoras de atividade econômica, pois seus regimes jurídicos são diferentes. As primeiras se inserem no conceito de descentralização de serviços pela personalização da entidade prestadora e se assemelham às concessionárias de serviço público, enquanto as segundas há a exploração de atividade econômica com natureza eminentemente privada.

Com relação a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, o Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que esta "é empresa pública criada pelo Decreto-Lei n° 509, de 10 de março de 1969, com capital constituído integralmente pela União Federal (art. 6º), gozando de privilégios equivalentes aos da Fazenda Pública" [17].

Destarte, para os fins do presente estudo, concluímos que Fazenda Pública é pessoa jurídica dotada de personalidade pública, que possua indisponibilidade de seus bens assim estabelecida por determinação legal.

Privilégios processuais da Fazenda Pública

Inicialmente, há que se analisar as prerrogativas processuais da Fazenda Pública à luz da Constituição Federal de 1988, visto que esta estabeleceu reiteradamente em seu art. 5º o princípio da isonomia.

Há os que defendam que as prerrogativas processuais da Fazenda Pública não foram recepcionadas pela Carta Constitucional de 1988, sob o argumento de igualdade formal.

No entanto, a conceituação da igualdade em relação às situações fáticas ou jurídicas carecem de critérios norteadores que o justifiquem.

O nosso sistema normativo nada mais é "do que um conjunto de significados, motivo pelo qual se mostra necessária a redefinição dos conceitos, alterando-se a ética individualista, justamente para permitir que contenha a Carta Política sistema de garantias eficazes." [18].

Se assim não o fosse, em princípio, não teríamos a definição do princípio da isonomia substancial onde recebem tratamento igual os substancialmente iguais.

Concernente ao princípio da igualdade processual, as partes devem receber tratamento igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.

Esta questão foi tida como "delicada" por CINTRA e outros, visto que as prerrogativas processuais não devem superar o estritamente necessário para que se mantenha um equilíbrio [19].

A nosso ver, encontra-se plenamente justificada a adoção de privilégios processuais em favor da Fazenda Pública, eis que esta encontra-se em situação diversa do particular, seja pela conjuntura estrutural burocrática do Estado em razão da incumbência de guarda e execução dos interesses públicos, de toda a coletividade, sendo portanto metaindividuais. É o caso de se proporcionar o tratamento isonômico – tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais – igualdade essa no sentido de garantia constitucional fundamental que corresponde a isonomia real e substancial, e não meramente formal [20].


A Fazenda Pública e os Juizados Especiais

Com o advento da lei 10.259/2001, que dispõe sobre os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal, diversos foram os questionamentos sobre as suas conseqüências sobre os juizados especiais estaduais/distrital.

A principal conseqüência ocorreu no âmbito dos juizados criminais, com a unificação do conceito de menor potencial ofensivo (a lei 9.099/1995 considerava esses com pena máxima até 1 ano, enquanto a Lei 10.259/2001 previu crimes com pena máxima até 2 anos). A questão resta pacificada de acordo com o Enunciado 46 editado no X Encontro do Fórum Permanente dos Coordenadores dos Juizados Criminais no Brasil, realizado de 21 a 24 de novembro de 2001, que dispõe e seguinte: "A lei 10.259/2001 ampliou a competência dos juizados especiais dos Estados e Distrito Federal para o julgamento de crimes com pena máxima cominada até dois anos, excetuados aqueles sujeitos a procedimento especial".

Tal conseqüência apenas é citada como exemplo, pois aqui o nosso escopo é demonstrar que a Fazenda Pública Estadual/Distrital/Municipal pode ser demandada perante os juizados especiais.

De início, verificamos que a previsão Constitucional para a criação dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal (parágrafo único do art.98) foi acrescentada pela Emenda Constitucional 22/1999. Com a entrada em vigor de tal dispositivo, que instituiu a previsão da litigância da Fazenda Pública Federal perante rito orientado pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, almejando sempre que possível a conciliação ou transação, cremos que o § 2º do art. 3o da lei 9.099/95 restou revogado. Tal dispositivo dispõe que "Ficam excluídas da competência do Juizado Especial as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial."

A revogação é evidente no tocante às causas "de interesse da Fazenda Pública", pois não poderia subsistir no sistema processual vigente flagrante discriminação entre as Fazendas Federal e Estadual/Distrital/Municipal. Não é lógico o cidadão poder acionar a Fazenda Pública Federal com o rito célere e informal, não tendo o mesmo acesso à justiça em causa semelhante acionada contra a Fazenda Pública Estadual/Distrital/Municipal. Segundo MORAES, "A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as disposições normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos" [21].

Ainda no mesmo sentido, GOMES, ao analisar os efeitos da Lei 10.259/2001 sobre a Lei 9.099/1995 na esfera criminal, concluiu que "Se a fonte normativa dos juizados é a mesma (legislação federal: Lei 9.099/95 e Lei 10.259/01), não se pode concordar com o argumento de que o legislador quis instituir dois sistemas (distintos) de juizados: um federal diferente do estadual. Se o legislador pretendesse isso, não teria mandado aplicar (por força da Lei 10.259/01) praticamente in totum a Lei 9.099/95 aos juizados federais. Teria criado um sistema jurídico ex novo." [22]

Acrescente-se ainda que o art. 20 da lei 10.259/2001, ao vedar a aplicação da lei no juízo estadual, refere-se apenas a onde não houver Vara Federal, ou seja, apenas nas hipóteses de delegação de competência federal, previstas no § 3º do art. 109 da Carta Constitucional. Não há vedação (e não haveria como evitá-la) dos efeitos da Lei 10.259/2001 sobre a Lei 9.099/1995 e sua conseqüente aplicação nos juízos estaduais e distritais para com as Fazendas Estaduais/Distrital e Municipal.


Conclusão

Conclui-se portanto pela revogação do § 2º do art. 3o da lei 9.099/1995 por flagrante inconstitucionalidade em face da violação ao princípio da isonomia, sendo plenamente possível a demanda das Fazendas Públicas Estadual, Distrital e Municipal perante os Juizados Especiais Cíveis, inclusive excetuando-se a satisfação dos créditos pelo precatório requisitório, aplicando-se os pagamentos de pequeno valor, previstas no § 3º do art. 100 da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional 30/2000.


NOTAS

01. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 87.

02. Dicionário Aurélio Século XXI eletrônico.

03. De Plácido e Silva, Vocabulário jurídico. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 351.

04. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994. p. 624-625.

05. MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 94.

06. MONTEIRO, Samuel. Dos Crimes Fazendários. São Paulo: ed. Hemus, 1998. p. 10.

07. ROCHA SOBRINHO, Délio José. Prerrogativas da Fazenda Pública em Juízo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. p. 28.

08. grinover, Ada Pellegrini. Benefício do Prazo. p. 18 apud NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 50.

09. greco filho, Vicente. Da Execução contra a Fazenda Pública São Paulo: Saraiva, 1986. p. 49.

10. dinamarco, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. p.138 apud federigui, Wanderley José. A Execução contra a Fazenda Pública. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 6.

11. Ferraz, Sérgio. RDP 53/54 apud Álvaro Melo Filho. O Princípio da Isonomia e os Privilégios Processuais da Fazenda Pública. Revista de Processo. São Paulo, n. 75, p. 180, abr./jun. 1995.

12. SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Execução contra a Fazenda Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 11.

13. VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Execução contra a Fazenda Pública. São Paulo: Dialética, 1998. p. 15.

14. inc. XXIV do art. 21 da CF.

15. VALLE PEREIRA, Ricardo Teixeira do. Características, Prerrogativas e Sujeições dos Conselhos de Fiscalização do Exercício Profissional. In: FREITAS, Vladmir Passos de (Coord). Conselhos de Fiscalização Profissional Doutrina e Jurisprudência, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 76.

16. ROCHA SOBRINHO, ob. cit. pg. 72.

17. STJ, RE 220.906-DF. Rel. Maurício Corrêa.

18. SCHÄFER, Jairo Gilberto. A Insuficiência dos paradigmas da teoria tradicional dos direitos constitucionais fundamentais. Revista de Informação Legislativa do Senado Federal. Brasília, n. 181, p. 209, jan./mar. 1997.

19. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo e outros. Teoria Geral do Processo. 11ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995. p. 54.

20. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 87.

21. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 65.

22. GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais, seus reflexos nos juizados estaduais e outros estudos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 20.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Artur Gustavo Azevedo do. A Fazenda Pública como parte no Juizado Especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 84, 25 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4211. Acesso em: 18 abr. 2024.