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Neurociência, Direito e memória

Neurociência, Direito e memória

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O problema das falsas memórias e a sua influência no sistema jurídico atual, levando à busca e incorporação do resultado de pesquisas científicas sobe a memória e o entendimento dos limites do reconhecimento e identificação por testemunhas.

                                   

            RESUMO

            Este trabalho visa chamar a atenção para o problema das falsas memórias e a sua influência no sistema jurídico ocidental com respeito à participação das testemunhas oculares no processo jurídico, levando à busca e incorporação do resultado de pesquisas científicas sobe a memória e o entendimento dos limites do reconhecimento e identificação por testemunhas.

            PALAVRAS-CHAVE

            Neurociência; Memória; Direito; Falsas memórias; Processo jurídico.

            I – A FORMAÇÃO DA MEMÓRIA

            A neurociência tem demonstrado ser possível obter-se um máximo funcionamento cerebral através de estímulos para a aquisição do conhecimento e memória. Cada célula nervosa comunica-se com milhares de outras. Quando novas memórias são formadas, várias conexões são fortificadas e aperfeiçoadas.

            Nesse processo, acontecem mudanças nas conexões sinápticas dos neurônios, onde as células nervosas se conectam, liberando neurotransmissores especializados para a memória. Um desses produtos químicos liberados pelas células é a acetilcolina, que é a base para muitos medicamentos que estão sendo desenvolvidos para aperfeiçoar a memória.

            Atividades mentais e físicas que estimulam o funcionamento cerebral promovem essa constante ligação em rede no cérebro, fortificando os caminhos para a memória e estimulando a produção de substâncias necessárias para o crescimento e a manutenção desses neurônios. Com o passar do tempo, novas conexões podem ser criadas decorrentes do aprendizado.

            A neurociência atual destruiu o mito antigo de que o cérebro era estático, com circuitos conectados de maneira permanente durante o desenvolvimento infantil. Isso está comprovado não ser a verdade. Pesquisas recentes em neurociência têm revelado que novos neurônios são formados em áreas do cérebro adulto, como no hipocampo, um local extremamente importante na criação de novas memórias. Essas pesquisas têm demonstrado que um dos fatores para a criação de novos neurônios é a atividade física e mental.

            A genética também tem um papel importante na formação da memória. Alguns animais nascem com a capacidade de adquirir novas memórias mais facilmente, como os cães pastores alemães. Hoje sabe-se que os genes também podem ser modificados com as experiências de vida e o meio ambiente, onde alguns genes são estimulados e outros bloqueados. Em laboratório, é possível criar seletivamente ratos mais espertos ou mais lentos no aprendizado. A manipulação seletiva dos genes é uma das abordagens para a criação de medicamentos que aperfeiçoem a memória nos seres humanos. Essa linha de pesquisa é extremamente importante para o tratamento de doenças neurológicas como o Alzheimer.

            II – EMOÇÃO, MEMÓRIA E O CÉREBRO

            Sabe-se que as emoções desempenham um papel importante na formação e evocação de memórias. Joseph LeDoux demonstrou laboratorialmente a relação do medo e memória, que é a base de muitos transtornos psicológicos, como a ansiedade, fobia, síndrome do pânico e o transtorno de estresse pós-traumático. No processo do “condicionamento clássico do medo”, um rato ouve um barulho ou vê um clarão de luz ao mesmo tempo que sofre a aplicação de um rápido choque elétrico. Depois de algumas repetições, o rato responde automaticamente ao som ou à luz com todo o padrão de resposta corporal ao choque elétrico, ainda que na ausência deste, com reações típicas de situações de perigo: o animal “paralisa”, sua pressão arterial e batimento cardíacos aumentam e ele assusta-se facilmente. (LEDOUX, 2006)

            A explicação é que o barulho ou o clarão tornou-se um estímulo condicionado, levando a mudanças psicológicas e comportamentais de resposta a uma situação de perigo, mesmo na ausência de qualquer perigo ou ameaça. Uma vez estabelecida, a reação de medo torna-se permanente, com a criação de uma memória emocional. O ativamento da região cerebral chamada amídala, que processa emoções como o medo causado pelos estímulos de som e luz, leva à comunicação com a região cerebral que processa e acumula memórias, o hipocampo, criando a memória emocional.

            A memória algumas vezes produz distorções e erros que possuem grande importância prática. Para o direito, o conhecimento sobre a criação de memórias e a relação entre emoções e memória é particularmente importante no fenômeno das falsas memórias no testemunho jurídico. Falsa memória é  um tipo de distorção da memória na qual um indivíduo tem a certeza de lembrar-se de algo que nunca aconteceu.

            Na falsa memória a pessoa reconhece um objeto, rosto, palavra ou outro estímulo que ela não encontrou previamente como se fosse a evocação de uma memória verdadeira. Falsas memórias são importantes judicialmente porque erros desse tipo podem ocorrer nos casos de depoimentos de testemunhas oculares em processos jurídicos, levando a condenações indevidas.

           

            III – OS ERROS DE MEMÓRIA

            Daniel Schacter estudou o que ele chama de sete “pecados” ou erros de memória. De acordo com Schacter, “Ainda que muito confiável, a memória humana também é falível. (...) As falhas de memória podem ser classificadas em 7 “pecados” básicos: transitoriedade, distração, bloqueio, erro de atribuição, sugestão, preconceito e persistência.” (SHACTER, 2001)

  1. Transitoriedade

A transitoriedade relaciona-se ao fato de que a lembrança dos acontecimentos torna-se menos acurada com o decorrer do tempo. A causa desse processo é atribuída não só à falha de acesso à memória que foi armazenada no cérebro como à perda ou o desfazimento progressivo dessa memória com o decorrer do tempo. A perda de informação é inversamente proporcional à frequência de uso dessa memória ou o acesso durante a vida.

Tem-se provado que a reconstituição e a relembrança das experiências desempenham um papel essencial na determinação de quais experiências serão lembradas e quais serão esquecidas. Memórias que não são acessadas com frequência costumam dissipar-se progressivamente com o passar dos anos, provavelmente por perda das conexões sinápticas para o acesso dessa memória.

  1. Distração

Um grande fator para o esquecimento decorre da falta de foco, ou falta de atenção, no momento do armazenamento da memória ou no processo de evocação dessa memória. Esse processo acontece com frequência na vida cotidiana, como não conseguir lembrar onde foi anotado um número de telefone, por exemplo, pelo fato de a mente encontrar-se ocupada com várias atividades ao mesmo tempo, com as ações ocorrendo de maneira automática.

  1. Bloqueio

           O bloqueio é uma das falhas da memória mais comuns e bem identificadas. Ele pode acontecer em momentos de stress, como o bloqueio do ator ao tentar relembrar a sua fala durante um espetáculo teatral. Outro exemplo é o chamado bloqueio “na ponta da língua”, em que a pessoa não consegue lembrar uma palavra ou um nome, mas tem consciência da memória desse item.

           O bloqueio parece ser mais pronunciado na velhice, especialmente com respeito a nomes de pessoas. Estudos de neurociência (DAMÁSIO, 2004) têm demonstrado que o bloqueio relacionado a nomes próprios está associado à atividade do lobo temporal esquerdo.

  1. Atribuição falsa

Transitoriedade, distração e bloqueio são chamdos “erros de omissão”. Quando o indivíduo necessita lembrar-se de algo, a informação desejada está inacessível ou inviável. As falhas a seguir estão relacionadas a “erros de comissão”, situações nas quais alguma memória está presente, mas existe uma falsa atribuição com respeito ao tempo, lugar ou pessoa.

A falsa atribuição é relevante para o direito no caso de testemunhas oculares que vêm uma pessoa em um contexto e a relacionam a outro, como em um depoimento no processo criminal. Um exemplo envolve uma vítima de estupro que acusou o psicólogo Donald Thomson como o autor do crime. Para sorte dele, foi provado que no momento do estupro ele estava em uma entrevista ao vivo em um programa de televisão e a vítima estava assistindo ao programa pouco antes do crime acontecer. No processo de evocação do fato traumático, ela confundiu a memória do psicólogo com a do autor do crime.

Em investigações recentes de casos de falsas condenações, onde a inocência dos réus foi estabelecida por evidências do DNA, em 36 de 40 casos legais, correspondendo a 90% dos casos, o réu posteriormente inocentado foi falsamente implicado no crime pela evidência de uma ou mais testemunhas oculares. A explicação científica para esses erros de memória é que as testemunhas se baseiam em uma ou poucas peças verdadeiras do “quebra-cabeças” da memória e o completam com criações subconscientes do seu próprio universo cerebral.

Estudos de ressonãncia magnética têm indicado a participação do lobo temporal medial em verdadeiras e falsas memórias, com o lobo frontal algumas vezes ativado apenas no fenômeno das falsas memórias. Um estudo realizado por Lavoye demonstrou que a suscetibilidade a falsas memórias é maior em pacientes com dano no lobo frontal cerebral, decorrente de tumores, lesões cerebrais ou hemorragias cerebrais (LAVOYE, 2006).

  1. Sugestão

   Falsas memórias podem ocorrer em resposta a sugestões ou influências externas durante o processo de relembrança das experiências. Sugestibilidade em memória refere-se à tendência de incorporar informação providenciada por terceiros na memória inicial do fato. O fenômeno da sugestão pode ocorrer durante o interrogatório judicial, em que o indivíduo pode ser influenciado pelas perguntas que são feitas ou pela maneira como as perguntas são a ele aplicadas.

   A sugestão é muito importante de ser reconhecida em crianças, com respeito ao seu testemunho no processo jurídico. Embora a memória infantil seja extremamente acurada e detalhada, as crianças são mais suscetíveis a influências externas na evocação dessa memória.

  1. Preconceitos

           O processo de evocação da memória armazenada é extremamente dependente e influenciado pelo conhecimento prévio e crenças individuais. Memórias de experiências passadas podem ser distorcidas pelo estado emocional e humor do indivíduo no momento da lembrança.

           Preconceitos ou conceitos prévios referem-se às influências externas do conhecimento, crenças e emoções no processo de relembrança de experiências passadas. Diz respeito à influência do contexto atual do indivíduo na evocação da memória de acontecimentos prévios. Vários estudos neurocientíficos e psicológicos têm revelado o papel do estado emocional, relacionamentos romãnticos e preconceitos de etnia e de gênero na distorção da memória evocada.

  1. Persistência

           O último erro de memória refere-se à lembrança indesejável de um fato ou evento traumático. A persistência revela-se na lembrança involuntária de eventos traumáticos e a permanência de medos crônicos e fobias. A persistência relaciona-se intimamente à memória do evento traumático no transtorno de estresse pós-traumático, levando a casos em que a lembrança indesejável do fato ocorrido é tão intensa e persistente que passa a interferir de maneira destrutiva na atividade cotidiana, resultando na necessidade de intervenção psicológica ou medicamentosa do paciente.

         A neurociência do comportamento tem revelado os fatores neurobiológicos que contribuem para a persistência da memória emocional. Estudos científicos têm demonstrado que a permanência da memória emocional está relacionada à amídala cerebral, que é parte do sistema límbico e é influenciada pela liberação dos hormônios de stress. A amídala cerebral em humanos é ativada quando se assiste a filmes de forte conteúdo emocional ou dramas, por exemplo.

         Estudos realizados por Cahill têm demonstrado a dificuldade de lembrança de experiências com conteúdo emocional em indivíduos com dano cerebral na região da amídala ou em indivíduos saudáveis que receberam a administração de substâncias que bloqueiam a liberação dos hormônios de stress pela amídala cerebral, como o propanolol (CAHILL, 1995).

         As falhas de memória citadas demonstram que o processo de formação da memória e a sua posterior evocação não são acontecimentos neutros e totalmente confiáveis, mas fazem parte de um processo dependente de fatores individuais internos e influências externas, que podem mascarar, distorcer ou substituir as experiências verdadeiras.    

         IV – MEMÓRIA E DIREITO

         O sistema jurídico ocidental depende intensamente de testemunhas e evidências oculares que se baseaim na memória dos participantes do processo jurídico. Ao mesmo tempo, as cortes de justiça confiam naqueles que têm como missão julgar essas evidências e confirmar ou negar a sua veracidade. Essa dupla dependência levanta questões com respeito à confiabilidade da memória humana e os acontecimentos traumáticos nos quais ela se estabelece e a habilidade dos juízes e jurados do tribunal do júri em julgar a veracidade dessas memórias de maneira a alcançar a apropriada decisão jurídica em cada caso concreto.

         A questão que os resultados das pesquisas recentes em neurociência suscita é se o atual sistema jurídico leva em conta os limites da cognição humana e da apreensão das circunstâncias pela memória com respeito ao depoimento testemunhal e a capacidade de julgamento dessas testemunhas por juízes e jurados.

  1. A Testemunha

           Quais são os limites da capacidade de identificação e reconhecimento de pessoas e acontecimentos por testemunhas oculares? Quais são os limites da memória com respeito à distorção de fatos e acontecimentos?

         O resultado de estudos científicos que procuram identificar a habilidade de participantes em identificar fotos de suspeitos de crimes resultam na média de 68% de precisão na identificação e 29% de falsas identificações. Outros estudos afirmam o índice de 48% de identificação errada de inocentes como suspeitos de ações criminosas.

         Somando-se ao resultado precário dos testes de identificação por testemunhas oculares, neurocientistas têm demonstrado que a memória apresenta limites como erro de lembrança, completa substituição da memória verdadeira por falsas memórias e ainda total fabricação de eventos que nunca aconteceram de fato. As emoçoes e as circunstâncias também desempenham um importante papel no registro da memória verdadeira e na fabricação de falsas memórias.

         Estudos científicos sobre memória têm demonstrado que as crenças e o histórico de vida das testemunhas influenciam a lembrança dos fatos observados. Pesquisas recentes demonstram que a memória de testemunhas oculares é mais sujeita à distorção e menos confiável do que se reconhece no atual sistema jurídico.

  1. Os Julgadores

           Brandon Garnet realizou um estudo em 2011 de 190 inocentes erradamente condenados por crimes que não cometeram, correspondendo a 76% de 250 condenações. Examinando o registro dos processos criminais desses condenados, ele descobriu que todas as testemunhas ouvidas nos 190 casos estavam erradas na descrição do fato criminal, no entanto todas foram consideradas verdadeiras e aceitas para a decisão jurídica final pelos julgadores do processo.

           Os erros consistiam em incapacidade circunstancial de ver a face do suspeito, falhas prévias em identificar o suspeito, alteração do depoimento e outros erros, os quais não foram levados em consideração no decorrer do processo. O estudo demonstra o grau de confiança que juízes e julgadores depositam na veracidade e infalibilidade da testemunha que se apresenta no processo jurídico.

                                                                    

           CONCLUSÃO

           O objetivo final deste trabalho é demonstrar que o sistema jurídico atual necessita reconhecer a magnitude do problema com respeito à identificação e participação das testemunhas oculares no processo jurídico, levando à busca e incorporação dos resultados de pesquisas científicas sobre memória e os limites do reconhecimento testemunhal. Testemunhas, juízes e jurados devem receber treinamento no sentido de reconhecer e identificar a ocorrência de falsas memórias no processo jurídico.

           O processo jurídico deve ainda levar em conta os fatores circunstanciais que possam influenciar as testemunhas do processo, como crenças individuais, emoções e influências externas de pessoas e fatos na identificação e reconhecimento de suspeitos.

           A neurociência e o estudo da memória têm aberto enormes possibilidades no entendimento do funcionamento cerebral e na relação do cérebro com o meio ambiente. O julgamento do comportamento humano pelo sistema judiciário pode ser aperfeiçoado com a aplicação do resultado de décadas de estudos em neurociência sobre esse comportamento e os fatores internos e circunstanciais que o influenciam.

           REFERÊNCIAS

           Arad, Alexandra. An Analysis of the Role of Neuroscience in the Legal System. Dartmouth Undergraduate Journal of Science. April 15, 2008.

           Cahill, L., Babinsky, R., Markowitsch, H. J., & McGaugh, J. L. (1995). The amygdala and emotional memory. Nature, 377, 295-296.

           Conway, Martin A, Loveday, Catherine. Remembering, imagining, false memories & personal meanings. Consciousness and Cognition 33 (2015) 574–581.

           Damásio, Antônio R. O Erro de DescartesSâo Paulo: Companhia das Letras, 2004.

           Lavoie DJ1, Willoughby L, Faulkner K. Frontal lobe dysfunction and false memory susceptibility in older adults. Exp Aging Res. 2006 Jan-Mar; 32(1):1-21.

           LeDoux, Joseph E. The power of emotions. In The Dana Sourcebook of Brain Sciences. New York, 2006.

           Schacter, Daniel L. The Seven Sins of Memory. New York: Houghton Mifflin Company, 2001.

           Schacter, D. L. The cognitive neuroscience of memory distortion. In Neuron, Vol. 44, 149–160, September 30, 2004.

          

           

           



Autor

  • Ana Clélia Freitas

    Médica, poetisa e escritora. Tem trabalhos publicados na imprensa e em revistas acadêmicas de Medicina e Direito. Especialista em Cirurgia Geral e Dermatologia. Especialista em Biodireito. Membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), International Brain Research Organization (IBRO), Canadá, Associação Brasileira de Psiquiatria Biológica (ABPB), World Federation of Societies of Biological Psychiatry e União Brasileira de Escritores (UBE).

    Medical doctor, poet and writer. Published works in the press and in scientific and academic journals. Specialist in General Surgery and Dermatology. Specialist in Health Law. Member of the Brazilian Society of Dermatology, International Society of Dermatology, Brazilian Society of Neuroscience and Behavior, International Brain Research Organization (Canada), World Federation of Societies of Biological Psychiatry, and the Brazilian Union of Writers.

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